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sábado, março 26, 2016

O golpe e a culpa

O golpe e a culpa


Incrível chegarmos a 2016 em meio a uma incontrolável crise política, agravada pela decorrência na economia, constatando que a insegurança na realidade evoca lembranças disformes. Refiro-me às pessoas que evocam os “tempos dos militares” como panaceia para o desemprego de quase dez milhões de trabalhadores, o endividamento preocupante de quase 60 milhões de famílias e a descrença nacional às falas e feitos dos políticos.

Hoje, alguns fatos que caem na delicada malha da Justiça eram corriqueiros e tolerados há dez, quinze e vinte anos, quando chegavam ao conhecimento do populacho – essa massa humana de que todos fazemos parte, mas há pessoas que acreditam (escrevi isso há uns anos, muitos), “povo é todo mundo menos eu” (sem vírgula).

O jovem Lulinha ter ficado rico causou orgulho de brilhar os olhos do pai presidente, que o definiu como “o Ronaldo dos negócios”. Há pouco mais de 30 anos, a imprensa insinuava – a expressão máxima possível na época – sobre práticas duvidosas de um filho do presidente general Figueiredo.

As denúncias e as subsequentes investigações da Polícia Federal e do Ministério Público, subsidiando a Justiça, resultaram na prisão e muitas revelações, em interrogatórios e delações premiadas, de executivos de poderosíssimas empresas. A bola da vez, nos últimos dias, é a Odebrecht, mas praticamente todas as grandes empreiteiras estão no “index” da 13ª. Vara Federal do Paraná, que tem o juiz Sérgio Moro por titular e muito eficaz vigia do bem público e esperança de restauro da dignidade nacional. Só que essas mesmas siglas e marcas, logos e líderes já eram notados há uns 40 anos (ou pouco mais) pelos que observavam, sem muito poder dizer, as andanças de ministros midiáticos, coronéis e generais truculentos, tropas carrancudas e duros coturnos, cassetetes e sabres opressores, violentos, dolorosos.

Sim, eram os tempos de Transamazônica, Itaipu, Ponte Rio-Niterói, estádios e autódromos, radinhos de pilha nas arquibancadas e tribunas de honra, eu-te-amo-meu-brasil-eu-te-amo / meu-coração-é-verde-amarelo-branco-e-azul-de-anil, com premiação, aos cantores-compositores, de 30 milhões (que moeda era mesmo? Mudava tanto!). E, por falar nisso, cadê aqueles cantores, hem? Eram os ídolos do general Médici e de ordenanças em sua equipe (SNI, Doi-Codi, polícias estaduais com e sem fardas, os os federais – naquele tempo, nada admirados pela população).

A truculência e as bravatas, atitudes irritantes, eram praticadas a torto e a direito – mas não desapareceram quando as fardas se recolheram aos quartéis. Newton Cruz, general, ostentava autoridade e ignorância – na mesma ênfase de Lula nesta fase pós paz-e-amor. E Figueiredo mantinha o nariz erguido, não dando bolas aos que o cercavam, e nisso é seguido por Dilma. Inesquecível a resposta dele a um repórter, ao ser perguntado “o que acha do cheiro do povo?” – Prefiro o cheiro dos cavalos – disse ele.

E aí convivemos com tentativas anacrônicas de se tentar nublar as aparências, como nomear Lula para escapar de Sérgio Moro. Ou de aplicar o eufemismo “golpe” sobre as investigações da Justiça (e polícia com Ministério Público) e sobre o questionamento político sobre abusos de campanha – coisas por demais evidentes. E se não bastasse aos militantes – apelido carinhoso dos eternos cabos eleitorais – aplicar a pecha de “golpe”, até mesmo estudantes e profissionais de Direito (eles gostam de dizer “operadores), alguns até detentores de currículos até então respeitáveis repetem a ladainha.

E ninguém menos que Dias Toffoli, o ministro nomeado por ser amigo e advogado do PT e de Lula, abriu a fila dos que esclareceram que a medida é legal e constitucional, ou seja, não é golpe.

Contudo, a primeira mandatária, inconformada porque o Itamarati desautorizou uma circular enviada ao exterior “informando” o andamento de um “golpe” que sugeria uma “ditadura do judiciário”, ela própria chamou jornalistas estrangeiros (correspondentes) para denunciar ao mundo “o golpe” que a ameaça.

Na ditadura tínhamos de engolir; agora, temos a Justiça podendo agir. Mas os que têm saudade e gostariam de “ter estado lá” dizem que recorrer à Justiça é golpe.


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Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras.

segunda-feira, março 21, 2016

Boêmios têm conserto?





Recebi, da querida poetisa Sônia Elizabeth Nascimento Costa, este comentário que me chega feito um afago, um carinho especial, a propósito de meu livro Concerto de Boêmios (cuja segunda edição chamou-se Sob o Signo da Lua). L.deA.



Sônia Elizabeth



Boêmios têm conserto? Penso que boêmios não têm conserto. São marinheiros que vivem soltos, libertos da engrenagem cruel e monótona do mundo, num paraíso só deles, onde o que prevalece é a poesia e as emoções dos momentos fortuitos vividos. Mas se boêmios não têm conserto, concerto deve ser coisa de boêmios, sim. Não tenho dúvida nenhuma.



Mas tudo isso que disse aí acima foi só uma introdução para falar do livro de Crônicas CONCERTO DE BOÊMIOS, do poeta, jornalista, cronista e membro da Academia Goiana de Letras Luiz De Aquino Alves Neto, o qual conclui ontem, no domingo, de prazerosa leitura. Crônicas de recordações e homenagens aos boêmios da vida de Luiz De Aquino: avô, pai e amigos. O que sobressai, porém, de forma mais sensível aos olhos de quem lê, é o carinho especialíssimo que o autor nutre pelo avô e, notadamente, pelo pai. São crônicas familiares, de foro íntimo, simples, bem escritas, sem maiores pretensões linguísticas, onde a gente desliza em cada página suavemente, sorvendo cada frase, cada palavra, cada introdução, cada desfecho.

Sou uma leitora e escritora ávida de literatura, e de forma especial tenho um gosto acentuado por crônicas e poemas. Considero a crônica um gênero literário sim, em que pesem as divergências sobre a questão. Posso dizer que ter lido CONCERTO DE BOÊMIOS foi um regalo. Que venham novos regalos dessa natureza.

Sônia Elizabeth

sábado, março 19, 2016

As letras e os poderes...






Livros, autores, bibliotecas e poder





Tem sido difícil acompanhar noticiários escritos e orais! A boa escrita – aquela que respeitava ortografia, regência, conjugações e concordâncias – foi para o beleléu (insisto na gíria da minha infância, de tão boa lembrança). E junto com a falência da escrita vivemos a falência moral entre os políticos e militantes, bem como o descaso abusivo do segmento empresarial, sobretudo pelos cursos de “capacitação” (nome novo para treinamento), nos quais os tradicionais casos exemplares passam a se chamar “cases” (pronuncia-se “queises”), experiência virou “expertise” e surgiram novas palavras: empreendedorismo, acabativa e empregabilidade.




A falência moral é decurso direto da falência da linguagem. O antes respeitável Ministério da Educação tornou-se um amontoado de gabinetes em que ociosamente se tratam de métodos de ensino em nada eficazes e libera-se a linguagem para sobrepor o conceito “se a comunicação se deu, tudo bem”. Mas a linguagem culta continua exigida em concursos como ENEM, vestibulares e para emprego público. 
Aprendi, muito cedo, que uma peça jurídica de qualquer natureza tem que ser escrita em linguagem culta, com o rebuscamento de vocabulário apropriado e, não raro, inserções latinas para riqueza dos estilos. Isso de expressões latinas causa risos, pois os novos bacharéis, advogados, magistrados, procuradores etc. as praticam sem um conhecimento ainda que empírico da língua-mãe das tais neolatinas. Mas o que se tem visto... Ah!




O que nos falta? Leitura! Sim, só isso – leitura. Ziraldo, o mais famoso propagador da máxima “ler é mais importante que estudar”, deixa claro: estudar as pessoas entendem como frequentar escola; mas frequentar escola é fácil e simples, até porque, hoje, por orientação oficial ou oficiosa do MEC vulgarizado (vulgar não é o mesmo que popular), é proibido reprovar. A leitura bem praticada trará de volta os valores morais, tão em falta hoje!

Converso, nesta manhã de sábado, com uma amiga do interior. Graduada (licenciada) em Letras, não gostou do curso. Preferiu continuar leitora voraz a consumir seu tempo em salas de aulas, praticando um ensino falho, orientado por burocracias frágeis e contraditórias, impedida de bem-ensinar. Voltou à universidade, cursou Direito. Gostou tanto que consegue ver poesia na Constituição Federal.




Falamos de livros, bibliotecas, autores, empresários e políticos – e professores, claro! Na universidade em que cursou Letras, há uma cadeira de Literatura Goiana – mas nada se viu e todos foram aprovados. Citei dois irmãos, escritores, seus conterrâneos – ela não os leu porque não encontra seus livros na cidade. Nem na biblioteca pública!

Contei-lhe que pensei em doar livros a bibliotecas públicas, mas desencanta-me saber que, sempre que o fiz, percebi meses depois que meus livros desapareceram de lá. E desencanta-me saber que, nestes cerca de 40 anos de atividade literária, somente uma biblioteca quis comprar meus livros – a do SESC de Goiás. Mas dezenas delas, de todo o país, pedem-nos livros em doação, e temos de doar e custear a remessa por correio ou transportadora.




Minha amiga lamenta ter emprestado o único livro já editado sobre a história de sua cidade–cidade importante do sul de Goiás. A pessoa que o tomou por empréstimo tomou-o literalmente – não quer devolver. A obra, de poucos exemplares, não se encontra nos sebos nem em qualquer lugar a venda. Sugeri que alguma grande empresa local ou a prefeitura devia reeditá-lo, mas ela recordou que “nem empresário nem político quer saber de livros”.

Paciência...

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Luiz de Aquino é escritor, membro da Academia Goiana de Letras.


segunda-feira, março 14, 2016

Em tempo de Poesia

Em tempo de Poesia










Ninguém se lembrou de ornar um grande bolo de aniversário com 169 velinhas, nem de compor trova, cantata, rondó ou ode ao menestrel da abolição, o baianinho Castro Alves! Mas seu aniversário é, desde o início da década de 1960, o Dia Nacional da Poesia!

 
No limiar deste século, a UNESCO instituiu o 21 de Março como Dia Internacional da Poesia (tive a alegria de ver o meu site - que desapareceu nas mudanças drásticas dos provedores da Internet - constar entre as três primeiras páginas brasileiras de poesia no Portal da Unesco, fato que O Popular e Diário da Manhã noticiaram).
 
Com isso, o período de 14 a 21 de Março é, para os praticantes ativos e passivos (poetas e leitores), a Semana da Poesia!

Meu abraço imenso, de braços quilométricos, a todos os fazedores de versos deste Brasil de todos os tempos! E que a nossa energia se estenda para além destes braços (e deste abraço) para além das fronteiras de montes, rios e oceanos, transpondo os limites das línguas, selando a humanidade com as nossas propostas de paz entre os povos e de muita fé no futuro!


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Luiz de Aquino, poeta brasileiro, é membro da Academia Goiana de Letras.

sábado, março 12, 2016

Alaor, confrade cordial

A Hora dos Ruminantes, de José J. Veiga, editado pela Confraria dos Bibliófilos do Brasil e apresentado por Alaor Barbosa.




Alaor, confrade cordial



Num sodalício de 40 membros, nem sempre é fácil o convívio harmonioso, mormente por se tratar de uma pequena comunidade de mentes criativas (ou criadoras). Refiro-me às academias literárias, essa invenção platônica que, modificada pelos conceitos renascentistas, ganhou gosto entre os franceses também, e do modelo instituído pelo Cardeal Richelieu (em 1635), copiamos para o congraçamento dos escritores nacionais no último decênio do século XIX.


Em Goiás, criou-se em 1939 a Academia Goiana de Letras. E decorreram-se umas poucas décadas para que a nossa Academia se completasse nas quarenta cadeiras exemplares. Seguindo, pois, a Academia Brasileira de Letras, as vagas entre nós só acontecem por morte de um dos membros e são preenchidas em escrutínio secreto, usando os chapéus de Zoroastro Artiaga e de Altamiro Pacheco como urnas.


Devaneios à parte, falo dos pequenos óbices à harmonia geral num colegiado assim. E vozes dirão de surpresas, e os maledicentes (que os há em qualquer sociedade, por menor que seja) dirão que mostro roupa suja; mas, não: mesmo numa família mínima, de três pessoas, momentos há de conflitos de ideias e esses conflitos não implicam ruptura, mas resultam sempre em aprimoramento das relações. E é este sempre o meu princípio de convívio.





Há, contudo, relações prazerosas mesmo em contatos que não significam, rigorosamente, amizades antigas. Refiro-me especificamente a dois acadêmicos, não por acaso irmãos, nem por acaso acadêmicos, posto que em ambos sobejam talento e competência nas lides das letras – Eurico e Alaor Barbosa. Alaor é irmão mais novo, mas acadêmico mais antigo. Ambos trilharam os passos do jornalismo, ambos se fizeram notáveis por suas obras em livros e no ofício da advocacia, Eurico se fez político e conselheiro do Tribunal de Contas, Alaor obteve, em concurso, destacada função no Congresso Nacional.


Há quase vinte anos, recém empossado membro efetivo da Academia, atrevi-me a sugerir Alaor Barbosa para presidente – errei de irmão, pois Eurico se fez presidente duas vezes, a segunda delas por ascensão estatutária. Mas dedico a ambos grande admiração não apenas por suas obras, mas pelo perfil de cada um, de impecáveis cavalheiros no trato cordial e no amor com que se dedicam a suas causas.

Eurico Barbosa

A ambos sou devedor de tal tratamento e de cada um recebi, em ocasiões diversas, mimos especiais – Eurico presenteou-me com o volumoso e riquíssimo “Duelo no serpentário – Antologia da Polêmica Intelectual no Brasil – 1850-1950”. O gesto, disse-me ele, vinha de uma certa admiração pelo tom das minhas crônicas. Não bastasse isso, ele propôs e o Rotary Clube, do qual é membro ativo, honrou-me com belíssimo diploma de mérito. 


Alaor Barbsa


Alaor, que divide sua vida entre Brasília e Goiânia, com incontáveis hiatos para viagens várias, honrou-me com belíssimo exemplar, em edição mimosa em que assina a apresentação com um nostálgico e primoroso texto. A edição é da Confraria dos Bibliófilos do Brasil e se atreve ao luxo de vir ilustrada por outro goiano notável – Amaury Menezes. A obra literária é o admirável e muito traduzido livro “A hora dos ruminantes”, do nosso inesquecível José J. Veiga, cujo centenário, por motivação minha, foi festejado no ano passado.




Se a emoção já me embaçava a vista, quase ceguei-me com as lágrimas ao ler:


Ao escritor e poeta Luiz de Aquino, um constante defensor da memória de José. J. Veiga, oferece o Alaor Barbosa.


Balbuciei, sozinho: “Obrigado, Alaor!”.



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Luiz de Aquino é membro da Academia Goiana de Letras.

sexta-feira, março 11, 2016

Os 36 anos do Diário da Manhã (Goiânia)

DM, 36 anos: a notícia é nossa vida



É preciso contar aos desavisados jovens que pedem intervenção militar o que foram os anos de total restrição das liberdades – mas, se continuarem incréus, que viagem para um país sob o arbítrio, que ainda os há por aí, em ásias e áfricas anacrônicas, conservadoras de costumes e medos que sustentam o poder em torno de um, em benefício de poucos e sob os sacrifícios ilimitados de todos os demais.

No decurso de 1964, os jornais ainda noticiavam – conforme sua linha de ligação com o poder ou sua postura de liberdade – as prisões sem amparo legal e as torturas denunciadas, e muitos foram os que, deixando as masmorras dos quartéis e delegacias, procuraram cartórios para ali lavrarem depoimentos livres, contradizendo o que foram obrigados a “confessar” sob torturas que variavam dos tapas simultâneos nos dois ouvidos até mesmo sevícias e castração.

Em locais como as portas dos colégios e universidades, as calçadas do centro da cidade (e pontos preferenciais como as cercanias do Café Central, da Livraria Cultura Goiana, do Bazar Oió, os bares joviais da Rua 8 etc.) sujeitos armados com cara de raiva empurravam-nos dizendo “dispersa, dispersa” ou “circulando, circulando” porque, diziam eles, “mais de três é comício, dispersando, dispersando!”.

Nas salas de aulas, nos ambientes de trabalho, nos clubes (como gostávamos de clubes!) e em qualquer lugar de convívio havia espiões. Jovens suspeitos (e suspeitavam de quase todos os jovens, especialmente estudantes) eram sequestrados em casa, de madrugada, por agentes mal-encarados e bem armados, transitando nervosos nas imortalizadas (por Chico Buarque) “negras viaturas” do sistema de repressão.

Um índice de quase 300 palavras e expressões foi divulgado a todas as editoras e veículos de comunicação – era um moderno Prohibitorum Index verborum, do qual constavam expressões como “ligas camponesas” e nomes próprios de alguns vultos (Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda etc.). Letras de músicas eram sempre suspeitas e os censores, que não sabiam discernir entre um poema e uma canção decidiam censurar tudo. Os poetas trocaram os versos pela prosa, no afã de despistar os incultos censores – e isso deu certo.

O medo era constante. Qualquer mau-caráter valia-se da palavra “comunista” para apontar alguém para qualquer agente da repressão, fosse militar ou policial. Era um modo de se livrar dos inimigos ou de pessoas por eles invejadas.

Dentre os mais-velhos de agora que defendem a volta dos coturnos encontro muitos que não vacilavam em dedurar desafetos. Muitos são hoje carecas ou grisalhos, não usam mais os cabelões daqueles tempos, muitos continuam dependurados em cargos públicos porque não conseguem viver sem o guarda-chuva do poder público – mas recordam-se dos tempos em que, além de polpudas sinecuras, desfrutavam também do “direito” de dedurar, de ser convidados para os regabofes custeados pelo erário e de conseguir folgas para devaneios no litoral ou fora do país – muitas vezes com o beneplácito de um chefe bondoso que “liberava” diárias em dólares...

A censura prévia era praticada em todas as redações de notícias do país. Um sujeito com distintivo, nem sempre detentor de escolaridade razoável (ao menos), trabalhava nas redações com um grande lápis vermelho com que cortava textos, suprimia-os, mandava trocar palavras ou frases inteiras, censurava matérias inteiras. Grandes jornais, como o Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro – lançou mão de um artifício: sempre que o censor mandava retirar alguma matéria jornalística, em seu lugar eram colocadas receitas culinárias ou longos textos em Latim. O leitor, que só por saber ler tinha nível intelectual superior ao dos censores – compreendeu logo que aquilo era lugar de alguma matéria totalmente censurada.

A proibição fortalece a criatividade, porém!

Desenvolvi uma técnica diferenciada – a de me prevenir com palavras brandas para substituir as que os censores mandariam cortar. Assim, e sem bater de frente (o que podia provocar denúncia e prisão), “aceitava” a censura e substituía o termo proibido por algum suave e dócil, no critério do agente mutilador de textos e jornais. Havia colegas que, em lugar disso, colocava reticências no lugar da palavra suprimida, ou simplesmente as removia, deixando o texto ininteligível – o que também era uma pista para o leitor.

Nossos músicos jovens – pessoas talentosas nascidas (como dizia o cartunista Henfil) “nos 40” – desdobraram-se também na criatividade para produzir textos que cantariam pela vida afora com fortes ironias à máquina repressiva, como um famoso samba de João Bosco e Aldir Blanc, assim: “Não põe corda no meu bloco / não vem com seu carro-chefe / não dá ordem ao pessoal / Não traz lema nem divisa / que a gente não precisa / que organizem nosso carnaval”.

E eram Gil, Chico, Aldir, Bosco, Paulo César Pinheiro, Vandré, Gonzaguinha, Vinícius e tantos, tantos outros... Um deles, Torquato, não conteve a impaciência nem suportou a intolerância – matou-se aos 28 anos, deixando um lacônico bilhete – “Para mim chega”.

Mas houve também os que eles mataram. Como o tecladista de Vinícius, sequestrado e morto por militares argentinos horas antes de um xou do Poetinha. Muitos foram “aconselhados” a passar alguns anos fora do país. Contra todos eles o sistema criou fatos – plantavam entorpecentes em seus bolsos e bagagens, mandavam espalhar que eram homossexuais e outras práticas impróprias.

Era um tempo em que a imprensa passou a ser tachada de esquerdista – por se tornar uma pedra dentro dos coturnos. Lembro-me de um oficial do Exército, comissionado coronel para comandar a PM de Goiás, que fechava uma das mãos e abria os dedos, um a um, enumerando “jornalistas”; “índios”; “estudantes”; “professores”; “músicos”; “poetas” – e os qualificava genericamente:
– Tudo comunista!
Com isto, justificava as prisões e torturas, mas quanto às mortes ele não tinha respostas claras. Preferia dizer que “a gente solta e eles somem, são os companheiros que dão sumiço neles porque suspeitam que o cara abriu” (por “abriu”, entenda-se “delatou”).

Foi sob esse clima que deixei o Jornal Opção – então diário – e fui para o Cinco de Março. O semanário de Batista Custódio tinha fama de libertário, era esperado com ansiedade pelos leitores ávidos de novidades. O que nos diários era tratado com um cuidado exacerbado aparecia no jornal das segundas-feiras com o toque de paciência de quem pode trabalhar um texto por alguns dias, pode analisar os fatos com mais vagar e precisão.

Sem falsa modéstia – trabalhar no Cinco de Março não era para qualquer escrevinhador, não... Era preciso coragem e perspicácia, bom domínio do texto – afinal, era o reduto de redatores como Anatole Ramos, Jávier Godinho, o próprio Batista Custódio, Marco Antônio Silva Lemos, Eliezer Pena, Carmo Bernardes, Consuelo Nasser, Jurandir Santos... Enfim, um time de primeira linha! É óbvio que omito aqui vários notáveis, mas a memória sempre nos trai – mas não posso omitir Djalba Lima, jovem e talentoso.

Era no Cinco de Março que apareciam as mais sérias denúncias, sem a barreira do poder político ou econômico. Havia um apego quase obsessivo pela “verdade, doa a quem doer” e o slogan era: Nem Washington, nem Moscou nem Roma – Tudo pelo Brasil!

E chegou 1980. Na redação da construção simplória na avenida 24 de Outubro, notamos um entra-e-sai incontrolável, e não eram os costumeiros políticos e empresários que diariamente nos visitavam. Eram, sim, jornalistas conhecidos e tarimbados, com destaque para um, especialmente – Carlos Alberto Sáfadi, que viria a dirigir a equipe nos primórdios, sendo substituído por Washington Novaes.

Era janeiro e as aparências eram de mudanças. Ao lado, e como um profissional por mim admirado e sempre bem-humorado, Luiz Augusto Pampinha começou a fazer conjecturas. “Se bem conheço, e conheço bem essas pessoas, o Batista vai transformar o Cinco de Março num diário”.

E chegou o momento de perguntar ao Batista. Ele respondeu com um sonoro e sólido “Não”. Mas pouco depois – talvez no dia seguinte, ou na segunda-feira seguinte, talvez – ele nos contou que teríamos um diário, sim, mas o Cinco de Março continuaria. E estabeleceu uma separação, os jornalistas do Cinco de Março deviam se manter distantes da nova equipe, que começaria a chegar naqueles dias.

Consuelo Nasser ficou cuidando do Cinco de Março, Batista tratava do novo jornal. Marco Antônio Silva Lemos transferiu-se para o novo jornal. Eu fui demitido por Consuelo. Menos de dois dias se passaram quando Marco Antônio chamou-me e disse que eu iria para o novo jornal (ainda sem nome); estranhei, pois fora demitido e achava complicado... Marco me contou que foi a própria Consuelo quem me indicou para integrar a nova equipe.

Fizemos alguns “pilotos”, ou “números-zero”, cada qual com um nome e uma diagramação diferenciada de primeira página. Depois de algumas experiências (se não me engano, foram 19), tivemos outra surpresa – todas as edições foram estampadas na parede e tivemos a incumbência de escolher uma das diagramações e um nome.

Por longos anos, mesmo após aquele hiato de dois anos, causado pela truculência de um governo pós-ditadura – mas com muita vocação para aqueles tempos – o Diário da Manhã ostentou a mesma diagramação, um marco fortíssimo de inovação no jornalismo local. Os diários goianos tinham a tradição de não circular às segundas-feiras – fomos pioneiros nisso. Os grandes jornais brasileiros começaram a sair em cores – o DM foi pioneiro em Goiás, de novo.

Um colega, especialmente, nascido sob o signo das restrições, mas criado em meio à vocação da liberdade e o cheiro de papel e tinta, bem representou, nas primeiras duas décadas, a alma inovadora e libertária do DM – Fábio Nasser. Era impossível estar com Fábio sem que qualquer assunto escapasse do ambiente e das causas do jornal, e ele curtia os meandros da poesia e da filosofia com o mesmo ímpeto apaixonado.

Inovar, aliás, é tônica constante. No DM a poesia sempre teve espaço. No DM o artista goiano não é discriminado nem há gêneros menosprezados. No DM a vocação pela liberdade das ideias e expressões não morre – e justamente por isso mantêm-se aqui um caderno especial, diário, o Opinião Pública, que vem a ser uma tribuna perpétua para a prática da livre expressão.

Não bastasse isso, o Opinião Pública reserva a última página, todos os domingos, para a divulgação da poesia, acasalada com a ilustração por notáveis artistas da terra. Esse trabalho, de criteriosa seleção de poetas e artistas, cabe à competente poetisa e acadêmica Elizabeth Abreu.

Concluo apressado, não por falta do que mais dizer, mas porque este é um momento de festa, mas também de liberdade. Estes 36 anos de presença do DM na vida goiana são, sim, importante parte da minha vida – mas muito mais importante parte na vida da sociedade da nossa terra. De nossa parte – do Batista Custódio e seus filhos, dos jornalistas que se identificam com esta ideologia e esta prática da notícia – sei que sempre faremos por inovar, ou nossa ação não teria sentido.



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Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras.

segunda-feira, março 07, 2016

Tanto em tão pouco tempo...


Luiz Antônio e o pai, Totozão , em foto de agosto de 2015.


Tanto em tão pouco tempo...



Semana agitada... na antevéspera, 27 de fevereiro, faleceu meu tio Antônio Gomes Godinho. Em Pirenópolis, onde os nomes próprios valem pouco, ele era, simplificadamente, o Totozão, figura enorme e marcante não só pelo físico, mas pela doçura no trato com as pessoas, sem limites sociais, financeiros ou de aparência.

Uma triste coincidência: num mesmo 27, há exatos três meses (novembro, pois) faleceu meu primo Luiz Antônio – filho primogênito da tia Rute e de Totó, ou Totozão. Luiz Antônio, na maturidade recém-inaugurada (62 anos), foi-me companheiro de tantas décadas, entre canções e luares – e as indefectíveis serenatas da marcante Meia Ponte, Pirenópolis. Herdamos, ambos, a essência do nosso avô, Luiz de Aquino Alves, o mais expressivo dos seresteiros pirenopolinos – foram 71 anos, dos 7 aos 78, executando vários instrumentos, de corda e de sopro, no nobre ofício de encantar enamorados.

E os dias acontecem! Vieram notícias conturbadas da política – as que se tornam costumeiras, como as gafes presidenciais e as revelações inesperadas de correligionários nada confiáveis – ou decepcionados com seus líderes – a medidas assustadoras de magistrados imbuídos de autoridade e coragem – já não nos surpreende mais o informe de que algum poderoso foi conduzido à Papuda, etc.

No plano pessoal, muitas novidades também.

Coisas de casa ou família, como eventos paralelos em encontros de aniversários e outras razões de alegria. Alguns ligam para contar de dengue (muito comum, isso), de zika (epa! Isso é novo e o novo sempre assusta, ou dói, ou decepciona).

Até onde vai nossa descrença com os líderes que aceitávamos há até bem pouco tempo?

Líderes têm tempo de validade. Como o leite no saquinho ou na caixa, os confeitos das padarias, os remédios que – dizem – controlados. O que muita gente não percebe é que também a nossa paciência tem tempo de validade – como a deles. Mas esses acham que a impaciência é um direito exclusivo deles lá. Coitados!

Desmandos de auxiliares do governo, contestando e descumprindo decisões de elevados magistrados. O clima de festa ao instalar-se importante nova unidade policial... Ah! Na área policial, novidades drásticas – como a designação do vice-governador, brilhante bacharel em ciências jurídicas, para a Segurança Pública. E na primeira semana, a inauguração da sede de uma segunda (já havia uma em Anápolis) Delegacia de Apoio ao Idoso. Estranha-me o seccionamento das ações, pois se é preceito constitucional a “igualdade perante a lei”, fico por entender uma Delegacia da Mulher e, agora, Delegacia do Idoso.

Quem me esclarece é a jovem, bela e competente jornalista Flávia Lelis, gestora da Assessoria de Comunicação Setorial na Secretaria da Cidadania. E, para simplificar numa só frase o que conversamos, conto-lhes que adotei por nítida e clara a tradicional frase: “Na prática, a teoria é outra!”, pois no trato com a mulher e também com os velhinhos (confesso: estou com 70 anos, mas ainda não me senti velho), não é qualquer delegacia de política que se reveste das condições necessárias.

Finalizo nesta tarde de sábado, feliz e contente, no convívio de familiares vários, para total alegria! E que as notícias de família sejam mais constantes que as dos desmandos nas esferas políticas e econômicas.



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Luiz de Aquino é escritor, membro da Academia Goiana de Letras.