Páginas

domingo, maio 25, 2014



Esta crônica é de abril de 2011. Evoca uma história de 49 anos atrás (1965, pois) e fortalece em mim a sensação de que os valores, nesta vida, estão diretamente agreghados aos amigos que fazemos e ao trabalho realizado. L.deA.


Bilhete de saudade


As lembranças, sempre que provocadas, despertam-se como os pássaros quando a árvore que lhes é poleiro recebe os primeiros beijos do sol. E feito pássaros, essas lembranças ruflam asas e abrem os bicos em variadas melodias naturais, festejando a sobrevivência. Sei bem o que sinto nesses momentos; e sei bem decifrar os sorrisos silenciosos que põem luz nas faces e um brilho denso nos olhos, enquanto os lábios arqueiam-se em meia-lua, as extremidades afinadas, alongadas, felizes... É a poesia ganhando espaço e mais luz; o coração da gente parece um dínamo a produzir energia forte, e algum cientista vem me dizer que é serotonina, endorfina e outros possíveis hormônios expandindo-se em nossos corpos. A mente, então, é de fato feliz!

O botão acionado em mim, nesta manhã de Quinta-Feira Santa, foi um e-mail muito breve, em linguagem coloquial goiana, assim: “Luiz, cadê ocê? Abraços, jcarlos”. Neste caso, jcarlos é como se apelida meu velho amigo José Carlos Barbosa. Conheci-o numa manhã de fevereiro, em 1965, quando o país vivia  horário de verão por decreto de Castelo Branco, o primeiro ditador por revezamento. Fomos aprovados num concurso para o Banco de Estado de Goiás; aquele foi um dos últimos concursos para admissão em órgãos do Estado de Goiás, coisa instituída aqui pelo governador Mauro Borges; ele foi deposto por Castelo Branco em novembro de 1964 e em poucos meses toda contratação ou nomeação nos poderes públicos de todo o país só se daria por escolha da ditadura e de seus prepostos.

O edifício-sede,  hoje do Banco Itaú, é usado apenas no espaço de atendimento da agência. Simboliza 30 anos das nossas vidas.

As primeiras semanas do nosso trabalho consistia em aulas para entendermos o ofício de bancários. Aprendíamos os termos da profissão, noções de contabilidade bancária, conhecíamos o conjunto de impressos utilizados na empresa (e, com eles, o fluxo de papéis), ética bancária e, ainda, Noções de Língua Portuguesa (e redação). Curiosamente, o BEG daqueles tempos era respeitado por expedir redações impecáveis – se não no que tocava a estilos, ao menos na correção ortográfica e gramatical; o notável que cuidava disso era o saudoso e muito amado Professor Alfeu Medeiros.

Nesse período “escolar”, José Carlos Barbosa e eu nos tornamos amigos; começou ali esse convívio que se interrompeu com as nossas aposentadorias e, desde então, limitamo-nos a trocar e-mails e, dentro deles, algumas críticas a fatos e costumes, já que ninguém é de ferro. Mas retorno ao tempo passado para lembrar-me do Zé Carlos, que já era contador (naquele tempo, formavam-se contadores no ensino médio; depois veio o curso superior específico) e destacou-se nesse importante segmento de qualquer empresa, mormente nos bancos. Chegou a inspetor ou auditor, não sei exatamente porque num dado tempo essas funções se fundiram.

Juntos, vivemos momentos de apreensão profissional (como dizia o Edivaldo, trabalhar em banco estadual é difícil porque a cada quatro anos temos de provar que somos bons de serviço), com subidas e descidas na escala das funções; crescemos – e isso ninguém nos tiraria, porque o crescimento é intrínseco do funcionário – e mostramos, cada qual em seu espaço, do que éramos capazes. Mas não fomos capazes de conter os desmandos (coisa que hoje se apelida de “má gestão”) que provocaram os resultados “colimados” pelos que, no afã de agradar ao governo que reinava em Brasília, conduziram a empresa à bancarrota.

Pois é, Jcarlos, estou aqui! Escrevendo, como sempre; como já fazia naqueles tempos de 1965; como faço quase todos os dias; e ao escrever revivo a vida em detalhes. Vivi essa vida passada com tropeços e felicidade – afinal, enquanto era bancário fui também estudante colegial e universitário, professor e escritor, jornalista e ativista cultural. A cada dia de agora, reencontro, nas ruas e nos xópins, velhos camaradas do BEG, e somos todos aqueles mesmos meninos, agora de cabeças brancas, ou de cabelos pintados, ou sem cabelos. Mas trocamos os mesmos tipos de informações, apenas atualizadas pelos fatos contemporâneos e valendo-nos do que a tecnologia dos celulares e computadores nos oferecem.


Mas uma coisa, meu caro Jcarlos, continua igual: a capacidade que temos de sorrir, de rir e de sentir saudade. E sei muito bem que, no peito de cada um de nós, existe aquela alegria de termos conhecido um banco com 16 agências que, em apenas 30 anos, passaram de 150 agências e vários postos de atendimento. (A derrocada não se deu por ação nossa).



* * *

quinta-feira, maio 15, 2014

Resquícios daquilo



Resquícios daquilo


Vão-se décadas desde quando ouvi falar, pela primeira vez, das preocupações quanto ao desmatamento. E naqueles anos 60 do século passado já se defendia o desenvolvimento com equilíbrio – isso que os políticos, agora, dizem ser “desenvolvimento sustentável”.

Sob a tutela de um regime autoritário, muitos “produtores” conseguiram multiplicar suas fortunas à custa de agredir as matas e os caudais. Governantes menores, como os prefeitos de metrópoles e de corrutelas, cometeram crimes ambientais que mascararam com palavras como “progresso” e “desenvolvimento”.

E São Paulo recorreu, na última quinta-feira, 15 de maio, à reserva técnica dos reservatórios de água do Complexo Cantareira – pela primeira vez na História! A que ponto chegamos?

Atualmente, neste ano em que o golpe civil-militar faz meio século, ainda convivemos com mentalidades tacanhas como a dos que manifestam simpatia pelo arbítrio; e há os que teimam em pedir melhorias nas ações dos governos, crentes na máxima que a Carta Magna sacraliza: o poder emana do povo e em seu nome será exercido.

Uma falácia? Talvez: na quinta-feira, dia 8 de maio, um adolescente de 16 anos, à porta da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás percebeu que alguns estranhos imiscuíam-se entre os que pediam melhorias no transporte coletivo. Foi o bastante para que os infiltrados (policiais à paisana) o agredissem, quebrando-lhe alguns dentes.

Resquício de que mesmo? Nota dez para quem disse “da ditadura”. Sei, por informação à boca miúda, que as escolas militares ainda ensinam sob lemas contra o comunismo, e para esses é comunista todo aquele que os contesta, como os que vão às ruas pedir aumento de salários, melhorias no transporte ou na saúde pública e liberdade de expressão integra o segmento dos perigosos – porque é quase certo que os doutrinadores “anticomunistas” de agora sequer definam o que é comunismo.

Comunismo, para eles, é que nem o capeta – a gente nunca viu, não vislumbra sua essência mas combate-o com um vigor fanático e irracional. Eu, pessoalmente, duvido dos dois. São, para mim, figuras literário-ideológicas, e militares e civis que pregam tanto contra eles devem ganhar muito poder ou muito dinheiro às custas da ignorância de seus aprendizes seguidores.

Os direitistas de outros tempos (não vejo razão para, nos dias atuais, falar-se em direita e esquerda no campo das ideologias; isso é mesmo coisa de 30 anos ou mais) fazem circular nas redes sociais um texto panfletário de um pai que sofre, até hoje, pela morte prematura de seu filho de 19 anos, lá por 1970 e poucos, vítima de uma bomba lançada de um carro não identificado – logo, também seus ocupantes não foram identificados. Esse texto atribui à presidente Dilma a autoria da morte do rapaz, que era soldado do Exército e estava de sentinela à porta de um quartel.

Ora: a culpa pela morte daquele moço, e de tantos mais no confronto entre os opositores e os defensores do regime, cabe ao próprio regime. Não preciso discorrer sobre isso. Quem matou aquele jovem e inocente soldado, um militar temporário (ele apenas cumpria o dever legal de prestar serviço às Forças Armadas), foi o mesmo que matou Rubens Paiva e centenas de outros. Ou as “forças instituídas” pelo golpe esperavam que a nação aceitasse silenciosamente o arbítrio?

E vem daqueles, também, a índole assassina que, por enquanto, apenas machucou o menino de 16 anos, no Setor Universitário. Mas eles costumam matar também...

* * *

sábado, maio 10, 2014

Ares do Sul

Motivo duplo: a saudade e a gratidão. Em 
outubro de 2006, a amiga Cida Chinchilha 
convidou-me para uma semana de 
contatos  
e palestras em Joinville; 
ao voltar, escrevi 
esta cônica, que saiu 
publicada em seguida. 
L.deA.



Ares do Sul


Escolhi a quinta-feira para produzir estas linhas. E o fiz de caso pensado, porque 19 de outubro é aniversário do saudoso poetinha do "Soneto da Fidelidade". Vinícius de Morais bem poderia ter chegado a festejar este ano, soprando 93 velinhas num bolo que, apropriadamente, deveria ter uma receita carioca, mas ornamentos e ingredientes de todas as regiões brasileiras. E não preciso explicar.

O dia é de festa, mas não estou em casa; encontro-me em Joinville, Santa Catarina, conhecendo pessoas e falando de coisas da vida e da poesia (lembrem-se, leitores: escrevo na quinta-feira). Já participei de palestras e concedi entrevistas a emissoras de rádio e tevê, combinei com os músicos sobre o sarau de sexta-feira; Osvaldo Júnior, cantor e apresentador de televisão, e Gaúcho, violonista, prepararam um repertório excelente de canções românticas e me cabe entremeá-lo com poemas afins. Ou seja, estou mais feliz.

Há a festa da AGL (Academia Goiana de Letras) em que Aidenor Aires, poeta e bom de prosa, prestará homenagem justamente ao meu antecessor na Cadeira 10, Carmo Bernardes. Aidenor teve o privilégio da amizade de Carmo, como Brasigóis e eu, como Bariani e Zé Mendonça, e Paulo Araújo, o livreiro; e Leonídio Caiado, e... Ah, é muita gente! Vai daí, o jeito é pedir ao poeta que me reserve uma cópia do panegírico.

Mas é 19 e festejo sozinho os aniversários também do primo André Luiz, no Rio de Janeiro; e da Marilene, comadre e vizinha. Vou tomar uma taça de bom vinho em louvor a cada um deles: Vinícius, Carmo, André, Marilene... Não, não perderei o equilíbrio por isso, felizmente. Até porque aqui, neste norte catarinense, há muita umidade no ar e um frio agradável, em contraponto às altas temperaturas da nossa terrinha (vi que Goiânia amanheceu com 23 graus e deve chover muito).

Meu amigo Edir Meireles, escriba goiano vivente na Bela Cap (quase ninguém se lembra que o Rio de Janeiro teve também esse epíteto), lançou o seu "O feiticeiro da Vila" na sede da UBE, também na quinta. Pena eu não estar aí ao menos para retribuir o carinho que ele oferece, sempre, em seus domínios: no meu sarau de agosto, entre meus colegas de Colégio Pedro II, lá estava o Edir, como sempre... Outro vinho, pois!

E vou curtindo Joinville, bem ciceroneado pela Cida (da Rede Feminina de Combate ao Câncer, entidade que me convidou para esta jornada, com apoio do Instituto Amar, que congrega entidades assistenciais). A arquitetura e outras marcas da história da colonização alemã, os eventos que agitam a cidade e superlotam hotéis, a música da fala sulista... Há muito que se ver (e aprender) por aqui. Mas uma coisa é comum à alma brasileira: a afinidade que o veterano jornalista goiano encontra nos colegas: Natanel Rocha (TV Brasil Esperança), Cacá Martins (Rádio Cultura FM), Osvaldo Júnior (da TV Cidade e titular da Machester Band) e Jota Martins (Rádio Globo).

Ah, não me escapa um fator comum a todo o Brasil: o segundo turno das eleições, com as campanhas mornas e chatas que acometem o país, tanto na disputa nacional quanto nos estados em que a eleição para governador não se fechou no primeiro escrutínio. Repete-se, também, o nível baixo das acusações de improbidade ou de incompetência, a sempre inacreditável auto-exaltação e as caras de anjo de que se travestem os caçadores de votos.

Sendo assim, a saudade da terra só se explica pelas pessoas que nos são mais próximas e caras, já que também a cara-de-pau, no Brasil, está "globalizada"

E a fila anda...






sexta-feira, maio 02, 2014

Marina, a imprevisível






Marina, a imprevisível



A Marina é um ser muito, muito especial. Completou, há poucas semanas, quatro anos de vida, de um olhar penetrante e curioso e de uma perspicácia incomum e, inevitavelmente, muitas tiradas de rara inteligência. Mesmo no tempo em que a fala ainda não se mostrava plenamente desenvolvida – aquela fase dos tatibitates, de trocar R e L, de fundir sílabas e mesmo inventar palavras quando necessário, o modo de raciocínio já se mostrava muitos pontos acima do esperado.
Marina em ação: ornamentando a árvore de Natal na casa do tio Luiz.
Esse período, pouco antes e pouco depois dos dois anos, dá-nos a medida do quanto a pessoa, a pequena pessoa, valoriza seus objetos, sejam brinquedos ou roupas; e, no caso dela, em que a vaidade feminina já se mostrava latente, os adereços como um diadema (ou tiara), um brinco ou pulseira têm também importância incomum, como que definissem um estado de emoções.
E a árvore de Natal de sua casa.
Além dos brinquedos e objetos pessoais, os símbolos que tão bem marcam essa fase, como os super-heróis, são também referências. Enquanto os meninos se sentem homens-aranha, super-homens ou homens-de-ferro, as meninas gostam de se sentir borboletas, cinderelas e brancas-de-neve. E foi pelos dois anos que ela ganhou um “roupa de borboleta”, com asas e um diadema com as antenas da lepidóptera. Bem... Felizmente, o apartamento, num 21º andar, tem telas, porque a pequenina queria mesmo era sair voando pela janela.
A primeira cartinha, para balançar o coração da mamãe...
Gosta muito, também, de cães. A avó materna, Roseanna, tem uma cachorrinha, dessas que se criam em apartamentos; de pequeno porte, pois. E Marina, desde sempre, sente-se meio dona da cadela. Vez em quando liga para a avó: “Vovó, você me empresta a Zoé?”. Roseanna diz que entre elas, com relação à cadelinha, há como que um pacto de “guarda compartilhada”. Atende, pois, mas dois dias depois, no máximo, Marina liga outra vez:  “Vovó, busca a Zoé”...
Outra vez em ação: fazendo bolo.
Um dia, ela passeava com a Zoé e a mãe, Taíssa. Embarcam no elevador ao lado de uma moça que chegava também de um passeio com seu poodle, de porte bem maior.  O macho rosnou para Zoé, como quem tem seu território invadido; foi contido pela dona e tão-logo desembarcaram, Marina, assustada, comentou: “Mamãe, aquela ovelha queria devolar a Zoé”.
Ela há de ser uma exigente dona de casa...
Estes dias, ela vive uma nova experiência: o tio Rodolfo vai se casar e a noiva, Tia Dani, escalou Marina como dama-de-honra; caberá a ela conduzir as alianças. Marina nada comentou, apenas acompanha, como quem não liga, as conversas em torno de todos os preparativos. E, muito ao seu modo, preferiu consultar a avó Roseanna:
... mas, também, uma ocupadíssima internauta!
– Vovó, quando um homem conhece uma mulher e se apaixona eles se casam, né?

  Sim, Marina, é isso mesmo.

– E no casamento, quem leva as alianças?

– Ué, Marina, uma criança muito bonitinha e bem arrumada, bem vestida como daminha de honra.

– E quando um cachorro conhece uma cachorra? – quis saber mais.

– Ah, Marina! Eles também se casam.

– E quem leva as alianças?

– Os cachorrinhos crianças, é claro!

Marina meditou:

– Hum... Casamento de cachorro não é elegante!

* * *