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terça-feira, outubro 28, 2008

Rififi no choro

Rififi no choro


Devagarinho, vamos saindo do tempo em que as ideologias radicalizadas ditavam frases e conceitos estranhos. Radicalizava-se por tudo! O importante não era restaurar a democracia, mas combater os do poder porque o poder era a meta de todos. Era preciso derrubar a ditadura, mas de preferência com a instalação de outra ditadura, de coloração idealista diametralmente oposta. No meio, os que sofríamos a falta da liberdade; e no meio, o medo de que a tão sonhada mudança viesse apenas para trocar a mão, mas preservar a mesma chibata.
Frases: “Ditadura é ruim quando estamos por baixo; mas se é a gente que segura o chicote, aí fica bom!”, diziam os “ da resistência”. Do outro lado, no poder, o manda-chuva dizia: “Cheiro de povo? Prefiro cheiro de cavalos”. Nos da oposição: “Quando pior, melhor!” E o ditador da hora retrucava: “Profetas da desgraça!”.
Nada do que já aconteceu está de todo removido. Haja vista a onda de homens abandonados (e muito ciumentos) matando ex-namoradas e ex-mulheres pelo Brasil afora.
Agora, a fraseologia ideológica chegou ao meio musical. E de modo ruim, muito ruim! O argumento que me incomoda diz respeito aos eventos de choro às sextas-feiras, no Grande Hotel, oportunidade para se (re) encontrar amigos de infância e de mocidade. É quando até mesmo as pessoas em idade bastante avançada deixam a vidinha monótona dos noticiários e novelas de tevê para ouvir o carinho do choro em instrumentais excelentes, ocasionalmente com a ocorrência de vozes delicadas, dando jus ao conceito de música: “Arte de combinar os sons”, segundo Houaiss. Ou: “Arte de usar os sons com intenção estética e expressiva, combinando-os num mesmo todo criativo de ritmo e harmonia”, segundo Aulete.
A frase ruim é essa: “Chorinho já cansou”.
Putz! Músicos da época mais fértil da noite goianiense resolveram pleitear o espaço. E espaço, no caso, não é apenas a calçada do Grande Hotel, mas também o tempo certo: a noite de sexta-feira. Ora gente! Prestatenção! O chorinho já se marcou e está no gosto dos que preferem a música nos conceitos acima transcritos. Qualquer som fora do tom irrita o ouvido exigente dos que vieram para marcar a audiência (Siô Lauro, de 90 anos, pai do meu amigo Eduardo e do saudoso Rei Momo, Tião Saraiva, é freqüentador assíduo).
“Chorinho já cansou”. Cansou? O verbo cansar é usado pela segunda vez, este ano, com a intenção de torná-lo antipático, não é? Primeiro, foi aquele movimento “Cansei”, bolado por dondocas com muito espaço na grande mídia eletrônica e pouco conteúdo na caixa craniana. Agora, são os músicos da nossa predileção pisando no tomate.
Sou dos mais presentes na calçada do Grande Hotel. Notei que, aos poucos, uma tribo dissonante apareceu por lá. Notei-a, primeiro, no visual; em seguida, no odor da fumaça que lhes subia das mãos e dos lábios, num total desrespeito aos demais, o que enseja a circulação, por lá, de agentes da Delegacia de Narcóticos. E aí, chegam os “etês”, os músicos de outros gêneros, tentando absorver o espaço dos “chorões”, subvertendo a ordem. Um cantor de renome pleiteou o espaço para lançar seu cedê sertanejo (foi negado; ele recorreu a um outro canal e obteve a quinta-feira); outros, entretanto, conseguiram trazer seus sons, desde um coral folclórico até uma banda de rock.
Isso tira dos fãs do chorinho a ocasião de sair de casa e desfrutar do que gosta. É injusto, porque os outros gêneros têm, com larga vantagem, espaços e ocasiões para seus eventos. Diga-se o mesmo da platéia invasora, que compromete o ambiente por atrair a afluência descontrolada de ambulantes.
Na última sexta-feira, chegaram lá vendedores de cerveja. Só que, em lugar das latas, trouxeram garrafas (as tais longueneques). Somando o excesso de ambulantes (sem o controle da Secretaria de Desenvolvimento Municipal – Sedem e a fiscalização Ação Urbana), com as tribos da fumacinha de odor nauseabundo, tendo por ponto de união a música inadequada para o local e o dia, o resultado foi o esperado: brigas, pancadaria... Ainda bem que a Guarda Municipal cumpriu, com eficácia, seu papel (por ser o feriado de 24 de Outubro, a PM não estava lá, pois havia uma mobilização em outros setores do policiamento).
Ponto, pois, para a Guarda Municipal. Aliás, três pontos, como nos campeonatos de futebol.
Deixo aqui um convite inevitável para que a SEDEM e a Ação Urbana atuem. Um convite, aliás, que quero passar pelo gabinete do prefeito Iris. Ele resgatou, no mandato que se encerra, o que lhe cobramos há quatro anos: mais atenção para com o segmento cultural. Certamente, Iris não quer que seu esforço seja sabotado pela ação irresponsável de uns poucos.
E aos músicos que pleiteiam o local sob a alegação de que “Chorinho já cansou”, que tivessem ao menos o cuidado de estar lá, porque eu nunca os vi naquela platéia. E nós não nos cansamos de chorinho, não.




sexta-feira, outubro 24, 2008

Família fazendo falta

Família fazendo falta

Um motorista foi alvo de cinco tiros desferidos por um sujeito numa motocicleta. Destes, o mau atirador acertou um, outros três pegaram o corpo do moço tangencialmente e o profissional só está vivo porque o atirador é péssimo de mira, graças a Deus. Péssimo de mira, de humor e de conduta. É que a causa, ao que tudo indica, foi uma tola discussão de trânsito, na véspera.
A propósito, existe discussão de trânsito que não seja tola?
Peraí, gente! Que ninguém se ofenda... Eu também não sou santo e não sei quantas vezes discuti no trânsito. É ruim: a gente cai no ridículo e, obviamente, corre o risco de levar um tiro, também. E tudo a troco de quase nada. Vou contar, já, já, a última em que me meti, envolvendo uma moça. Mas, antes, tenho outras considerações.
As coisas andam erradas; muito erradas. E não é só no trânsito. Nesse segmento, os erros não são apenas de condutores e andantes, mas também de autoridades. Notem: de tudo o que o Código de Trânsito Brasileiro exige, os poderes públicos são os que menos cumpriram sua parte. Cidadão de bem que pretende agir dentro da lei é impedido pelas circunstâncias várias, inclusive pela falta de providências que as autoridades deveriam ter tomado.
Esta semana, Raquel Azeredo mostrou matéria sobre a morte de um estudante de 17 anos, com um tiro desferido por um colega de escola. Um colega de classe, se é que o assassino teve alguma classe em sua ação covarde e irracional. Raquel enfatizou que as escolas não oferecem segurança e os professores ficam limitados, porque a família não faz a sua parte no que se refere à educação. Concordo plenamente com Raquel.
Percebo, nos noticiários da tevê, que a imprensa eletrônica (ao menos ela) parecer querer inculpar totalmente a PM de São Paulo (no caso, o GAT) pela morte de Eloá, assassinada pelo ex-namorado. Os repórteres e apresentadores insistem em demonstrar que não houve um tiro que a PM diz ter ouvido e que motivou a invasão do apartamento, mas várias testemunhas dizem ter ouvido um estampido, ou algo parecido com um tiro. E o promotor de Justiça que acompanha o caso deixa claro: o importante é que o moço Lindemberg agiu premeditadamente, muniu-se de armas e munição bastante para manter seu plano por longo tempo e ficou nada menos que cem horas aterrorizando todo mundo. Não sei, mas parece-me que parte da imprensa quer inocentar o maluco e incriminar a polícia.
Certo: a polícia errou, sim. Já ouvi de muitos especialistas que o prazo máximo de tolerância não deveria ir além de vinte e quatro horas. Mas pouca gente chegou perto do que me pareceu mais racional – somente Arnaldo Jabor criticou o fato de a PM não dispor de micro-câmeras e outros equipamentos indispensáveis em ações do tipo. Deu para concluir: o pessoal do GAT é bem preparado, mas muito mal equipado. E, de novo, vejo falhas na família: que mãe e que pai, em sã consciência, permitem o namoro de uma menina de 12 anos com um homem de 19? Pois eram essas as idades de Eloá e Lindemberg, no começo da história.
Mas fiquei de contar minha mais recente discussão no trânsito. Eu vinha numa rua transversal e, ao cruzar a preferencial onde pretendia entrar à esquerda, fui forçado a avançar uns metros mais, pois um sujeito parou uma Kombi bem na curvatura do meio-fio, na esquina. Na preferencial vinha um Peugeot bem mais novo que o meu velho carrinho. A moça ao volante conseguiu brecar, depois de uma longa nota aguda proveniente do atrito dos pneus travados com o asfalto. Abaixei o vidro e lhe pedi desculpas, mas a loira ficou paralisada, como que em choque. Uns três minutos após, ela religou o motor, engatou a marcha (com alguma dificuldade) e, antes de arrancar, pronunciou uma frase longa e ininteligível. A musicalidade da fala deixou ver que não se tratava de alguém com boa base cultural ou social. Só entendi as últimas sílabas, algo parecido com "udê". Nesse momento, respondi-lhe no mesmo tom, mas na minha pronúncia peculiar. Só que a minha resposta não rimou com a dela. Preferi terminar em U.

quarta-feira, outubro 22, 2008

Sarau no Goiânia Ouro

Goiânia já teve um ambiente mais propício aos poetas. Éramos ativos, inquietos, cobradores. Éramos presença sempre. E aí, alguns se mudaram, outros faleceram e nós, os sobreviventes, parece que esmorecemos, morremos em vida, fechamo-nos em nosso mundinho doméstico sem mais ousar. Mas já fomos muito ousados, sim, antes de envelhecermos. Além disso, a sociedade mudou e o nosso modo de contestar pode ser, hoje, “démodé”. Mas ainda existem jovens. E muitos poetas entre os jovens. Lamento não vê-los em bandos inquietos e, ao seu modo, ativos e felizes. Poetas têm a missão intransferível de transformar o mundo. Poeta omisso não existe.
Um moço de Brasília, o poeta Roberley Antônio, lidera um site na Internet e um movimento poético: “Memento Mori”. Ele costuma promover saraus poéticos no Distrito Federal e, instigado pela musicista e poetisa (e ativista cultural incansável) Fátima Paraguassu, resolveu cutucar Goiânia. Ele veio, no último sábado, realizar um primeiro encontro de Poesia Goiânia – Brasília. Pedimos espaço e Carlos Brandão nos atendeu, aprovado pelo secretário Doracino Naves e secundado pelo competente Itamar Teixeira. Usamos o espaço do bar do centro cultural Goiânia Ouro.
Infelizmente, e a despeito das realizações da administração municipal, um funcionário da casa ameaçou pôr tudo a perder. O moço, Rafael, pareceu não querer seguir a linha que começa em Iris Rezende, passando por Kleber Adorno e Doracino Naves e chega a Carlos Brandão o grande realizador, decidiu, em dado momento, avisar a coordenação do sarau: “Às nove horas (da noite) vou cortar o som de vocês para não atrapalhar o teatro”.
Fiquei sabendo. E algum hormônio em mim se agitou, primeiro induzindo-me a abandonar o local. Mas não podia... Fátima e Roberley contavam comigo; poetas locais e visitantes, dentre estes a humanista Vânia Moreira Diniz, que é referência em todo o país, não deviam ser abandonados por mim. Decidi, numa segunda opção, apenas dizer que não mostraria nada de meu em favor do tempo que o moço da portaria do teatro queria impor. Mas ao subir ao palco, escolhi a terceira decisão: li um poema de Cora Coralina, a homenageada; mostrei quatro poemas meus; e arrematei contando um caso da vida de Cora – tudo isso precedido por um desabafo nervoso, contestador e desafiador: na minha presença, ninguém cala a poesia; e as artes, entre si, sempre foram solidárias. Duvido que teatrólogos, atores e cineastas tivessem qualquer interesse em boicotar um evento de música e poesia.
Ao contrário do que pretendia o desavisado funcionário do Goiânia Ouro, os poetas brasilienses e goianienses apegaram-se ainda mais ao seu sarau. E o esticamos até um pouco além das 23 horas. Lamentei algumas ausências: Leda Selma, Delermando Vieira e Maria Helena Chein. Mas os presentes fizeram bonito.
Para mim e para os demais de Goiânia, nós que conhecemos o trabalho que se faz na esfera da cultura no município, ficou patente que a falha, lamentável, ficou por conta exclusiva desse moço, Rafael. Roberley sentiu: o sarau, em Goiânia,custou-lhe o dobro dos gastos, pois houve esse deslocamento; o custo adicional era previsto, mas o desgaste poderia ter sido evitado. Disse-me ele: “Senti-me tratado como representante de uma arte de segundo plano”.
Não é bem assim, Roberley. O moço que nos incomodou é, certamente, alguém distante do ofício das letras. Na ausência de seus chefes, ele decidiu exercer uma autoridade que não possui, porque autoridade é conhecimento; quem não conhece, não tem autoridade. Ele é, possivelmente, um desses que não consegue ler além de três linhas. Mas continuaremos, sim. Faremos outros saraus, em Brasília e aqui, impondo nossa ação e mostrando do que somos capazes.
Afinal, a poesia nunca esmorece.




sexta-feira, outubro 17, 2008

“Ad immortalitatem”

“Ad immortalitatem”

Em raros momentos a Academia Goiana de Letras está com todas as cadeiras ocupadas, como, também, qualquer Academia, que elas vêm a ser clubes fechados e com quadro vitalício, ou seja, uma vez eleito e empossado, ninguém se desliga, nem pode ser excluído. Assim, um número máximo de 39 votantes elege um candidato. E por seguirem o modo da Academia Francesa, criada em 1635 por Richelieu, as academias de letras só têm quarenta membros.
Poucos sabem, mas a Academia Francesa esteve fechada por dez anos (1793/1803), sendo reaberta por Napoleão (ou seja: o sanguinário imperador tinha seus pendores pela cultura). E a Academia Francesa vem a ser a mais antiga das cinco instituições que constituem o Instituto da França: “As academias incluídas no Institut de France são: a
Académie Française, fundada em 1635; a Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, fundada em 1663; a Académie des Sciences, fundada em 1666; a Académie des Beaux-Arts, fundada em 1816; e a Académie des Sciences Morales et Politiques, fundada em 1795” – informa o site Wikipédia (http://pt.wikipedia.org).
A Academia Brasileira de Letras é o padrão que academias de cada Estado brasileiro seguem. Por serem clubes fechados, costumam ser alvo de críticos que as vêem como não são, ou seja, supõem-nas atreladas ao poder público e até mesmo a instituições de cunho religioso, o que não se sustenta. A admissão de novo membro se dá, como disse em linhas acima, por eleição direta dos membros efetivos, que se baseiam em critérios que vão da autoria de livro, conjunto de obras e conhecimentos nas atividades culturais (mais especificamente no que se refere a letras) e relações pessoais do pretendente com os votantes.
Equívocos acontecem: a ABL elegeu Getúlio Vargas e andou perto de eleger JK (que foi derrotado pelo goiano Bernardo Elis). Em Goiás, fez-se membro efetivo fundador, sem que o próprio o quisesse, Pedro Ludovico Teixeira, interventor por 15 anos (justamente o tempo de Vargas no poder, ou seja, de 1930 a 45). Consta que Pedro aceitou sua inclusão como homenagem, mas teria declarado que não participaria do sodalício por não se incluir como (palavras dele) “beletrista”. Cumpriu a promessa.
Daqui a poucas semanas, em data a ser marcada pelo presidente em exercício, Luiz Augusto Sampaio (Modesto Gomes encontra-se hospitalizado), acontecerá a eleição para a Cadeira 27 da AGL. Disputam-na a historiadora Lena Castelo Branco e o poeta Emílo Vieira, que me aponta como “lançador” de sua candidatura (sim, antes que ele se manifestasse, lancei seu nome neste espaço de crônicas). Gostarei muito de ter o poeta Emílio Vieira entre nós, tal como, agora, empenho-me em apoiar meu conterrâneo caldas-novense Delermando Vieira, que se apresenta candidato à vaga do meu amigo José Luiz Bittencourt.
Delermando tem uma disputa acirrada, antevejo eu. É que já fui contactado por dois outros valorosos intelectuais: o jurista e lente acadêmico Licínio Leal Barbosa e o ativista cultural Filadelfo Borges (jataiense, residente em Rio Verde, fundador da Academia Rio-verdense de Letras, Artes e Ofício; este, pelo que consta, tem apoio do acadêmico José Mendonça Teles). A ambos expressei meu apoio a Delermando Vieira, compromisso esse que se arrasta há alguns anos, pois o poeta declinou várias vezes de seu pleito em favor de outros pretendentes. Logo, penso eu, este momento é dele. Reconheço, tanto em Filadelfo quanto em Licínio, competência e qualidades outras que bem os credenciam, mas a escolha se dá, para cada votante, sobre um nome, apenas.
De bom, nessas eleições, destaca-se o interesse de intelectuais valorosos. Da professora Lena, sei que integra a Academia Feminina de Letras e Artes e o Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. Licínio faz parte da Academia de Letras Maçônicas, e suponho que também Filadelfo. E agora, constatando que a participação no complexo Instituto da França se dá em cinco instituições sólidas, seculares e de criteriosíssimo processo seletivo, imagino que, se integrássemos as instituições fechadas das atividades intelectuais sob um só guarda-chuva, não seria necessário acolher na Academia Goiana de Letras membros de outras instituições do mesmo gabarito – e vice-versa.
Meus votos, pois, para as duas vagas, são para os poetas Emílio Vieira e Delermando Vieira (que não são parentes).

quarta-feira, outubro 15, 2008

Das nádegas ao luar

Das nádegas ao luar

Perambulo pelo xópin, vejo vitrinas e curto lembranças. Lembranças memorizadas do que vivi ou do que vi em cinema, livros, revistas e outras mídias. Observo, como sempre, essa moda ridícula das calças de cós baixo;certas mulheres deixam à mostra a cicatriz da cesariana, outras, o cós da calcinha, algumas sequer as usam. Há as que escolhem a nova onda, os vestidos na linha "saco", moda em 1960; mas fingem esquecer que existem escadas rolantes, e gesticulam no sentido de encostar a barra (ou bainha) da saia na parte alta da coxa, porque saia nenhuma atinge as proximidades dos joelhos.
Conservador à antiga? Não: saudosista de um tempo em que um pedaço de joelho tinha a magia de despertar desejos;agora, nem mesmo os desenhos criativos das depiladoras são mistério. Então, há que se buscar outros atrativos, ou instrumentos de provocação. Atualmente, a mulher tem que ser mais inteligente que suas avós. É que, hoje, como disse a poetisa e cronista (maravilhosa, por sinal) Martha Medeiros, o ponto-gê é no ouvido. Bem, ela disse isso sobre a mulher, mas o homem moderno, o homem sensível, também transportou dos olhos para o ouvido o botão de partida (isso que os americanófilos dizem ser "start").
Mas, voltando aos xópins, vale a pena andar à toa. Especialmente quando o xópin não está cheio de meninos correndo, ameaçando o sossego. Um xópin em reforma, por exemplo. Mas tem que se ter cuidado: os operários da reforma andarilham pelas ruas internas como se os automóveis fossem miragem, quero dizer, como se os carros parassem por mágica tão-logo eles, esses trabalhadores, surgem.
Também anda bom andar pelas ruas de Goiânia. De carro, não; há os imbecis que gostam de dirigir em alta velocidade, ultrapassar pela direita, pôr duas rodas do carro na calçada, inventando uma quarta fila, avançar sinais, trafegar na contra-mão etc. É que a Superintendência de Trânsito não quer fazer concurso para nomear os 700 agentes que faltam em seu contingente (que, hoje, é inferior a 150). Alguém explica?
Então, gente, andar a pé... Curtir as flores que enfeitam a cidade. Ainda existem algumas quaresmeiras floridas (não entendi, elas ficaram floridas todos os meses de 2007). Os ipês já retomaram suas verdes folhas, mas as chuvas-de-ouro douram as copas e salpicam o chão. E as patas-de-vaca associam-se às buganvílias enquanto os flamboyants já ensaiam seus floridos de fogo (que lhes dá nome). As praças, que nos primeiros anos da administração que se encerra, ficaram órfãs das petúnias, voltaram a ostentá-las. Ainda um tanto timidamente, mas estão de volta.
Digam-me, agora, que nem tudo são flores. Eu sei, eu sei. Já escrevi e descrevi longamente sobre os instantes de não-flor de Goiânia. Lembro-me que, nos primeiros anos da década de 1970, a Prefeitura dizia, em seus cartazes, que "Aqui, a Primavera tem 12 meses". Ninguém duvida: nossas ruas estão aí para provar isso. As mesmas ruas onde os vândalos, como em qualquer lugar do mundo, impõem suas pichações e a depredação do bem de todos – como os jardins, os bancos, as lâmpadas e os telefones.
Tudo o que estou lhe dizendo (nestas linhas), leitor estimado, é a minha alegria de, nestes momentos, algumas vezes por semana, integrar-me com o sentimento das pessoas (é que temos um conceito engraçado de povo: qualquer um de nós costuma pensar que povo é "todo mundo menos eu"). Ao escrever, imagino que deixo de ser eu-só para ser eu-e-todo-mundo. Tento passar para o texto o sentimento cidadão, o sentimento de felicidade e de ansiedade que toma conta de cada um de nós. Só que não podemos, nenhum de nós, radicalizar o "status" de cidadão no clamor pelo que não se fez. Então, nossa indignação ante os desmandos do poder deve, sim, ser moldurada pela cor das flores, pelo aroma da dama-da-noite, de preferência com o ornamento prateado da lua-cheia, essa que enriquece o céu justo nos dias do meio deste outubro. E é sob a lua-cheia que Leda(ê) Selma traz-nos mais um livro, sob os auspícios do amigo empresário Melchior Luiz Duarte e cercada por centenas de amigos apreciadores do bom texto.
Mas, então, vamos cobrar melhorias dos poderes constituídos. Mas cobrar com energia. Com a energia que conquistamos em torno das cachoeiras, num lago rico de peixes ou à luz do luar que nos dá paz, esperanças e poesia.
Sem poesia não adianta cobrar. Podemos receber, mas não saberemos compreender nossas vitórias.

segunda-feira, outubro 13, 2008

A alma das cidades

É provável que muito pouca gente saiba disso, mas a alma das cidades passa, inevitavelmente, por suas escolas. Não é apenas seu comércio, sua comida, sua música e seus poetas que lhe dão essência, não. As escolas são quase tudo na vida das comunidades. Elas são os templos vivos e dinâmicos das sociedades.
Recentemente, o noticiário da tevê mostrou que, no setor Urias Magalhães, um sujeito de seus 40 anos, passando-se ora por médico, ora por publicitário, aliciava meninas (adolescentes), levava-as a motéis etc. e tal. Curiosamente, nenhuma das garotas deu sinal, em suas famílias, do assédio e do possível (será apenas possível?) conúbio em cada caso, que, parece, deu-se sem violência. Ou seja, as meninas molestadas (?) não se sentem vítimas. O caso só veio ao público porque a direção e os professores detectaram alguma irregularidade e chamaram a polícia. Ou seja, a escola cumpriu seu papel.
Emociono-me quando passo nas cercanias do Liceu. Já verti lágrimas reais numa mera visita à sede secular do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Imaginem como me senti ao realizar, para estudantes da minha Unidade Tijuca do mesmo colégio, dois saraus em que falei poemas, contei histórias da minha época de meio século antes e cantei cantigas de referência, fazendo coro com os atuais estudantes.
Para mim, naquela primeira metade dos anos de 1960, o Liceu era a minha morada de saber; os demais colégios eram concorrentes, rivais, adversários, conforme o momento. Mas sempre eram berços de possíveis novos amigos, parceiros da vida futura, como nos certificamos, depois, nos anos universitários.
Não sei se é necessário que me explique: sou apaixonado por escolas. Se foi efêmera minha vivência de professor em sala de aula, eterna é a paixão que me conduziu à Faculdade de Filosofia, sem qualquer outra intenção ou tentativa, enquanto a maioria dos colegas corria para os cursos de Direito, Engenharia, Medicina, Odontologia, Arquitetura etc. Emociono-me, sempre, com as histórias escolares, desde a história das escolas até os casos e causos de alunos, professores e outros funcionários educadores, desde os severos e sempre amigos inspetores de alunos até os de serviços gerais.
Entristece-me, pois, saber que algumas escolas importantes da vida goianiense tiveram suas colunas educacionais abaladas e desapareceram da lista dos educandários públicos. Sei que várias gerações de ex-alunos preservarão até a morte suas lembranças dos verdes e felizes anos colegiais, mas fica em mim a triste sensação de inutilidade diante da falência de tantos esforços. Já me manifestei contrário a que pelo menos três estabelecimentos com tradição na cidade e no Estado fossem transferidos da Secretaria da Educação para a Polícia Militar. É que, sem desrespeitar o direito que tem a PM de manter escolas, contesto o veio que destinava educandários aos quartéis. O que existe já está de bom tamanho: educar é missão de educador, e não de militares policiais.
Dito isso tudo aí, quero fechar estas lucubrações com o comentário ouvido de um médico neurocirurgião, dos quadros do Hospital de Urgências de Goiânia (HUGO). Ele se mostrava muito feliz com os resultados positivos que o "seu" hospital registrava, salvando um sem-número de vidas de acidentados a cada hora: "Sabe porque o HUGO dá certo? Por que, lá, atendemos todo mundo, indiscriminadamente. Se atendêssemos apenas pobres, não teríamos condições materiais de sobrevivência. Portanto, é por atendermos também os ricos que conseguimos essa façanha".
Claro! É o que falta na rede pública de ensino: antigamente, isto é, no meu tempo, todos estudávamos nos colégios públicos – pobres e ricos. Mas houve um momento na história em que os ricos tiraram os filhos dos colégios públicos. Não fosse isso, nenhuma escola estadual ou municipal teria se fechado em Goiás. Ou no Brasil.

quarta-feira, outubro 08, 2008

O coração mede o tempo e o longe


O coração
mede o tempo
e o longe



Escolhi esses versos de Otávio Daher para a canção de João Caetano (a música foi tema da novela Pantanal, da Rede Manchete de Televisão, em 1990): “Meu coração já sabe que o seu não quer mais me amar / Não bate mais junto está na distância não sabe voltar”. Estes versos tocam-me muito. Primeiro, porque evidencia, com ênfase, o coração metafórico; depois, porque fala em distância... E distância, medida de espaço, às vezes nos remete ao tempo, também.
Sempre me pergunto quando, e em que circunstâncias, criou-se esse órgão virtual na história da humanidade. Algum apaixonado, certamente acometido de uma síndrome de medo ou de pânico ante a hipótese de perder a amada (sim: não terá sido uma mulher quem inventou a figura literária; as mulheres são mais fortes, principalmente nas questões do amor). O certo é que o coração passou a simbolizar as coisas do amor, e de modo tão intenso que não há necessidade de se explicar absolutamente nada: basta falar de coração e se tem a certeza de que o tema é o amor. Até porque o coração físico, esse é o órgão das coronárias e dos infartos.
Em muito mais da metade dos casos, as questões de coração e amor referem-se às relações românticas. Sobra amor de coração também para uns raros amigos, para filhos e netos e, às vezes, até para irmãos.
Interessante, mas tenho de abrir parênteses. Pode parecer estranho, mas o amor ao irmão é algo questionável, mesmo. É incrível que, quando queremos dizer a um amigo que ele é mais que apenas amigo (como se fosse pouco ser amigo), dizemos que ele é um irmão. Ou bróder, que até as meninas dizem “ela é minha bróder”. Mas dizer que um irmão “é meu amigo” também reforça a fraternidade, digo até que na mesma proporção em que se chamar o amigo de irmão reforça a amizade.
Dizia eu, pois, que a arrasadora maioria das vezes em que evocamos o coração como instrumento do amor, estamos falando de amor romântico. É quando lembramos Cupido, o anjinho peralta que, armado de arco e flecha, está sempre atento a desferir suas setas e colar decididamente dois corações.
Mas o coração metafórico comete, também, outras pancadas. A saudade, por exemplo, é forte parceira das retumbâncias cardio-amorosas, nem sempre por causa do amor. Nesta segunda-feira, 6 de outubro, meu coração festejou lembrança. E lembrança de coisa distante, fato de trinta anos idos. Era uma sexta-feira, entre fogos de festas. E era Pirenópolis. Foi lá, num 6 de outubro, que festejei a inauguração de minha vida em livro.
Coisas boas a memorar, portanto. Recordo o professor Gomes Filho, que me revisou os originais e produziu prefácio; e foi ele quem discursou para me apresentar a um público leitor, justamente a gente de tantos parentes na vetusta Pirenópolis que já foi Meia-Ponte de Nossa Senhora do Rosário. Naquela distante 1978, a cidade já cantava a canção de José Pinto Neto com letra da minha lavra. Eu me sentia, devidamente, um filho da terra. E preciso explicar que a festa deveria, sim, ser feita em Caldas Novas, meu berço; mas não havia ambiente, então; como, de resto, ainda não há. Caldas Novas não se volta para as coisas do espírito, mas apenas da pecúnia. Infelizmente. Era assim em 1978; continua sendo.
Naquele outubro de trinta anos atrás, Altamir Mendonça era o prefeito. Apoiou-me na iniciativa, com uma ajuda financeira; patrocinou a festa, que fez inserir nos festejos de aniversário (era a festa dos 251 anos) – enfim, proporcionou-me um grande evento, que, vê-se hoje, marcou minha vida e registrou-se como que bordado em cores na minha memória.
Há cinco anos, e incluindo a minha festa de Jubileu nos festejos de Goiânia nos 70 anos de sua Pedra Fundamental, reeditei o livro de estréia – “O Cerco”. Repeti, com breves cortes, o prefácio do professor Gomes Filho, que já havia nos deixado; inseri o prefácio de Brasigóis Felício, que o escrevera para a primeira edição, mas que, por um desvio do destino, não me chegou às mãos em tempo hábil; repeti também um breve comentário do saudoso amigo Roberto Fleury Curado e contei, de novo, com ilustrações de Jorge Braga (desta vez, ele produziu novas ilustrações para os mesmos contos, e o livro trouxe os desenhos todos, ou seja, os da primeira edição para serem comparados com a interpretação atual do artista).
Enfim, e concluindo a definição da festa no meu coração metafórico, quero confessar que, no início deste ano, pensei em produzir um novo livro para festejar estas três décadas. Mas não vejo em mim muitas novidades a expor, imaginei se não ficaria repetitivo e limitei-me à produção, duas vezes na semana, destas crônicas para o Diário da Manhã. Aqui, conto emoções novas ou fatos vistos ou vividos no quotidiano.
Hoje, pois, permitam-me esta reserva para falar do meu íntimo. Afinal, aquele livrinho de 1978 multiplica-se em mim. A partir dele, proseei mais, poetizei mais, viajei mais. Enfim, vivi mais. E pensar que, naquele tempo, eu já imaginava que morreria daqui a sete anos!
Tudo bem. É sempre possível que agora (hoje ou amanhã, ou daqui a sete anos) eu acabe acertando. Mas, agora, chega. Não me sinto bem falando só de mim. É que o coração sente o quanto é difícil bater junto quando a distância se perde...
Obrigado pela leitura de sempre. E pela tolerância também, uai!



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sexta-feira, outubro 03, 2008

"A alma encantada das ruas"

"A alma encantada das ruas"



Há cem anos, pontificava no Rio de Janeiro um dos maiores cronistas brasileiros de todos os tempos: João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos, ou, como era conhecido, João do Rio. É ele o autor de "A alma encantada das ruas", dentre outros vinte e cinco livros. João do Rio viveu apenas 40 anos (1881/1921), mas o bastante para viver intensamente e ser eleito, aos 29 anos, para a Academia Brasileira de Letras.
Não diria que "A alma encantada das ruas" seja o seu melhor livro, nem o mais importante. Escolhi-o para enfatizar a atividade literária em que o jornalista mais se destacou – a de cronista. Seu contemporâneo Lima Barreto teve, literalmente, uma vida literária paralela à dele: 1881/1922. João, que era mulato, teve uma vida mais afortunada que a de Lima, cujo pai, João Henrique de Lima Barreto, nasceu escravo. Mas a razão da minha escolha não é sequer preferência entre os dois grandes escritores cariocas. O critério está apenas na crônica. E, muito especialmente, no modo como João do Rio escolhia os temas de suas crônicas: ele, efetivamente, buscava encontrar "a alma das ruas"; ou melhor, "a alma encantada das ruas".
Duvido muito que qualquer cronista pós-João não faça o mesmo. Aliás, estou dizendo besteiras. Não preciso dobrar a esquina para localizar, em Goiânia ou em Torixoréu, em Fortaleza ou em Passo Fundo, cronista que escreva sobre o seu próprio umbigo. Algo de errado nisso? Não, absolutamente: o escriba escolhe sobre o que escrever, ninguém tem o menor direito de lhe impor o contrário. O que vale mesmo é como escrever. É escrever de modo a envolver o leitor e conduzi-lo à última palavra. Então, seja qual for o tema, se o cronista for ruim, não haverá assunto que o faça grande; e se for bom, poderá escrever sobre um botão de dois ou de quatro furos, e conseguirá envolver e divertir seu leitor "até a última palavra".
Gostaria muito, eu, de ser um bom seguidor de João Paulo. Li, em sua biografia, que estudou no Colégio Pedro II, na década de 1890, tempo em que a República, ainda infante, mudou o nome do colégio do Imperador para "Ginásio Nacional", por razões óbvias. Foi jornalista, naturalmente. E eu, que gosto de ver reconhecidos os verdadeiros valores, estranho muito que seus textos não sejam estudados nos cursos de Letras e de Jornalismo em todo o país. Acredito, mesmo, que hoje, quando tanto se fala em "jornalismo literário", o espaço já esteja aberto. Porque não há como omitir a qualidade literária do imortal João do Rio.
Foi pensando nele que observei, na manhã desta quinta-feira, uma senhora mal entrada nos trinta anos a caminhar na minha rua, em animada conversa com a filha pré-adolescente. Mulher simples e bela, sem ornamento algum, usando uma minúscula camiseta que lhe deixou à mostra a cintura bem torneada, enquanto a calça em brim mescla (que a gente hoje chama de "jeans") bem justa, a barra (ou bainha) no joelho. Mas o cós da calça, este, como ainda é da moda, não está na cintura, mas, sim na linha onde os obstetras fazem o corte da cesariana.
Imaginei o que escreveria João do Rio diante daquele corpo moço e deformado. É que a cintura já tem o estreitamento que tanto encanta, como a silhueta de um pilão. Mas o sutiã apertado forma uma cintura centímetros acima daquela natural, a da linha do umbigo. E a moda das calças de cós baixos impõe mais uma, dividindo o volume dos quadris em dois hemisférios amorfos, sem a simetria que agrada aos olhos (para os bem aquinhoados, ao tato também).
Não sei se o cronista de cem anos passados atentaria para outro detalhe... Ah, certamente que sim! Refiro-me aos indefectíveis pelos do baixo ventre, estes que, com a moda em voga, exigem ações amiúdes de um novo tipo de profissional – as depiladoras dos salões de beleza. A esse propósito, ouvi do meu amigo Marcelinho Pão e Vinho, delegado de uma pequena e pacata cidade do interior de Goiás:
– Elas, essas moças, deviam ser enquadradas em crime ambiental.
A observação intriga-me:
– Desde quando, pergunto-lhe eu, uma simples depilação íntima vem a ser crime ambiental, siô?
E ele, impassível:
– Estão devastando o cerradinho.



José Luiz Bittencourt

José Luiz Bittencourt

“Resta esse diálogo cotidiano com a morte,
esse fascínio
Pelo momento a vir, quando, emocionada
Ela virá me abrir a porta como uma velha amante
Sem saber que é a minha mais nova namorada”.
(O Haver, de Vinícius de Morais).

Gosto de olhar a vida não apenas pelo conceito da História, mas pelas medidas e aspectos da Geografia. A História nos põe no tempo; a Geografia situa-nos no espaço. Para mim, o viver não se limita ao ontem, ao hoje e ao provável amanhã, mas ao chão, ao céu e aos horizontes. Como eu, muitos são os que entendem a vida assim. Especialmente os praticantes dos chamados esportes radicais, como pára-quedismo, alpinismo, rapel, surf e suas variantes. São pessoas fascinadas pelos horizontes e ávidas de vencê-los. É que nos ensinaram que horizonte é a linha imaginária que define a superfície terrestre e o céu. Ou seja, o que nos parece limite. Mas o tempo nos ensinou que não existe esse limite, que o horizonte é sempre uma linha que imaginamos ver e que empurramos para mais além quando tentamos atingi-lo.
O horizonte no Planalto é diferente. É muito fácil vermos o céu na extensão do solo a nossos pés. Nas regiões de montanha, o horizonte fica no alto. E para os que olham o mar, a linha do horizonte torna-se, muitas vezes, difícil de ser vista (quando o azul do céu confunde-se com o do mar). Particularmente, por mais que admire sua beleza, não gosto do horizonte marinho. Dá-me um certo medo: se estou no litoral, olho o mar e penso que roubam-me metade dos meus horizontes. Mar é muito mistério, é desafio que não se vence numa só existência – há que se reencarnar muitas e muitas vezes, até se fazer íntimo, como Dorival Caymmi, o poeta do mar e das areias.
A vida se mede, pois, pela largura, e não pelo comprimento. Pelos horizontes, muito mais que pelos dias e anos. Nilson Gomes publicou, semana passada, que José Luiz Bittencourt era exemplo raro de político inteligente em nossa terra. Talvez tenha sido ele o último dos colegas a sacar um sorriso feliz do meu veterano amigo e ex-aluno do Colégio Pedro II, duas décadas antes que eu descobrisse e me integrasse ao vetusto educandário.
José Luiz Bittencourt deixou-nos de súbito na madrugada de sábado, horas após escrever seu último texto para o Diário da Manhã, nossa tribuna há quase trinta anos. Quase? Não... Mais de trinta anos: afinal, viemos do Cinco de Março, o semanário que foi um bastião de resistência à ditadura. Meu amigo de nascimento sergipano antecedeu-me em fases comuns a ambos: o colégio, já citado; o Cinco de Março, idem; o DM, ibidem, e a Academia Goiana de Letras. Não me cabe biografá-lo, que a edição de domingo passado do DM o fez muito bem. Não tenho, pois, necessidade de trazer a público nada de sua vida, mas apenas das minhas sensações agradáveis por ter desfrutado de tão bom amigo. Vinham deles conselhos bons e oportunos ante algumas dúvidas; dele vinham também palavras de estímulo para o fazer literário, muitas vezes desanimador onde a cultura do braquiária fala mais alto que o valor das letras e da filosofia.
Aos 85 anos de intensa e valiosa vida pública, ele marcou ainda com maior intensidade as relações em família. O marido, pai, avô e bisavô já distribuíra, desde sempre, seu legado: a formação de cidadãos ativos e dotados da consciência cidadã, porque não basta nascer e atravessar o caudal da vida – é preciso viver com intensidade. Intensidade histórica e geográfica.
Estranha-me ouvir dizer que o perdemos. Direi, antes, com realismo, que o ganhamos por oito décadas e meia. Agora, com a missão cumprida, foi promovido. Certamente, prestará serviços valiosos também do outro lado da existência – o lado de lá, além do horizonte de verdade.