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domingo, novembro 30, 2008

Quixote de botequim







Quixote de botequim



Muito já se falou (e se escreveu) sobre o peso das palavras. Principalmente sobre as palavras escritas, porque entendemos de conceituar como documento a palavra escrita, seguida da assinatura de quem escreveu, dando ao texto no papel o valor das idéias. Bonito, isso. Mas há muita coisa também, escrita e falada, a respeito da palavra apenas falada; é aquilo que nossos pais e avós diziam a propósito de honra. Nesse particular, cometia-se uma injustiça para com as mulheres e os infantes, por serem imberbes, pois a honra era associada à barba (para a mulher, e segundo aqueles velhos conceitos, a honra não estava nos pelos do rosto, mas... ah!, é melhor não entrar em detalhes; basta dizer que era mais um conceito injusto).

Daquele tempo, ficou-nos um valor. É certo que este é o tempo de se derrubarem valores morais, mas ainda são muitos os que os defendem. E é possível preservá-los mesmo sem as pinceladas machistas das décadas idas. A honra de quem faz uso das palavras não é mais, portanto, algo que se atrele à barba. Inúmeras são as mulheres que superam o universo dos homens no tocante à dignidade que se preserva. Quanto aos jovens imberbes, podemos dizer o mesmo, até porque nada é tão valioso quanto aquela frase que já vai se tornando um provérbio: “Canalha também envelhece”.

Nós, os do ofício da escrita, somos os mais visados quanto à coerência, ou melhor, quanto a valores morais. Não é de boa referência estamparmos uma imagem na escrita e não corresponder a ela nas nossas ações e palavras faladas. Dia destes, li num importante jornal local uma crônica que me deixou estarrecido: o autor tecia loas exageradas (como é de seu feitio; nisso, ele é coerente) a uma pessoa sobre a qual, há bem poucos anos, me disse exatamente o contrário. E tenho testemunhas. Na peça, em gênero de crônica, exaltava os feitos da pessoa que escolheu homenagear exatamente em obra por ele antes questionada.
Poderia dizer aqui: não entendi. Só que eu entendi, sim. O autor é dado a homenagens dessa natureza quando o alvo de sua pena é detentor de poder de pecúnia ou de política, ou ainda se é capaz de bom tráfico de influências (e era o caso), ou ainda se lhe poderá render vantagens (e era, de novo, o caso). Nas entrelinhas, ele, o escriba, aproveitou para espinafrar escritores locais que, segundo ele, encastelam-se em suas igrejinhas e fazem pouco dos que não lhe são caros ou próximos. De novo achei engraçado: o autor definiu-se, de modo reflexivo, sim, senhor! Ele, sim, é useiro e vezeiro da prática, mas não se constrange em abusar dos telefonemas para pedir, aqui e alhures, artigos que o louvem. Sim, senhor, de novo: o homenzinho chega a orientar o companheiro a quem faz a encomenda: “Diga aí que eu sou isso e aquilo, que já fiz isso e aquilo etc. e tal”. Ele só não traz o artigo pronto para que o “amigo” assine porque não tem disposição física para isso. E aqui grafei entre aspas a palavra porque é bastante questionável o conceito que ele tem de amigo. Pelo menos, não bate com o meu conceito.
O leitor que tenha tido a paciência de chegar até aqui há de ter dois pensamentos: o primeiro (no caso de o leitor não ler entrelinhas) vem no sentido de entender que compro encreca (são muitos os que me qualificam assim, mas são esses os que mais me sugerem temas, quase sempre em proveito de algum interesse pessoal deles próprios); o segundo, dos que vêem mais longe, é na linha de questionar por que eu não pus nomes, aqui, como é do meu feitio.

Respondo: não tenho constrangimento algum em cometer denúncias, e quando as faço, costumo, sim, dar nomes. Mas a este coleguinha não darei o privilégio de pôr seu nome em letra de forma (aprendi com Carmo Bernardes que letra de forma não é para qualquer um; há que a merecer) porque ele é dos que só escrevem os nomes dos que pretende bajular. Aliás, isso me remete a 1990, época do presidente Fernando Collor. Lembro-me bem que ele se elegeu com uma bandeira: combater os marajás (mas não deu nome algum, e ninguém vestiu essa carapuça); depois, acusou um tal de “sindicato do golpe”, só não disse onde ficavam, nem quem eram seus membros e dirigentes (e de novo ninguém vestiu a carapuça).

A diferença é que o escriba em questão não teria, jamais, a coragem de Collor. O ex-presidente fazia figuras literárias, e se não era muito feliz nas figurações, é porque nunca foi literato; o escriba quer fazer política, e se não a faz bem, é porque não é do ramo.

Por que, então, escrevo estas linhas? Só para dizer que estou dormindo. Se for necessário, e se o colega insistir no mesmo diapasão, direi nomes e darei as minhas razões. E, nessa hipótese, o leitor será juiz.


Luiz de Aquino é escritor e jornalista, membro da Academia Goiana de Letras. E-mail: poetaluizdeaquino@gmail.com

quarta-feira, novembro 26, 2008

Rito de passagem




É novembro que se vai... ou se esvai. A gente conta a vida pelas medidas formais das semanas, e estas, como os dias, repetem-se sem muitas novidades. O que pesa são os meses, que nos dão os efeitos das estações do ano, e os anos, por determinarem estágios em nossas vidas. Pelos anos, dizemo-nos crianças, adolescentes, jovens, adultos e velhos. E a velhice nos chega com os eufemismos em moda nas últimas décadas.


Marcos indeléveis nas nossas vidas são as escolas. Elas equivalem ao momento em que o mundo deixa de ser apenas o de nossa casa para estender-se aos amigos, esses parentes externos que elegemos, em lugar de os recebermos como o “kit” família. Essa primeira escola fica na memória como cores esparsas, bem como a que se estende no que se convenciona como as cinco séries que sucedem à alfabetização. Depois vêm os anos que, para mim, eram os ginasiais. São os quatro que equivalem à primeira fase da adolescência e quando as amizades mais se consolidam. É então que as pessoas fortalecem seu direito de escolha e traçam, de vez, o seu futuro em torno da personalidade que passa pela efervescência das informações. E é então que, num momento inexplicavelmente não anunciado, dão-se as perdas. Obviamente, numa turma de trinta e cinco ou quarenta alunos, os grupos de amigos para toda a vida fecham-se em quatro ou cinco. Mas como valem esses quatro ou cinco!


Como disse, são os irmãos eleitos. Eles não têm o nosso sangue, não cresceram no nosso ambiente de casa, trazem peculiaridades que nos surpreendem (e nos atraem). No fundo, completam-nos. Mas chega um certo ano em nossa vida, um certo novembro, a gente adolescente sequer se liga que está chegando o Natal e o Ano-Novo, ocupa-nos apenas a certeza de que o que muda é a série em que nos matriculamos todos os anos. Só que, desta vez, vamos nos espalhar, como se a mão de um poder invisível nos distribuísse por aí, distanciando-nos.


Antes, naquela minha geração, os pais dificilmente iam às escolas. Era comum que nos matriculassem na primeira série do ginásio e, a partir do primeiro dia de aula, coubesse a nós próprios o caminho e o tempo, a renovação da matrícula a cada ano e, quando muito, os pais viriam para colher o boletim. Ou quando chamados por alguma transgressão de nossa parte ao código de disciplina.


Hoje, esta última semana de aula afeta até mesmo pais e mães, esses marmanjos que, por questão de segurança ou da má qualidade do transporte coletivo, comparecem ao portão de alunos duas vezes ao dia. A última semana de aula distancia-os também dos outros pais e mães, habituados que ficaram com os encontros de todos os dias, há quatro anos. Na quinta-feira, há o culto ecumênico, uma espécie de Ação de Graças pela etapa vencida; no sábado, o indefectível baile de término de curso. E, no ano que vem, o Ensino Médio, talvez uma nova escola, certamente novos colegas, novos professores, novos temas e novo ritmo de trabalho. Os meninos da fase que antes chamávamos de ginasial chegam agora ao que já foi colegial. É a transição para o terceiro grau, a universidade: o trampolim para as profissões. Queira-se ou não, a meninice ficou para trás. Ainda há os sorrisos, mas surgem as preocupações: a vida passa a ser ainda mais competitiva, daqui a três anos acontecerá o vestibular (esse processo virtual de cotoveladas em busca do próprio lugar, um salve-se-quem-puder selvagem e anônimo).




A tudo isso, juntem-se as transformações biológicas desses meninos e meninas, os hormônios em fúria, a ansiedade, a pressa, a incerteza e uma busca angustiada por algo que não se sabe exatamente o que é, o que virá a ser.


Para muitos, pode parecer algo como uma tarde de sábado ou a transposição de um dia 30 para o primeiro dia do mês seguinte. Para os que exercem esse rito de passagem, a angústia pode ser silenciosa; ou não. Mas no coração, na mente, nos sentidos ou no mais profundo dos sentimentos de cada um acontecerá um instante de dor que jamais será esquecido. Os olhos olharão cada rosto, cada sorriso, os ouvidos ouvirão as frases e os tons de vozes. Haverá uma vertigem, uma sensação de “déjà-vu”. É quando cai a ficha... A separação, jamais prevista, está acontecendo. Começou a acontecer.




Será muito bom se estes, os que agora são os mais queridos, fiquem cada um na vida do próximo como alguém muito importante. Que se tornem isso que, quando a gente acumula décadas, passa a chamar de amigo de infância. Sem eles, a vida seria muito sem-graça.

Luiz de Aquino é escritor e jornalista, membro da Academia Goiana de Letras. E-mail: poetaluizdeaquino@gmail.com

sábado, novembro 22, 2008

A escrita, a ética e o regozijo

A escrita, a ética e o regozijo



O adolescente médio brasileiro comunica-se com um vocabulário de cento e vinte palavras. Sim: cen-to-e-vin-te. Apenas. Não mais que isso. Mas, dizendo assim, parece que apenas o jovem é limitado. Isso é injustiça, das grossas. Conheço gente fina com diploma de universidade e alcunha de doutor que não entende a diferença entre “mais” e “mas”. E “pescosso”, “frauda”, “oço” e “recurço” em lugar de pescoço, fralda, osso e recurso aparecem em textos de próprio punho de alguns profissionais de roupa branca, desses que incorporam o título, religiosamente.


Ah, que saudade! Na faculdade, no meu tempo, era comum um aluno corrigir o colega que pronunciasse ou escrevesse erroneamente. Como era comum, também, formarem-se grupos de estudos em que ao menos um dos membros tivesse bom domínio da Língua Portuguesa e um outro fosse bamba na disciplina específica; assim, todos aprendíamos naquele intercâmbio de conhecimentos (ou de sede de saber). Mas eram outros tempos... Tempos caretas, dirão os moços estudantes de cento e vinte vocábulos.


Tenho visto professores desprovidos de conhecimentos mínimos das matérias que ensinam; então, pergunta-se: ensinam o quê? Cartazes possíveis de serem lidos por aí: “Todos clientes têm estacionamento grátis” (devia ser “Todos os clientes...”); “Descontos à partir de...” ou “Tudo apartir de 1,99” – não se sabe a razão pela qual não escrevem “a partir”. E aí, por manterem dúvidas sobre o português, muitos comerciantes preferem “10% off” a “Descontos de 10%”, ou, em vez de “Liquidação” ou “Queima”, oferecem “Sale”. Como se vê, é muito mais fácil para nós, brasileiros, aprender e entender inglês do que o “brasileirês”. E eu, que tenho um indispensável bloqueio à grafia de palavras estrangeiras, prefiro escrever “De náite is a xiudrem”, que dizem-me conter um erro de concordância, porque o singular seria “xiude”, e não “xiudrem”.



E o que quer dizer mesmo “estacionar dentro das imediações”? Pelo que li (é uma notícia de jornal), a intenção era dizer “no pátio”, mas o autor do texto não sabe o que quer dizer “imediações” – apenas achou bonita a palavra.




Erros de linguagem à parte, triste mesmo é o erro de conduta. Num seminário de saúde acontecido em Goiânia, na semana que se encerra, secretária da Saúde de Minas Gerais, Helidea (coitada! Mais uma vítima da criatividade dos pais em confronto com o bom-gosto) disse, como quem defende as pretensões de seu chefe, que “quem governa Minas pode governar o Brasil”. Que idéia, dona Helidea! Qualquer Estado brasileiro tem condições de oferecer bons (ou maus) presidentes à República. De minha parte, e pelo que nos demonstra a História, evito os gaúchos. É que Getúlio Vargas apaixonou-se tanto pelo poder que lá ficou por quinze anos ininterruptos e ainda voltou para outros quatro. E de 1964 a 1985, tivemos aquele revezamento de generais, dos quais um era cearense, mas estudou no Rio Grande do Sul, e outro, carioca, apenas nasceu no Rio de Janeiro – sempre foi ligado ao lindo e valoroso Estado dos pampas e das serras.


Mas, gafes e ratas à parte, regozijo-me com meus confrades da Academia Goiana de Letras, na pessoa do presidente Luiz Augusto Sampaio, pela Sessão Magna da Saudade em memória de José Luiz Bittencourt. E rendo graças e loas a Antônio Almeida, o nosso Antônio da Kelps, por acatar minha humilde sugestão e ter produzido um livro com cento e quatorze páginas com os artigos e crônicas escritos em homenagem ao grande homem que foi Bittencourt. Mais de duzentos exemplares postos à disposição dos presentes não foram o bastante. Coube-me selecionar os textos e apresentá-los para a impressão; portanto, o único erro fui eu a faze-lo, e tenho de ser crítico de mim: alguns dos artigos saíram num só bloco, como que sem parágrafos, em virtude da transposição de “software” (ou sófiti-uér), em que a separação de parágrafos não se cumpriu. Mas o efeito foi dos melhores. Se me for dada outra oportunidade, cuidarei de me corrigir, porque sou um eterno estudante. Só que nos moldes do meu tempo, ou seja, sempre com vontade de aprender algo mais.


Luiz de Aquino é escritor e jornalista, membro da Academia Goiana de Letras. E-mail: poetaluizdeaquino@gmail.com

quarta-feira, novembro 19, 2008

A nova face da Polícia Federal

A nova face da Polícia Federal



Vi na tevê que em três localidades de Goiás (Goiânia, Anápolis e Jataí) serão plantadas pouco mais de oitocentas mudas características do cerrado, em cabeceiras de córregos. Minha primeira reação foi de alegria; a segunda, de frustração; a terceira, de surpresa. A alegria dispensa comentários; a frustração... Só isso? Oitocentas e algumas mudas, apenas, divididas em três locais? Ou seja, menos de trezentas mudas em cada lugar? O cerrado não apenas merece, mas carece de muito mais que isso. E aí, veio a surpresa: o projeto tem a Polícia Federal como uma das que se empenham para o reflorestamento.


Parei para pensar. Dia desses, em linhas dos meus escritos nestes espaços de jornal, eu disse que “há pessoas lendo na Polícia Federal”. E, agora, tenho mais uma confirmação disso. E me alegro outra vez: a Polícia Federal, desde seu surgimento e por duas décadas, era um dos tentáculos do sistema de repressão da ditadura. Eu e todos os da minha idade, os que tínhamos a consciência (e o sonho) da liberdade, temíamos os rigores da tortura, e a PF alinhava-se fielmente na máquina do terror oficial (sim, não se enganem; se aos que lhe faziam oposição os do governo aplicaram a pecha de terroristas, os deles praticavam o terror de Estado, prendendo e seqüestrando, exercendo a tortura e, por “acidente de trabalho” ou por nítida intenção, matando, às vezes).





Agora, temos uma nova Polícia Federal. Uma polícia mais preparada, tanto na formação acadêmica quanto nas técnicas de investigação e, melhor ainda, com o pensamento em um futuro mais seguro. E segurança não se faz só de investigação e armas.


Investigação é um capítulo à parte. Tanto as instituições policiais quanto as militares têm seus departamentos de inteligência. E inteligência não se faz como no tempo da ditadura, prendendo e arrebentando, não. A esse propósito, a imprensa nacional já mostrou, muitas vezes, incontáveis atos de burrice dos “sistemas de inteligência”. Hoje, já não se aplica mais a antiga piada (daqueles tempos de rigidez do regime): um policial aborda um bêbado na porta do boteco; o bêbado não se mostra intimidado, ao que o policial reage mostrando distintivo, arma e argumenta: “Eu sou da polícia!”. O bêbado, impassível, arremata: “Bem feito, quem mandou não estudar?”.

Em suma, aos poucos a sociedade brasileira começa a confiar na polícia. E é bom que comece justamente pela Polícia Federal, pelas razões que já citei. Não se quer mais uma polícia apenas truculenta, quer-se uma polícia honesta e inteligente. Uma polícia da sociedade, de Estado (e não de governos). Uma polícia que respeite e proteja o sistema de saúde, o sistema educacional e que se una aos segmentos que constroem o futuro. Preocupar-se com as plantas, com o reflorestamento e a qualidade ambiental dos tempos vindouros é um excelente começo, um compromisso que não deve ser mudado.





Por falar em plantas, quero contar. No meu minúsculo apartamento num oitavo andar, tenho uma floreira junto à sacada. Menos de um metro quadrado. E ali, planto plantas de flores e até uma pimenteira feliz e alegre, se não lhe falta água. E com alguma intenção furtiva, cuspi no canteiro sementes de melancia, que fizeram brotar a ramagem bonita e rasteira (agora já dá flores). Minha mulher questiona-me: “Vai deixar crescer? Tá maluco? Melancia nesse mini-canteiro?”. É, ainda não decidi remover a ramagem. Vamos ver no que dá...



Enquanto isso, minha amiga Ana Maria Taveira conta-me que, na casa de seu irmão, Francisco, meu colega de Liceu (o sonetista secreto, como gosto de me referir a ele), tem uma jabuticabeira, plantada por seu pai, o Dr. Taveira, de boa lembrança para os mais antigos moradores de Goiânia. E Francisco, o tabelião, elege um dia, todos os anos, para “inaugurar” a jabuticabeira em profusão de frutas maduras.

Dia desses, Ana Maria invadiu a sombra da fronde e arriscou-se a colher, aqui e ali, algumas bolotas negras (a maioria ainda não estava madura), no que foi severamente repreendida pelo zeloso irmão.


“Ranzinza, ele”, disse-me Ana Maria. Dei razão ao meu amigo, mas não o disse à Aninha, que cometeu o perdoável crime de curiosidade feminina, antecipando o evento que o irmão anfitrião programa todos os anos.


Luiz de Aquino é escritor e jornalista, membro da Academia Goiana de Letas. E-mail: poetaluizdeaquino@gmail.com

sábado, novembro 15, 2008

Ler é mais importante

Ler é mais importante

A julgar pelo que vejo nas revistas, nos jornais, na tevê e na Internet, nunca se falou tanto em estimular a leitura. Claro, isso é resultado de uma triste constatação: o nível de analfabetismo funcional está altíssimo e compromete gravemente a qualidade dos profissionais atuais. O que esperar, então, do futuro? A gente conhece, de sobra, pessoas que não apreendem (e, por isso, não aprendem) com a leitura; precisam ouvir. Então, lêem e relêem, mas sempre pedem que alguém leia e comente; só então começam a entender...


Dia destes, ouvi de uma estudante de pós-graduação (em literatura) uma apreciação sobre determinado professor. Ela, com boa capacidade crítica, deu-me um perfil do mestre de quem falávamos. E discorreu, também, para ilustrar sua análise, sobre um trecho da aula da véspera. Para quem não é do meio, deve ser surpreendente contar que a análise literária segue os meandros de qualquer investigação. Portanto, o estudo crítico tem os mesmos graus de detalhes e de dificuldades de uma investigação criminal.
Parênteses: será que a população brasileira, em sua expressiva maioria, sabe a razão pela qual uma operação da Polícia Federal se chamou “satiagraha”? Busque saber, caro leitor. Vai descobrir que alguém, na Polícia Federal, tem o hábito de ler.

E então, a esta altura da leitura, meu leitor entenderá que estou dando importância exagerada ao meu ofício de escriba (e não há escriba que não seja leitor; se houver, será um profissional a menos da metade do que se lhe exige). Mas é importante que o leitor entenda, junto comigo, que ao defender a leitura exerço uma mistura que considero salutar: afinal, formei-me educador, e sou também jornalista, além de poeta e contador de causos. Mas é o educador quem mais se dedica a defender o hábito da leitura. Educação é o apelido que damos às técnicas de preparar a criança para ser um adulto “do bem”, quero dizer um bom cidadão, um bom profissional – uma pessoa de boa qualidade, enfim.


Nenhum profissional que se preze será bom se não ler. Conversar e ver tevê, ir ao cinema e ouvir músicas é muito bom, é construtivo e prazeroso; mas a leitura tem algo de mais importante: é o canal que mais rapidamente nos informa e forma. Além disso, a leitura, apesar dos preços dos livros no Brasil, ainda é lazer de baixo custo. Um livro de trinta reais nos dá quantas horas de aprendizado e prazer? Muitas, muitas horas. Mas os mesmos trinta reais, num passeio, não renderão tanto.


A dúvida que o leitor levantará contra este escriba não está de todo errada. Todos nós, em nossas profissões, tentamos convencer nossa clientela de que nossos conselhos são importantíssimos, e muitas vezes deixamos parecer que são a coisa mais importante do mundo. Semana passada, não pude mais fugir: tive de solicitar uma consulta de emergência à minha dentista; ela me censurou por estar afastado do consultório há três anos. Deu-me várias orientações, reclamou que ando descuidado com a escovação etc. e tal, sugeriu-me consultar outros profissionais, especialistas. E repetiu, com insistência, a questão das escovações.

– Olha, não tenho tempo para tudo isso, não – respondi-lhe severo. Ela se espantou com a minha resistência, minha “desobediência” (médicos e dentistas não são preparados para respostas contrárias às suas recomendações).




– Mas você tem que ter tempo! Crie o tempo, se organize! – disse ela, taxativa. Eu fui enfático, também:



– Diga-me, quantos livros você leu esta semana?

A moça gaguejou. Como assim?, quis saber:

– Ora, eu acho que não li nenhum este ano.

Imaginem como fiz a festa! Peguei-a! Mas nada disse, apenas olhei com uma expressão de autoridade no olhar.

– Eu sei que ler é importante. Mas a escovação...

Interrompi-a:

– Está vendo? As pessoas andam sem tempo. Vamos combinar assim: eu vou gastar mais tempo escovando os dentes; mas você vai gastar mais tempo para ler.



A dentista sorriu e eu fiquei matutando... Como continuar lendo enquanto escovo os dentes? Mas volto à realidade e fico chateado comigo mesmo. Afinal, eu pago para levar aquela bronca e mudar de atitude. E ela? Não me pagou nada!


Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras. E-mail: poetaluizdeaquino@gmail.com

quarta-feira, novembro 12, 2008




Hiroshima e as nossas favelas




“Hiroshima, 63 years later”... É, trata-se de uma seqüência de belíssimas fotos da cidade que os americanos detonaram em 6 de agosto de 1945. Bem, o que se detonou foi a bomba, mas os jovens me entendem, não é? Aquele bombardeiro, um avião cujo comandante mandou inscrever o nome “Enola Gay” (nome de sua mãe), lançou a bomba que fez todo aquele estrago, matou muitos milhares de pessoas, destruiu edifícios e equipamentos urbanos; e hoje, sessenta e três anos passados, a cidade é moderníssima, cheia de formas arrojadas e cores alegres.








Bem, a amiga que me enviou a mensagem apenas a repassou, e eu não passei adiante; se o fizesse, acrescentaria um comentário cáustico: a autora da frase após a última foto devia ir morar lá. Ela escreveu “No mesmo período o Rio de Janeiro construiu 400 favelas. Beijos Carinhosos,” e assinou com um apelido. É possível que se trata de alguma dondoca, ou de alguém muito mal informada. Devia, antes, saber como era o Brasil em 1945 e como é o Brasil de hoje. Temos, sim, problemas aos montes, mas o que a leva a crer que o Japão não os tenha? Ah, claro!, as fotos de Hiroshima atual.
Não gosto de gente assim. São pessoas que passaram pelas escolas, mas não sorverem bem o que as escolas poderiam lhes ensinar. São pessoas que vêm as favelas, mas nada fizeram no sentido de melhorar a vida dos outros. São pessoas que reclamam da segurança, apavoram-se diante da violência, das balas perdidas e das mortes nos tiroteios, mas continuam consumindo as drogas que sustentam o tráfico.






Maus cidadãos. Sem dúvida alguma, são maus cidadãos. Não direi que são maus brasileiros porque gente assim existe em qualquer lugar do mundo, até mesmo na Hiroshima que essa dondoca divulga como exemplo de quem “não faz favelas”. Essa mulher (a julgar pelo apelido, é uma mulher) deveria ser identificada e situada nos gráficos estatísticos; certamente, está no topo da pirâmide, participa da expressiva minoria que detém a maior parte do PIB nacional, deve colecionar grifes, desde os sapatos até as calcinhas, certamente não se constrange em sonegar impostos e adquirir produtos contrabandeados.






E aí, virão algumas leitoras puxar-me a fralda da camisa: “Você é venenoso. Você é cáustico. Você critica todo mundo”. Isso é muito interessante: elas me criticam como bem entendem, mas criticam-me por criticar. Eu sei, eu sei: o problema é que, ao traçar um perfil como o dessa mulher que adora as fotos de Hiroshima e admira a garra dos japoneses, fatalmente eu as qualifico. As que me criticam não gostam de se sentir retratadas e mesmo que seus nomes não apareçam nas minhas linhas escritas, elas vestem a carapuça.


O lado triste das favelas vai muito além do visual, minhas queridas. Aquele amontoado de pequenas habitações, aquele presépio sem santidade abriga sentimentos e talentos. As favelas não são apenas quartéis do tráfico; as favelas não são uma boca-de-fumo em cada barraco. As favelas são, muitas vezes, habitat da poesia, da música e da criação plástica que encanta o mundo. Melhor seria se o Brasil tivesse as benesses que se deram aos japoneses após aquela guerra de fogo e sangue, mas aquele foi o preço pago, antecipadamente, para que a dondoca pudesse, sessenta e três anos após, encantar-se ante as fotos e morder o próprio rabo, como serpente desavisada.



Nestes 63 anos, o Brasil interiorizou-se, cresceu social e economicamente, espargiu energia e luz por todo o seu território, criou veias de asfalto sobre o chão dos sertões. Leiam-se umas poucas páginas da nossa História para melhor se informar e não sair por aí, usando o que há de mais sofisticado em comunicação para falar besteira.
Há problemas, sim; e muitos! Mas há também uma gama enorme de bons brasileiros que, devagar e com tenacidade, com competência e fé, vêm corrigindo o rumo e retocando a paisagem dessa nossa História. Claro que essa senhora não se inclui; mas é possível que, surpreendentemente, de sua prole surjam seres capazes de aliar-se aos que bem trabalham, sem menosprezar o feito dos nossos.




Luiz de Aquino é escritor e jornalista, membro da Academia Goiana de Letras. E-mail: poetaluizdeaquino@gmail.com

sábado, novembro 08, 2008

Onde falta o instinto

Onde falta o instinto


O homem é, talvez, o único animal que, por dedicar-se integralmente à sua capacidade racional, se distanciou da segurança que os instintos proporcionam às demais espécies animais. Tudo o que nos põe em risco, desprezando-se as relações da cadeia alimentar, decorre da nossa condição racional, ou seja, do desprezo que damos aos cuidados intuitivos e ao arrojo que nos é próprio.
Nunca ouvi falar em choque de aves em vôo, mas muitos foram os encontros de aviões (em vôo ou mesmo no solo). Animais não se atropelam, respeitam-se entre si e não há matança por razões de patrimônio (essa coisa maluca a que chamamos de guerra). Nenhuma espécie dentre os irracionais carece de códigos – apenas dos de defesa própria, quando se é caça, ou de tática de ataque, enquanto se é caçador.










Mas os humanos, não; os humanos – nós, os tais de “sapiens” – estes somos tão metódicos que nos damos ao luxo de escravizar outras espécies, num processo chamado de “criatório”, para assegurar-nos o alimento. E como temos consciência de futuro (relativamente, eu sei), usamos esse processo de criação, produção, industrialização, distribuição e outros “ãos” para a formação de patrimônio.
A vida humana é, pois, cada vez mais complexa. O homem atual não se alimenta de praticamente nada “in natura”, pois desde a água até os mais sofisticados alimentos, tudo passa por processos e métodos científicos e técnicos. E tudo custa muito, seja em dinheiro, seja em aprendizado e em desgastes pessoais.

Um jovem de vinte anos não consegue entender como nós, os que para eles somos “mais velhos”, vivíamos sem telefone celular (mal sabem eles que nós próprios, seus pais e avós, não tínhamos sequer telefone fixo para comunicação local e que falar com outra cidade era “fazer um interurbano”). Eles não conseguem imaginar que, quando tínhamos a sua idade, o carro era artigo de luxo. Aliás, a geladeira doméstica também era luxo.
E trânsito? Na minha bucólica Caldas Novas, os carros não eram mais que umas poucas dezenas. Lembro-me bem que as placas de automóveis, antes de se adotarem letras na combinação, eram em três parcelas, e as placas de Caldas Novas, até mais ou menos 1972, eram 1-75-00 até 1-75-99. Nunca se chegou a esses previstos cem veículos, nas zonas urbana e rural. Vale lembrar que, naquela época, motocicleta era raridade; se alguma havia por lá, seria apenas uma. Ou o dobro disso.
Em poucas décadas (pouquíssimas), o Brasil do sertão foi descoberto. Sim: Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil do litoral; Juscelino Kubitschek descobriu o Brasil do sertão. Com isso, incrementaram-se as estradas e as indústrias; renegou-se o trem em favor do caminhão; os ônibus e os carros de passeio multiplicaram-se nas cidades e nas rodovias. Jamais, na minha juventude, imaginávamos que Caldas Novas teria linhas regulares de ônibus urbanos, por exemplo.
O sertão cresceu, apareceu uma tal de qualidade de vida, as cidades todas ganharam asfalto, boa parte delas foi agraciada com água tratada, algumas com esgotos, os carros-de-boi deram lugar às caminhonetes, os cavalos e jegues foram substituídos pelas bicicletas e, em seguida, pelas motos. Mas aí surgiram também os acidentes de trânsito, os aleijumes (consta que mais de 60% dos deficientes físicos são vítimas de trânsito) e as mortes, todas elas precoces, obviamente.
As mortes e as seqüelas de trânsito formam números magistrais. Isso é estatística. Mas só é estatística enquanto envolve pessoas desconhecidas. Quando as vítimas, sejam elas mortas ou sobreviventes, são da nossa família, deixam de ser estatística: viram tragédia.
Muito há por se fazer no sentido de se resgatar esse quadro de gigantismo estatístico ou de tragédia humana. E tudo, no consenso dos estudiosos, dos técnicos e dos curiosos (feito eu), passa pela educação (ou reeducação) de trânsito. “Se você mudar, o trânsito muda”, diz o slogan do DETRAN de Goiás. E só muda com práticas racionais de educação. Ou reeducação. Isto se pode fazer individualmente, com uma tomada de consciência (pois as leis existem, são acessíveis e precisam apenas de ser cumpridas), ou politicamente, com ações decididas dos órgãos e autoridades ligadas ao sistema, desde os gestores e controladores do trânsito até as escolas e os hospitais, destino indiscutível das vítimas.
Tudo isso por conta da nossa condição de animais racionais. Não fôssemos tão racionais, nosso instinto de sobrevivência dar-nos-ia a segurança que nos falta.


Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras. E-mail: poetaluizdeaquino@gmail.com

sexta-feira, novembro 07, 2008

O predador do amor

O predador do amor

Não há, ainda – mas não duvido que surja logo, logo – algo da chamada tecnologia capaz de pesquisar e medir as palavras mais usadas quando não estamos nos comunicando no “estrito cumprimento do dever”. Não estranhem as aspas, é que no estrito cumprimento do dever, em qualquer das profissões, manipulamos jargões e frases feitas tal um pedreiro com sua trolha, um mecânico com as chaves ou um militar de Pinochet com suas armas na abnegada missão de eliminar adversários – coisas que, disseram em algum momento do passado, especialistas brasileiros ensinaram aos “irmãos de fardas” do país irmão, depois que os “nossos” aprenderam com rambos de outro país, o dos “irmãos do norte”.
Fora do espaço e do palavreado profissional, nossa língua portuguesa é outra. A língua, pois, é feita e dita como ditam o momento e as emoções. No bate-papo descontraído num percurso de automóvel ou de ônibus, nos restaurantes, em família ou à porta da igreja antes dos ofícios religiosos, à beira das piscinas ou em torno do tanque, falamos do que sentimos, do que nos aflige e do que nos encanta. Já notei que, principalmente entre jovens, a palavra que as mulheres mais dizem é “ele”.
Mulheres e homens falam de roupa, de preços, de futebol, do sexo oposto, da vida alheia, da novela global, de filhos, de programa mundo-cão na tevê, de política, de economia e, inevitavelmente, de amor. Difícil é ouvir de alguém uma boa definição de amor. Amor ao próximo, amor aos pais, amor aos filhos, amor ao amigo, amor, amor, amor... Paixão!
Sim, o amor de que mais se fala não é amor, é paixão. O amor pela via do sexo, o amor de conquistas e traições. Sim, porque amor entre amigos, amor ao desconhecido, amor entre familiares e colegas – estas são as formas de amor sem sentimento de propriedade. O amor com tesão, este é possessivo, egoísta, dominador e jamais acontece sem o ingrediente da mentira. Mente-se para se fingir bonito, bom, tolerante, parceiro, carinhoso, leal. A intimidade poderá mostrar a face oculta que, nos tempos de conquista, adormecia. Feito político em campanha.
Dias atrás, num carro parado à porta do meu prédio, a mulher ao volante chorava. O homem no banco do lado olhava para o céu, como se nada houvesse. Pensei nos dias de conquista: presença, presentes, flores, passeios, carícias, viagens, hormônios a mil! Alguém me disse, no tempo da minha adolescência, que o amor (paixão) era como chiclete: gostoso apenas enquanto durava o sabor de açúcar; depois, era mastigar a goma insossa. É verdade: nada como o casamento para pôr fim à paixão. O casamento é o predador natural do amor. Uma poeta daqui da terrinha costuma dizer que as mulheres têm no casamento um sonho, mas o sonho só vai até a subida do altar: “Ao descer, começou o pesadelo”.

domingo, novembro 02, 2008

Paisagens e janelas


Quem mora em apartamento, mas já viveu em casa, sabe o quanto é difícil acostumar-se com a frieza dos edifícios. A gente vive numa proximidade física inversamente proporcional à proximidade daquilo que, quando se mora em casa, se chama vizinho. Imaginem! As pessoas a uma distância tão próxima que muitas vezes sabemos do que se passa em suas casas apenas por ouvir. Ouvimos suas músicas preferidas e as turras das crianças e adolescentes, a algaravia dos jovens, as discussões entre pais e mães, as broncas de sogras, as fofocas das empregadas; sentimos os cheiros de suas comidas, percebemos os olhares de paixão de suas filhas moças, a angústia pelas notas baixas, mas não somos vizinhos: somos, sim, solenes estranhos que se atrevem a cruzar com eles nos corredores e no saguão, bem como a lhes dar bons-dias nos elevadores.
Goiânia, até os anos 60, ainda era uma cidade de casas. Apartamento, aqui, era raridade. Aliás, ao entrevistar o advogado Wagner de Barros para o “Onde anda?” (uma série de entrevistas para o DM, em 1994, que acabou se tornando o meu livro Deu no jornal), ouvi dele que o primeiro apartamento da nova capital foi construído sob a batuta de seu pai, o gerente do Banco do Brasil Benedito Borges Barros. Tratava-se da residência do gerente na nova sede da agência local do banco, na esquina da Avenida Goiás com a Rua 1, no centro, prédio hoje ocupado pelo Banco do Estado. As pessoas da cidade, contou-me ele, visitavam a família para conhecer um apartamento. Isso, lá pelos anos 40.
A vida moderna é assim, infelizmente. É bom que Goiânia ainda conserve muito de casas, muito de bairros formados daquilo que os arquitetos e outros técnicos chamam de habitações individuais – as casas. Família morando em casa tem vizinho, e vizinho é quase um parente. Cora Coralina, já idosa, para escapar das constrangedoras festas pelo seu aniversário (20 de agosto), institui na sua Goiás Velho (tem gente que não gosta que se fale assim; eu gosto, tem um sabor de visita ao nosso Goiás bucólico) o Dia do Vizinho. Os vilaboenses gostam de festejar o aniversário da poeta maior trocando doces, salgados e quitandas por sobre os muros ou de porta em porta.
Apartamento obstrui a paisagem. Aqui em casa, no oitavo andar, desfrutávamos, há seis anos, da paisagem de 180º – a outra metade já nos era tomada. Aos poucos, outros prédios foram surgindo e em pouco nada nos restará senão a visão panorâmica de infindáveis janelas. Janelas indiscretas, como naquele antigo filme com James Stewart.
Na falta do verde e das ruas esquadrinhadas, divirto-me à janela vendo janelas. Vejo janelas pela sacada e pelas janelas de frente, e vejo sacadas e fundos de apartamentos pelas janelas do fundo. Vejo um vizinho sem camisa ao computador, possivelmente navegando pela Internet. Donas de casa na lida, filhas mocinhas ajudando, empregadas cometendo erros censuráveis porque a patroa trabalha fora...
O morador de um quinto andar, possível vivente sozinho, todo nu, prepara sua comida ao fogão, sem temer queimar o precioso ou inválido – mas de qualquer forma, sensível, e tão ao alcance das panelas.
No prédio em frente, ao pôr do sol, pelo menos duas moradoras praticam esporte em aparelhos domésticos – uma na bicicleta, outra na esteira.
Ao fundo, na sacada, um moço fuma, deixando evidente que respeita a família e não polui o ambiente com o excesso de fumaça. Quando acaba, pressiona o toco do cigarro em algo que imagino um cinzeiro; vai lá dentro e volta com uma menininha de pouco mais de um ano ao colo. Abraça-a com ternura, beija-lhe a fronte. Afaga-a como um menino envolve seu brinquedo preferido.
Salto a imaginação para o futuro e vejo a menininha de cabelos pretos já moça, chegando da faculdade, mãos dadas com um amigo ou namorado. O pai, cabelos brancos, sentado na sacada, fuma. Ele já terá descoberto que seu brinquedo da mocidade agora é gente grande também.