Muito já se leu, já se pensou e se escreveu em torno da máxima de Leon Tolstoy: “Se queres ser imortal, canta a tua aldeia”. Alguém da nossa pátria-língua portuguesa, adepto da rima simples, adaptou a prédica: “Se queres ser imortal, canta o teu quintal”. E muitos assim o fizeram.
É da prática brasileira o conceito de um modo peculiar de escrever, que críticos literários chamam “regionalismo”. A expressão, curiosamente, fixa-se quase em uma única exigência: a linguagem. O modo de falar nos sertões, nas roças, nos pampas e no agreste, ou ainda na floresta e no “cerrado úmido”, que é o Pantanal, a marca que diferencia o subgênero, se assim o posso chamar.
Muitos escritores, com ênfase para os nossos patrícios goianos e mineiros, estimulados por Hugo de Carvalho Ramos e João Guimarães Rosa, repetem com maestria o modo nativo das falas, sem as interferências puristas dos eruditos e acadêmicos ou, pelo menos, dosando a mixagem com o propósito final de bem identificar nossas coisas telúricas. Destaco, do lado de cá do Rio Paranaíba, Bernardo Élis e, com uma moldura ainda mais emblemática, o patureba goianíssimo Carmo Bernardes.
É de justiça memorar aqui Regina Lacerda, a folclorista, e o romancista Eli Brasiliense, filho de Porto Nacional, casado em Pirenópolis e pioneiro desta amada Goiânia. E já que falei em Pirenópolis, cabe também uma pérola entre os olhos do meu parente Jesus de Aquino Jaime, poeta e romancista, autor pioneiro (ao lado do já citado Eli Brasilense) de obra que tomou Goiânia por cenário. De Eli, o valioso “Chão Vermelho”; de Jesus, costumo apregoar que a municipalidade deve reeditar, e agora, com muita urgência, o “Cometa de Haley”. Obras como essas devem ser lidas e analisadas nas escolas da cidade e do Estado.
O que leva uma pessoa a cantar e decantar sua terra? Não se trata apenas do apego ao torrão onde se plantou o umbigo ressecado, mas o espaço onde se cresce e se forma a pessoa, auferindo do ambiente natural e das circunstâncias sociais elementos determinantes de sua personalidade intrínseca e de seu modo de ser entre os semelhantes.
Nós, escribas de arte, produzimos poemas para a leitura silenciosa e o declamar entre pares e apreciadores; fazemos também letras-poesia para canções várias, com as cores do amor e da paixão, do bairrismo e dos ideais políticos, do humor e da filosofia. E é apaixonante a parceria com os artistas da música, sejam instrumentistas, compositores, cantores e bailarinos.
Escrevemos teatro, que é um modo de imitar a vida, e derivamos do teatro o cinema e a tevê. Mas divagamos, se pudermos, pelo ofício das notícias, modo imediato de satisfazer a curiosidade e a fundamental carência de informações dos concidadãos. Costumo dizer que todo jornalista sonha ser escritor, e que todo escritor almeja ser jornalista. Tive a ventura de crescer por igual nos dois segmentos, sem prejuízo das minhas atividades como bancário e professor.
Ah! Devo contar: nesses quase cinquenta anos em Goiânia, foram poucos aqueles em que tive apenas um emprego, e empregava-me onde pudesse atuar com a desenvoltura de quem faz o que gosta. Fui, primeiro, auxiliar de escritório; depois, vendedor de livros em domicílios, cobrador, bancário, professor (por paixão e devoção; por isso, formei-me na tradicional Universidade Católica de Goiás, hoje, Pontifícia). Servi também à Telegoiás e de lá transferi-me para as redações de jornais.
Publicava artigos, contos e reportagens, eventualmente, nos periódicos locais. Minha estreia deu-se no jornal “O Anápolis”, em 1967; depois, estendi minhas publicações para “O Popular”, “Folha de Goiás” (que se grafava com Z e sem acento) e outros; empreguei-me no “Jornal Opção”, em sua fase diária; no combativo “Cinco de Março”, na “Folha de Goiás” e no “O Estado de Goiás”. Por quinze anos, fui funcionário da Assessoria de Imprensa da Prefeitura de Goiânia. Demiti-me por sugestão estranha de um prefeito que se recusava a permitir a utilização do tempo de serviço para aposentadoria na Previdência Social.
Enquanto corria em busca de notícias, por longas horas, finalizando a jornada com a redação das matérias, sentia que o ofício jornalístico preenchia em mim o prazer e a necessidade da escrita. Esse trabalho dava-me duas alegrias, justamente a construção da notícia, tendo os fatos como matéria-prima, e a euforia de sentir as mãos fluindo no teclado o texto que me elevava à condição de artesão do barro que faz o pote, o prato e a estátua.
Nas madrugadas, logo após o expediente na redação, era a hora do relaxamento e do pão para o corpo, e esse pão tanto era uma pizza quanto tiras de carnes aceboladas, irmanadas à indispensável cerveja que alguns colegas definiam como “o pão da alma”, por ser inebriante; evocavam, esses colegas, o velho e esquecido conceito que tratava o álcool etílico como “bebida de espírito”. Alguns desses bons e inesquecíveis amigos estão por aqui, para minha alegria!
Fazer a notícia, porém, não me bastava. Era-me comum render uma ou duas páginas de notícias a cada dia, especialmente na “Folha de Goiás”. E eu cuidava, muitas vezes, de reservar espaço em que publicava, como análise, um texto em linguagem típica de crônica – o modo literário mais apreciado por leitores de jornais e que alguns acadêmicos e professores universitários entendem ser subliteratura; a eles, respondo que literatura não se define pelo gênero, e sim, pela qualidade do texto, sob qualquer forma.
Aquilo de analisar as notícias conduziu-me ao ponto que eu sonhava, sem ter me dado conta: o de cronista. Era leitor costumeiro de Nelson Rodrigues, Adalgisa Neri, Jacintho de Thormes e Stanislaw Ponte Preta (o Sérgio Porto), na “Última Hora” do Rio de Janeiro ainda capital, nos últimos anos da década de 1950.
Pelas crônicas, comecei a vida jornalística; pelas crônicas, marquei meu estilo de texto em jornais e revistas ao longo de um pouco mais de quatro décadas. Atualmente, minha prática de jornalista restringe-se às crônicas. Lamento não ter um emprego em jornal diário para render uma crônica todos os dias, como fiz por alguns anos. Ao cronista, nunca faltam temas; escrevendo todos os dias, ficamos em dúvida quando da escolha.
Foi desse modo que tanto escrevi (e escrevo) sobre Goiânia. Gosto da cidade, gosto das nossas ruas e bares, do nosso comércio, hoje, radicalmente dividido entre as ruas e os xópins. Gosto de conversar com quem me antecede nesta cidade, e gosto de falar aos mais moços sobre o que sei, do que me recordo, de como eram os nossos cenários.
Não sou historiador. Fiz-me geógrafo por excesso de curiosidade, mas meu propósito maior sempre foi a Educação. Não me satisfaria sendo bacharel, precisava mesmo ser licenciado. Infelizmente, interromperam-me o ofício das salas de aulas e dos serviços nas escolas. Era 1971, os “anos de chumbo” estavam, então, mais cinzas do que antes. Dois ou três professores, mais velhos que eu, colegas de ensino na Rua 21, não aceitavam o que lhes parecia nova liderança no colégio. Liderança aos olhos dos alunos, é bom que se diga. Um jovem professor, a quem os adolescentes estudantes atendiam com muito mais presteza e confiança do que aos maduros mestres, certamente lhes parecia alguém perigoso.
Perigoso ante os projetos dos que, àquela altura da vida política na capital, cuidavam muito mais de suas carreiras e perspectivas de cargos públicos do que da boa formação de novos cidadãos. Não me envergonho de nenhuma palavra pronunciada em sala de aula ou no pátio, nas conversas informais com os estudantes. Destes, um se fez diretor e até presidente do Banco Central do Brasil; outros muitos são profissionais liberais da saúde, da engenharia e das leis; muitos são professores, alguns políticos; há os que se fizeram magistrados e pelo menos um chegou a desembargador do Tribunal de Justiça do Estado. E foram poucos os meus anos a ensinar disciplinas curriculares! Os perseguidores, porém, conseguiram apenas tirar-me o ofício de professor regular. E em lugar do mestre-escola, surgiu o palestrante. Nestes quase quarenta anos, proferi centenas, talvez milhares de palestras para estudantes, desde os pequeninos da pré-escola até os de pós-graduação. Se eu era “um perigo”, como professor, que mal terei causado aos jovens e ao país como jornalista e escritor, ou como palestrante para as novas gerações? Isso, felizmente, eles não me tiraram!
Meus escritos de jornais, bem como os poemas concebidos nas madrugadas nos bares, não matavam a minha fome de letras. Meu livro de estreia veio à luz em 1978. Devia ter sido lançado em Caldas Novas, meu berço natal, mas não havia lá, então, clima propício a algum evento literário. Devido aos laços de família, sempre me liguei a Pirenópolis, acolhido com carinho pelo avô paterno, Luiz de Aquino Alves. As ruas íngremes, as serras a moldurar luares, o rio a cantar cachoeiras como acordes de canções de serenata, os olhares de belíssimas jovens e o aconchego de parentes próximos e remotos, tudo isso era como receita de quitanda goiana. Não havia, como não há, modo de rejeitar o bem-estar que nos propicia a terra de meu pai, que preferiu, um dia, há setenta anos, tornar-se também caldas-novense. Assim, e sob o apadrinhamento do professor Gomes Filho, pus um pé no ofício de escritor de livros.
Em outubro de 2009, por proposta do vereador pirenopolino Manuel Inácio d’Abadia Aquino e Sá Filho, tornei-me cidadão honorário da antiga Meia-Ponte do Rosário.
Neste setembro, um dia após o meu aniversário de sessenta e cinco anos, oficializa-se a minha condição de goianiense. Aqui, como em Pirenópolis, faz-se um documento. Um papel que enfeitará minha parede, mas que enriquece o meu coração de poeta e cronista apaixonado. Sou goiano de todos os quadrantes. Orgulho-me dos limites, sejam o Araguaia, o Paranaíba ou a Serra Geral; gosto de pequi e guariroba, e não gosto que abreviem o nome do nosso palmito amargo; gosto de frango domingueiro, com caldo grosso, e gosto do som arredondado do erre caipira na fala da nossa gente. Sou amante desta Goiânia de música e poesia! Duvido que se faça, em outro local do país, a MPB que consagra para a história tantos compositores de versos e melodias, tantos instrumentistas e cantores. Goiânia é capital do sertanejo contemporâneo, mas é também a capital do roque e do riperrope, palavras inglesas que escrevo em modo de português goianês. Goiânia é a capital da dança moderníssima, deixando para Joinville o privilégio de ser a referência brasileira da dança clássica. Goiânia é a Meca de todos os goianos, também de brasileiros migrantes que enriquecem nossas universidades, nossas empresas e fomentam nosso agronegócio. Falta-nos, talvez, um amor ainda mais apegado às coisas da terra, pois ainda somos uma sociedade em formação. Falta-nos zelar mais pelos cursos d’água da cidade e de Goiás, e falta-nos cuidar melhor do cerrado, devolvendo-lhe reservas indispensáveis.
Falta-nos amar melhor nossa cidade. Cuidar do patrimônio público, dos lugares e peças históricas, de fazer de nossas calçadas pistas confortáveis para os transeuntes, com o zelo que devemos oferecer aos que carecem de mobilidade física, como cadeirantes, deficientes visuais e portadores de outras limitações.
Falta-nos pouparmo-nos dos choques das torcidas esportivas.
Falta-nos melhor orientar os jovens para que fiquem distantes das drogas, desde o tabaco e a nicotina até o famigerado e odiento craque.
Falta-nos primar pelos velhos; respeitar pai e mãe e as leis de trânsito, e falta-nos também cobrar mais e melhor dos governantes e dos parlamentares. Eles serão bem mais eficientes se lhes mostrarmos, com autoridade e respeito, o que queremos e o que podemos oferecer para que Goiânia seja uma cidade sempre melhor.
Esta é a minha terra. Esta é a minha gente. Esta é a minha cidade. Eu te amo, Goiânia!
L.deA. e Célia Valadão entre os homenageados