Polícia versus Samba
Luiz de Aquino (Para Denise Godoy)
O assunto parece já cozido e recozido. Mas fica em mim uma espécie de comichão, um “trem doido” a me chamar para o pátio e, já que não sou de capoeira, não dou pernada nem rabo-de-arraia, vim deixar meus pitacos. Tenho acompanhado a ação da Polícia Militar em seu papel imediato, o de guardiã da ordem e restauradora da paz, como acontece com monótona frequência nos eventos de futebol e nas investidas contra o crime, fechando com a Polícia Civil as tabelinhas eficientes de esperar, cercar e, no momento certo, intervir.
Das duas corporações, nós, os sofridos veteranos da velha e desgastada ditadura militar, guardamos péssimas lembranças. Elas foram agentes cruéis da repressão. Eram elas que nos mandavam dispersar, calar, correr... Era muito fácil e, parece, agradável ser polícia naqueles tempos. Qualquer amarra-cachorro gritava com qualquer cidadão. E de gritar a espancar, prender, arrebentar e matar, o passo era curto.
Imagino que, no Brasil e na América Hispânica, fardados vêm civis com ódio. Sempre se tem notícias de fardados (ou policiais civis e federais) agredindo a bel-prazer. Está certo, as coisas estão mudando; mas mudam muito devagar. Por outro lado, outra marca latino-americana é a aversão que mestiços pobres têm por mestiços pobres. Na campanha para presidente, em 1989, um motorista profissional dizia-me de sua preferência eleitoral, totalmente contrária ao operário Lula porque era pobre e feio, parecia mestiço. O motorista era pobre e feio e parecia mestiço também.
Samba é coisa de preto. Em Goiânia, carnaval e samba é coisa de muito pouca gente: dominantemente pretos pobres, cercados por meia-dúzia de intelectuais que gostam de coisa de preto pobre. Nas polícias de todo o Brasil, costumam predominar mestiços pobres. Farda dá sensação de poder. Arma, também (ainda mais se o uso da arma é legitimado por leis e regulamentos e se essa arma é fornecida pelo poder público); agora, imagine-se um homem fardado, armado de pistola e cassetete (ou espada, que ainda existe) e montado num puro-sangue.
É poder demais da conta!
Alguém, naquele desfile de blocos de carnaval, teve a infelicidade de jogar cerveja num soldado. Errou. Não na pontaria, mas no ato. Errou feio! Agrediu um trabalhador, um funcionário público. E o agredido protagonizou o erro maior, pois seus pares aplicaram as fardas e o aprendizado anti-tumulto em favor do corporativismo, contrapondo-se ao interesse maior – o bem-estar e a ordem. Que prendessem o agressor e o levassem à delegacia, que o delegado lavrasse um flagrante, cobrasse fiança, montasse o inquérito etc. – e o agressor veria que não vale a pena desacatar nem agredir funcionário público, militar ou civil. Não vale a pena agredir ninguém.
Isso foi no comecinho do carnaval, em Goiânia...
Esta semana, um garçom, cansado pelas quinze horas de trabalho, esperando um ônibus que nunca aparecia, adormeceu num banco no Terminal Cruzeiro. Foi o bastante para que cinco fardados de uma vigilância privada o espancassem. Essa guarda é contratada pelo SETRANSP, o Sindicato das Empresas de Transporte, que alguns canais de notícias dizem ser órgão público.
O SETRANSP não é órgão público. A vigilância não é polícia (mas emprega PM em folga). E o trabalhador que só queria chegar à sua casa, vencido pelo sono, foi tratado como baleia por pescadores clandestinos.
A Polícia Militar sabe como tratar seus cavalos e seus cães. Precisa melhorar no trato com a população civil que paga impostos. E as pessoas civis precisam aprender a respeitar outras pessoas. Ninguém tem que aguentar um copo de cerveja na cara, ninguém tem que aguentar socos e pontapés de quem quer que seja.
A PM, a gente sabe, investiga e pune os seus, ainda que sem publicação de resultados. Mas... E aqueles guardas no Terminal Cruzeiro, hem?
Pau neles também, uai!
Luiz de Aquino é escritor e jornalista, membro da Academia Goiana de Letras. E-mail: poetaluizdeaquino@gmail.com