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sábado, fevereiro 23, 2013

Regimes e conveniências


Yoani: voz solitária pela liberdade em Cuba; a esquerda brasileira exalta os resistentes à ditadura militar, mas deplora a  militante cubana. 


Regimes e conveniências


Ver a vida acontecer, por seus detalhes, é encontrar o contraponto entre todo o manancial de teorias que tentam conceituar, de modo genérico, tudo o que acontece e o que se sente. É que a filosofia e a ciência, pela investigação, gostam muito de regras, de receitas, de definições; e quanto mais vivo – e como tenho vivido! – mais me convenço de que a natureza não se repete. Duas folhas de uma mesma árvore jamais são iguais, e cada fruto também traz a sua individualidade.

E as pessoas? Cada qual com o seu conjunto de características que, junto ao seu modo individual, constituem a tal de personalidade. A capacidade de resumo, ou de organização, do bicho sapiens chega a elaborar ações de grupo de modo tão rigoroso, sob regras e disciplinas tão peculiares que chegamos a entender que o rigor de uma coreografia ou de um arranjo musical asseguram a repetição de um evento na mais elevada perfeição matemática. Ao menos aos nossos olhos leigos, pois que os virtuosos de tais gêneros certamente encontrarão diferenças.

Em atividades como os esportes, notadamente os esportes grupais, nem mesmo o chamado tempo regulamentar segue um rigor de repetição. O mesmo se dá numa dança folclórica, como a quadrilha, e nas encenações teatrais. Sempre há algo que se muda. É como num jardim de petúnias – o que à primeira vista parece repetir-se, de perto evidencia-nos um universo de variedades.

Tudo muda conforme a região e o tempo. Dias atrás, lembrei-me de um velho ditado que dizia algo parecido com “Cada terra tem seu fuso, cada fuso tem seu uso”. O bom dos provérbios é que eles pretendem nos mostrar uma evidência, mas não pretendem ser definitivos. Haja vista que há sempre um contraditório a outro: “Pedra que rola não cria musgo”, a sugerir resignação; e “macaco que muito mexe quer chumbo”, a reafirmar o anterior. E então aparece “Cobra que não se arrasta não engole sapo”, entre outros.

Vejo as novidades nacionais repetindo fatos, como a violência das torcidas de futebol – não satisfeita em ver seu time campeão mundial, torcedores marginais do Timão paulistano exportaram a violência bárbara: dispararam, com intenção de fato belicosa, um petardo contra a torcida adversária, matando um garoto na Bolívia.


Yoani: volta pelo mundo em 80 dias.
Depois de 54 anos de ditadura, a nossa tão admirada Cuba dá sinais de distensão e libera a jornalista oposicionista Yoani Sanchez para viajar ao Brasil, onde foi recebida com rejeição “ideológica”: militantes de esquerda não gostam de saber que alguém se opõe ao regime da ilha e manifestam-se contra a presença da moça, e esta, tolerante, responde que quer essa democracia em seu país.

Há 40 anos, queríamos no Brasil o que Yoani Sanchez quer em Cuba. Estávamos errados?

Engraçado... Esses caras que a rejeitam diziam querer democracia. Mas opõem-se a esse conceito de convivência, distribuindo na Internet um apanhado de bobagens contra a militante libertária cubana. Isso me recorda um velho amigo, já falecido, militante da esquerda e irônico por excelência, que “tentava perdoar” os milicos que cerceavam as liberdades no Brasil dos generais:

- Eles estão certos; ditadura é ruim quando é “nós por baixo”; mas “nós no cabo do chicote” é muito bom!


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sexta-feira, fevereiro 15, 2013

Se é de casa, não presta


Fotos: Internet
Desfile na Sapucaí, Rio de Janeiro, este ano: a campeã Unidos de Vila Isabel


Se é de casa, não presta (*)



Enfim, chegada a Quarta-Feira de Cinzas, o brasileiro começa a trocar votos de Feliz Ano-Novo! Mas o rescaldo do carnaval não se limita ao começo efetivo do novo exercício fiscal, político, profissional etc. As primeiras notícias da semana, que começa na quarta, e da manhã (que começa ao meio-dia), referem-se ao balanço parcial dos acidentes rodoviários – muitos deles, verdadeiros desastres, com feridos graves e até mortos. E as chamadas para o julgamento das escolas de samba que desfilaram na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro.

Na esfera regional, notícias da terra. E para nós, replêis de cenas dos quatro dias nas principais cidades do interior em que o carnaval de fato acontece, em alguns deles com a heresia da inserção de ritmos estranhos, como o sertanejo comercial que virou marca de Goiás ou o axé baiano – novidade para o carnaval de Salvador que as comunidades menos aquinhoadas com o talento dos compositores locais adotam como atrativo.

Excelentes nomes da música feita em Goiás: Luiz Augusto, Xexéu e Amauri Garcia

Meu amigo Amauri Garcia, compositor de mão cheia, cantor de rica voz e jornalista competente, queixou-se no Facebook que, em Caldas Novas (minha querida terrinha), pontearam algumas bandas goianas, mas a mídia autorizada a transmitir os “folguedos momescos” (às vezes sou dado a evocar expressões e falas em desuso) de Goiás. Houve chamadas e, depois, cobertura da apresentação do mineiro Alexandre Pires, mas nenhuma referência – nem antes, nem depois – à banda do festejado Xexéu ou aos sambistas Heróis de Botequim, entre outros.

Reforcei o grupo que se solidarizou com a queixa do parceiro de Luiz Augusto (a dupla, que não é sertaneja, é detentora de vários prêmios, inclusive de amplitude nacional); a queixa veio em razão do pouco caso que setores da mídia local dedicam aos artistas da terra. O que eu disse? Que não é só na música, pois se perguntarem a qualquer pessoa o que está lendo, a resposta jamais contempla autor goiano ou radicado aqui.

Ao meu comentário, alguém estampou as letras kkkkk, sem palavras, debochando ou vangloriando-se do que eu disse. Soou-me como o velho conceito, dominante em Goiânia, de que se é de casa, não presta. Não ligo, como ligo para vaias. Nunca consegui vaiar ninguém, e vaia é o único som que, por mais turbulento, não me alcança.


A poetisa Leda Selma

A contracapa do CD; lá
dentro, os créditos
Agora mesmo, acabei de ver um vídeo em que polêmico radialista que já passou por aqui apresenta-se como autor da música “Voa”, de Leda Selma com melodia de Ivan Lins, no CD “A cor do pôr do Sol”. O cidadão, com cara de pau desmedida para assumir autoria que nunca foi sua – e é muito fácil de se provar isso – não se peja. Declama o poema, depois canta-o cinicamente... E, ao fim da entrevista (está no Youtube) declama um poema de Vinícius de Morais (ou Moraes, para os conservadores) e diz ser de Fernando Pessoa...

Sinal dos tempos! Temos, em Goiás,  o que há de mais fino em MPB atual; sei que o gênero marca presença, ainda, em muitos pontos do país. Temos em Goiânia um contingente respeitável de músicos roqueiros e até mesmo do riperrope (estes não gostam que eu escreva assim), mas a chancela do sertanejo, ao tempo em que valoriza e fortalece o segmento, prestigia também a maior parte do que se faz e que carece de boa qualidade; no dizer de um crítico musical, é algo como o cachorro-quente – um alimento sem qualquer valor nutritivo, mas fácil de se fazer, que se encontra nas esquinas e de consumo rápido: mata a fome sem alimentar.


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 (*) Neste título, e sob este tema, rememoro a máxima de Nelson Rodrigues, parafraseando-o: O goiano tem um complexo de vira-latas; no nosso caso, parece-me incorrigível (ao menos por enquanto). L.deA.

sexta-feira, fevereiro 08, 2013

Leodegária de Jesus


A poetisa Leodegária de Jesus, em crayon de Amaury Menezes


Leodegária de Jesus


Cecília Meireles proclamou-se poeta, aplicando o masculino como genérico ou comum de dois, ao versejar “Eu canto porque o instante existe / e a minha alma está completa. / Não sou alegre nem sou triste: / sou poeta” (Motivo, o poema). Não sei se a autora de Canteiros (os dois poemas ganharam músicas de Fagner) valeu-se apenas da liberdade poética para manter o ritmo e valer-se da rima, ou se, ao se chamar de poeta, levantou uma bandeira feminista. O fato é que muitas poetisas, poetas e críticos de ambos os gêneros, em todo o Brasil, adotaram a forma. Leila Micolis poetizou, a respeito de si mesma: “Poeta. / Que em poetisa / tudo mundo pisa”.

Quero contar aqui de uma poetisa goiana do Século XIX, Leodegária de Jesus. Nasceu em Caldas Novas, cerca de 100 dias antes que substituíssem o Império por esta República confusa que temos agora. Por isso, e porque a minha terra natal ainda não fora emancipada, não existe registro de seu nascimento lá, e os livros da paróquia tomaram rumo incerto. Ela própria é a fonte que afirmava ser caldas-novense, como o poeta Delermando Vieira. E a professora Darcy França Denófrio é a maior estudiosa – portanto, autoridade indiscutível – sobre a vida e a obra da primeira poetisa de que se tem notícias em terra goiana.

Leodegária foi também a primeira mulher a publicar livro em Goiás – Coroa de Lírios, em 1906 –, quanto tinha apenas 16 ou 17 anos,  a se considerar o mês do evento. E ao lançar seu outro livro, 22 anos depois – Orquídeas –, nenhuma outra mulher o fizera, também! Outra poetisa goiana surgiu em livro somente em 1954 – Regina Lacerda, com Pitangas.

As poetisas, ou mulheres poetas, despontaram para valer, em Goiás, a partir da década de 60 do século passado, especialmente no Grupo de Escritores Novos – Yeda Schmaltz, Edir Guerra Maragoni, Maria Helena Chein – e muitas outras, entre elas a própria professora Darcy. E já na década seguinte o preconceito de gêneros era um item a se desconsiderar solenemente; afinal, vivia-se a chamada “revolução sexual” advinda dos ventos pós-guerra na segunda metade dos anos quarenta, o rock and roll mudava costumes, a conquista espacial reforçava o avanço tecnológico e a pílula anticoncepcional oferecia uma nova era.

Esses avanços, entretanto, não favoreciam a memória. As inovações – coisas que encantam os moços – contribuem para o esquecimento dos feitos anteriores: costumo dizer que quando jovens pensamos que Deus criou o mundo no dia em que nascemos. Leodegária é citada na obra de Gilberto Mendonça Teles – A Poesia em Goiás (1964). Depois, foi a vez de Basileu Toledo França publicar Poetisa Leodegária de Jesus (1996). Este livro coincide, em sua feitura e publicação, com o incansável (será?) trabalho de Darcy, que me presenteou, há poucos dias, com três obras muito especiais: um exemplar de Orquídeas (1928, já citado; a grafia da época é Orchideas); Letras em Revista (do ICHL/UFG, Cegraf, 1992, em que se acha um belíssimo ensaio de sua lavra – Entre “Lyrios” e “Orchideas” o Pássaro Ferido); e sua obra Lavra dos Goiases III – Leodegária de Jesus (Cânone Editorial, 2001).

Fica patente que, dos esforços de Darcy França Denófrio, a obra e a memória de Leodegária – a mulher mais importante de Caldas Novas e uma das mais expressivas figuras goianas de todos os tempos – começam a ser notadas na vida acadêmica brasileira. É a justiça dos tempos acontecendo – mas, há que se dizer, graças ao empenho hercúleo de uma Quixote de saia (sem desmerecer o empenho feminista, mas sobretudo exaltando a garra e a tenacidade femininas).


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sábado, fevereiro 02, 2013

O ódio supera o respeito



O ódio supera o respeito


A tragédia de Santa Maria, RS, que se tornou o arroz-doce do telejornalismo brasileiro esta semana, extrapolou o interesse mercadológico dos canais de notícia e mexe com a vaidade de alguns mortais que viram nisso a chance do chamado para os quinze minutos de fama. Circula na Internet uma carta a Dilma Roussef, encimada por uma foto da Presidente chorando. E a primeira frase não poderia conter mais mau-gosto do que o teor: “Engula o choro, presidente”. Assina-a uma pessoa que diz ser Marcella Martins, de Santa Maria.

Procurei, à exaustão, localizar essa pessoa no Facebook, que é onde circula a tal carta, que gera incontáveis comentários a cada minuto, tantas vezes foi reproduzida. Dos que me abordaram, uma pessoa disse que a decepcionei, e recomendou-me deixar “para a direita” isso de difamar a presidente Dilma (essas pessoas que “defendem” sem considerar o que acontece seguem à risca a recomendação da mandatária de feminilizar o termo, que é comum de dois gêneros). Respondi que o decepcionado sou eu, claro. Afinal, o PT, que se notabilizou por reunir tanto para discutir tanto, agora teme discussões.

A carta, a meu ver, é um prato e tanto não para quem quer ofender a presidente. Ela foi digna ao comparecer à cidade, ao abraçar os familiares das vítimas, chorar os mortos e oferecer alento aos feridos e seus queridos. Xingamos o Bush quando ele se recusava a visitar Nova Orleans; reclamamos que Lula demorou a ir a Congonhas, e cumprimentamos José Serra por ter ido lá; agora, uma Senhora Marcella Martins organiza um xingamento infundado e é enaltecida pelos anti-PT, enquanto os partidários a execram e os de bom senso chamam à racionalidade.

Dilma Roussef obteve os votos da arrasadora maioria dos brasileiros – merece estar lá. E, com firmeza, cuida de bem desempenhar sua função. Tem consciência de que fará o que for possível, que enfrenta obstáculos bem mais graves do que a pedra no meio do caminho que Drummond decantou. Vem fazendo um bom trabalho e a cegueira da oposição tacanha é tão grave quanto a cegueira da base política não menos tacanha.

Quantos de nós, anônimos mortais, não choramos a dor dos pais e amigos, dos irmãos e professores? Choramos o heroísmo dos que voltaram para salvar, salvaram e se vitimaram, alguns com a própria vida. Nem mesmo o profissionalismo de calejados repórteres foi capaz de imunizar todos eles em seu ofício de ver e contar – muitos choraram, sim, porque essa dor é genérica, tão contagiante quanto catapora ou gripe. Mas a presidente, não: essa é “do petê”, não merece consideração; ela não pode chorar; ela é culpada; foi ela quem inventou as boates e introduziu nelas a música ruim de ritmo agradável, de melodia fácil e de letra pobre – essas coisas que contaminam os que têm preguiça de pensar e pouco tempo para apreciar o que traz valores maiores. Foi ela quem inventou o dinheiro fácil do marketing imediato dos xous fast food.

Recebi a tal carta e divulguei-a sem comentar; de imediato, recebi inúmeros comentários e só então comecei a discutir. E encabulou-me o fato de que muitos dos que lá postaram algo não tinham argumentos – apenas frases de ódio para apoiar a carta. Ou condená-la.

Que pena! Mas chore sim, presidente Dilma! O Brasil que votou em você e o Brasil que não a apoiou também está de luto. E chora junto.

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