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sábado, fevereiro 24, 2018

Réquiem a Dom José Fernandes

Professor, crítico e literato mas, sobretudo, um coração dadivoso: nessa foto ele fazia algo de que gostava muito: doar livros.

Réquiem a Dom José Fernandes


Era 1983, talvez abril. Desempregado, atrevi-me a tocar um bar na Tamandaré - na época, o ponto efervescente de Goiânia, tempo em que as pessoas eram sempre conhecidas. Começo de noite, mal abrira as portas e surge-me aquele moço branco, de óculos e ar professoral, quase beato. Não errei: as décadas seguintes confirmaram o que senti.
O homem chamou-me pelo nome:
– Luiz de Aquino, boa noite! Eu sou José Fernandes, professor de Literatura na Universidade Federal de Goiás. 
Entabulamos um papo bom. Ele tinha nas mãos meu único livro de então – "O Cerco e Outros Casos" – e comentava meus contos, falava de recursos e linguagens, e decidi que era fácil gostar daquele moço.
Meses depois, encontrei-o lá no seu próprio ambiente, o auditório da UFG. Chamou-me para sentar ao seu lado. Uma professora (por sinal, de quem eu fora aluno no Liceu vinte anos antes) perguntou-lhe "Quem é esse rapaz?", e o professor qualificou-me para ela, atribuindo-me qualidades que eu desconhecia – mas se ele me via daquele modo, não o contestei. Até porque já o sentia amigo.
Palmilhamos nossos caminhos, que em muitos pontos se esbarraram nestes 35 anos. Frequentamos eventos culturais e viajamos juntos algumas vezes, sempre em funções literárias, fui secretário-geral da Academia Goiana de Letras quando ele foi presidente, estive ene vezes em sua casa onde, com alegria, conheci muitos mestrandos e doutorandos de Letras, bem como professores que eram também doutores e autores de prosa e verso – enfim, isso já seria o bastante para admirar o mestre Dom José Fernandes (ele sempre gostou de nos chamar com esse tratamento, Dom), mas eu fui além. 
Esse ir-além diz respeito às minhas consultas espontâneas e sinceras, sempre que alguma dúvida mais intrigante persistia, mesmo após pesquisar em gramáticas e outros compêndios. O mestre atendia-me solícito e seguro, e era ele, ainda, o meu consultor fidedigno nas frases, casos (e histórias também) que envolviam o Latim.
Foi, com sua vasta experiência no meio, um companheiro de alta valia quando presidi a União Brasileira de Escritores em Goiás. Numa série de entrevistas em vídeo para a Academia Goiana de Letras, ouvi-o numa manhã feliz em sua chácara no Condomínio Califórnia, em Santo Antônio de Goiás – material excelente que está salvo em bytes, a ser editado brevemente.
Enfim, esta crônica que antevê a saudade não é mais que o jorro de um desabafo, de um esforço inútil para prevenir-me que essa ausência não tem conserto e que, desde agora, sinto-me em desamparo do jeito carinhoso do amigo desde a indefectível saudação – "Oh, Dom Luiz!" – até a orientação inefável sobre algum verso, alguma frase ou andamento, na prosa e na poesia. E, como eu, algumas centenas de orientandos, em graus de graduação, mestrado e doutorado, entre outros degraus do aprimoramento, lamentarão essa ausência.
Não quero dizer de perda, Dom José! Quero, sim, dizer ao Pai Criador que lhe sou grato por ter-me permitido este convívio salutar e prazeroso. Digo mais que sou feliz, ainda, por ter vivido este tempo em que nossa terra de Planalto e Cerrado enriqueceu-se com a sua vivência entre nós, que você enriqueceu nosso aprendizado e nossas letras, expandindo luzes por onde passava.
Seja bom o seu novo lugar. Amém!

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Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras.

domingo, fevereiro 18, 2018

Folia pós carnaval (o direito de espernear)

Folia pós carnaval



Pronto! O mago do Planalto (o palácio, não a região central do país) mexeu a poção de seu nefasto caldeirão de maldades e surpresas desastrosas e a fumaça esverdeada revelou: intervenção verde-oliva no Rio de Janeiro (o Estado, não a cidade). O cenário foi adrede preparado: o governador pôs os pezões na salmoura e o bispo cricri, que ainda não compreendeu sua função na Prefeitura da capital, a decantada Cidade Maravilhosa, foi para o frio europeu para aprender segurança pública numa agência espacial....

Bem! O Pezão não sabia que haveria carnaval no Rio de Janeiro este ano, ninguém lhe comunicou. Então, ele não cuidou de um plano de ação para a segurança pública. Crivela se esqueceu de combinar com os austríacos – ou tentou combinar, mas o jeitão europeu não é dado ao nosso jeitinho – e não conseguirá, em momento algum como ele transportaria para a nossa tropicália os recursos de segurança da Europa Central – e também da Nórdica – se lá não há carnaval, não há crioulos nem mulatas dançarinos, não há sequer a ideia do que vem a ser o nosso carnaval e, ainda, lá não há favelas nem comunidades, marcas fortes da encantadora Belacap (esta eu saquei da memória distante, mas esse epíteto durou muito pouco na antiga capital do Império e dos tempos republicanos do Catete).

Então o mago Marum (sim, esperavam o Merlim?) inspirou seu colega Cotonete, ou Algodão Doce, que soprou ao ouvido do Drácula, que chamou o Abominável Homem tropical que não larga o osso e, como quem fizesse mágica, anunciou: “Vou decretar intervenção federal na Segurança Pública do Rio de Janeiro”.

Cricri deve ter se estrebuchado todo! Afinal, o curso de Segurança que ele foi fazer em seis ou sete países em pouco mais de uma semana não lhe valeria nada! O líder Maléfico preferiu designar um general e fim.

Bom! Nenhuma crítica a tal medida que, no primeiro momento, pareceu-me a saída honrosa para o vexame que o temível inquilino dos palácios brasilienses passará se rejeitarem a reforma constitucional que transformará a previdência num tormento inigualável para os pobres. Ele vem perdendo alguns votos a cada dia e aqueles 28 que faltavam há algumas semanas hoje já se tornaram 40.

Então, como a emenda assim pareceu também a alguns parlamentares que não se alinham com o puxa-tapete (e também porque sua inseparável sombra, o banqueiro da Fazenda, deve ter ficado uma fera), ele anunciou, analisando: “Enquanto vigorar a intervenção, não se pode realizar qualquer reforma constitucional; por isso, assim que as bases me acenarem com os votos necessários para aprovar a reforma da Previdência vamos suspender a intervenção para proceder à votação, em seguida vamos reativá-la”.

Ora... isso teria de se aplicar à Câmara para as duas votações. Depois, o mesmo procedimento no Senado – ou seja, ele suspenderia a intervenção por duas vezes e a reativaria para cumprir o prazo previsto no decreto da última sexta-feira, dia 16/02/18, que se encerra no dia 31 de dezembro de 2018 – o último deste malfadado governo.

Não fui o único jornalista brasileiro a rir desse anúncio. Alguns recuperaram a compostura e falaram seriamente nas rádios e nas tevês, mas eu continuo rindo.

Para que, então, serve a Constituição? Ele quer reformá-la para piorar a Previdência dos pobres (a dos poderosos é imexível), mas esbarra num impedimentozinho à toa e anuncia que vai driblar a Carta Magna!

“Mon Dieu”, diria De Gaulle! “Que país é este?”, perguntaria Francelino Pereira, que presidiu a famigerada Arena e governou Minas. “O que dirá o Supremo?”, perguntarão milhões.

Mas as semanas virão e o garotão que preside a Câmara, aquele que não sorri nunca, conferirá o termômetro das vontades parlamentares. O jeito é esperar.


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Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras.

domingo, fevereiro 11, 2018

De novo a GO-225 e o descaso da Agência Goiana de Transportes e Obras Públicas

Foto em matéria da jornalista Carla Borges / jornal O Popular


GO-225: Agetop destaca Eunício 

Oliveira e omite José J. Veiga


Há três semanas, em matéria curta e objetiva, contei nas páginas deste Diário da Manhã da minha sugestão, acolhida pelo saudoso deputado Professor Luciano, de nomear o trecho pavimentado da GO-225 (Pirenópolis – Corumbá de Goiás) como Rodovia Estadual José J. Veiga. A proposta virou lei, ou seja, foi aprovada pela Assembleia Legislativa e sancionada pelo governador, em dezembro de 1998, poucos dias antes da posse de Marconi Perillo para seu primeiro mandato.

Esta denominação se deu por força de lei - mas a Agetop prefere bajular o presidente do Senado.
Em 2010, dei por falta das placas em que aparecia o nome do homenageado. Cobrei isso da Agência Goiana de Transportes e Obras Públicas (Agetop), que não me atendeu. Aguardei a mudança de governo, com o retorno do governador Marconi Perillo, mas o titular da Agência de Obras, sr. Jayme Rincón, bem ignorando solenemente meus pedidos. Não nos conhecemos, nunca tive um contato direto com ele, mas vali-me de intermediários importantes (membros do atual governo) que o presidente da citada Agência rejeito, também.

Colegas jornalistas publicaram minhas súplicas ao engenheiro Jayme Rincón – debalde! E a minha cobrança mais recente teve chamada de capa no DM – mas o que vejo como reação foi uma notícia publicada em O Popular – o outro trecho da GO-225 – de Corumbá de Goiás a Alexânia – leva o nome do presidente do Senado, Eunício Oliveira, que é proprietário de uma fazenda à margem da rodovia em questão. E o nome do senador, que é investigado pela Justiça por malfeitos na vida pública, está solenemente entronizado nas placas.

Ou seja, o sr. Jayme Rincón deixa claro sua preferência por um político poderoso em troca de cumprir o que determina uma lei estadual e homenageia o representante de outra unidade federativa. Mas o escritor goiano que levou o nome de nosso Estado a mais de 40 países de pelo menos 17 idiomas é omitido, ignorado e lançado na vala dos comuns.

Levarei, nos próximos dias, esta inquietação ao seio das principais entidades culturais de Goiás, como a Academia Goiana de Letras, a União Brasileira de Escritores, a Associação Goiana de Imprensa e ao Instituto Histórico e Geográfico de Goiás.

Um servidor público, ainda que na solenidade de uma presidência, deve respeito às leis e satisfações ao povo. Um artista consagrado e divulgado, como o foi José J. Veiga, é um símbolo intocável de nossa história, de nossa identidade, de nossa cidadania. O poder momentâneo é rapidamente olvidável, mas as marcas das artes, não. Quem era a grande autoridade das obras públicas em Londres nos anos de vivência de William Shakespeare, naquele distante Século XVI? O nome de Da Vinci e Michelangelo ecoam muito mais através dos séculos do que o do Papa que encomendou a este último os afrescos da Capela Sistina.

Ou seja, José J. Veiga vai muito além de Eunício Lopes de Oliveira, caríssimo Jayme Rincón! E finalizo com o mesmo parágrafo derradeiro com que encerrei a matéria aqui publicada em 20 de janeiro último:

“Bem! Resta-me implorar uma vez mais ao governador Marconi Perillo que determine a reposição dessas placas. O homenageado deixou seu nome fortemente marcado em nossa história e recuso-me a aceitar o descaso do Sr. Jayme Rincón”.

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Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras.

quarta-feira, fevereiro 07, 2018

Cais do Valongo








"Aqui sambaram nossos ancestrais"


A História do Brasil, se comparada a um quadro de arte, tem na moldura molhada de oceano muito mais que um tronco estrutural, mas igualmente a alma que anima os corpos. A tela, propriamente, tem breves marcas, como as invasões de bandeirantes e as corridas em busca de ouro e outras riquezas do subsolo. E nessa alongada borda alguns pontos têm um chamamento maior, que seu verniz se adensa em faixas do Nordeste e nesgas do Sul, com o foco maior nas cercanias da Baía de Guanabara, isto é, na cidade do Rio de Janeiro. |Nome bonito e sonoro, atribuído a um erro do almirante Américo Vespúcio, que, pensando tratar-se a baía da voz de um rio, assim o chamou. Mas não é bem assim. Vespúcio deve ter usado a palavra "ria", a grosso modo um feminino de '"rio". "Ria" vem a ser "braço de mar", só isso.

Era pouco menos de dez horas quando desembarquei no Aeroporto Santos Dumont. A pista está a apenas 25 metros, por uma ponte, da Ilha de Villegagnon, onde está a Escola Naval - a academia da nossa Marinha de Guerra, centro formador de oficiais da Armada. A paisagem, pois, já me faz viajar na história. À minha espera, a amiga de um tempo remoto, os anos ginasiais, Rosália Perissé, que me surpreende: vamos guardar sua bagagem e dar um passeio especial.

Tomamos um VLT e fomos até a zona portuária. O passeio incluiu o Museu Histórico Nacional e o Real Gabinete Português de Leitura (isso há de merecer outras crônicas), mas quero falar do complexo dos antigos portos. Constitui-se de vários armazéns​ desativados, restaurados há poucos anos, num projeto arrojado e amplo que resultou em museus surpreendentes. Dentre eles, o Museu do Amanhã, de arquitetura arrojada e recursos da moderna tecnologia para uma viagem ao tempo vindouro.

Se o tema fosse o dia de passeio pelos museus do centro do Rio, renderia uma pequena série de matérias para o DMRevista, a nossa editoria cultural. Mas o espaço de hoje é curto, as emoções vividas são intensas e profundas - como a energia fantástica das excelsas estantes do Gabinete Português de Leitura ou as peças expressivas e tocantes, de canhões a vestimentas, do Brasil Colônia e Império, no Museu Histórico, ou mesmo um rápido lanche na Confeitaria Colombo. E ainda o contagiante encontro com o futuro no Museu do Amanhã, que feito uma língua adentra as águas da Guanabara como quem saboreia o passado - sem o qual não se faz futuro.


E não muito longe, expostas a céu aberto, estão as pedras do Cais do Valongo, que ganhou proteção do governo brasileiro por uma lei - de número 3.924, de 1961 - e desde 2013 reconhecido pela Unesco como Sítio de Memória do projeto Rota do Escravo - Resistência e Liberdade.

Uma placa conta que, ao longo de três séculos, cerca de quatro milhões de africanos entraram no Brasil, trazidos com o propósito precípuo do trabalho escravo - mais da metade deles entraram pelo Rio de Janeiro. Os livros de História na escola são, naturalmente, a nossa primeira fonte sobre o tema, mas muito se tem feito, em letras e artes, sobre a deprimente prática escravagista, que permaneceu legal durante a colônia e por quase todo o império. Na música, muito se fala, em lamentos e exaltação. Do fundo da memória, colho várias canções e, delas, realçam-me estes versos de Chico Buarque de Holanda no samba Vai Passar: 

Ao lembrar
Que aqui passaram sambas imortais
Que aqui sangraram pelos nossos pés
Que aqui sambaram nossos ancestrais
Num tempo
Página infeliz da nossa história
Passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações

E estes mais, De Aldir Blanc, em Mestre-Sala dos Mares, na melodia de João Bosco:

Salve o navegante negro
Que tem por monumento as pedras pisadas do cais
(Mestre-Sala dos Mares).


Tudo isso vivido em poucas horas, na quinta-feira que é o primeiro dia de fevereiro deste 2018 de incertas esperanças. É também nesta quinta-feira que a Academia Goiana de Letras começa as atividades deste ano civil, empenhada em, até o próximo dezembro, prestar todas as homenagens possíveis ao nosso confrade Eurico Barbosa - jornalista e advogado, autor de obra importante sobre a história contemporânea e caprichoso crítico literário. Por conta desta viagem, inadiável, não me faço presente à sessão inaugural deste período, mas sinto expandir sentimentos nobres de amizade, respeito e admiração ao notável colega e amigo, filho de Morrinhos - portanto, vizinho geográfico da minha Caldas Novas que, nos idos de 1911, emancipou-se da decantada Cidade dos Pomares.

A você, acadêmico Eurico Barbosa dos Santos, a minha homenagem que não nasce agora, nem se finda antes da minha (espero que distante) viagem eterna.



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Luiz de Aquino é escritor, membro da Academia Goiana de Letras.