Carmem
Gomes,
contadora de causos (*)
Também sou daquele
tempo e desse meio, o tempo em que Goiás era um território imenso e esquecido,
mais de 700 mil km² – antes que tirássemos um lote para ser o Distrito Federal
e uma gleba, metade do que nos restou, para ser Tocantins. Era um tempo antes,
também, que por aqui aparecessem o fogão a gás; e a cozinha era o espaço
preferido nas famílias daquele tempo e desse meio que só restam na nossa
memória.
Era o tempo em que
os quartos eram para se dormir neles e não um recanto onde se isola para curtir
mídias sociais, ao computador ou ao celular. As salas eram onde se recebiam
visitas; a cozinha, o reduto matriarcal, o espaço onde a mãe reinava plena e
senhoril, atuando ou ordenando. E, após “a janta”, quando escurecia e a mãe –
auxiliada pela empregada e pelas “meninas” (filhas) – já “lavara os trens” e
arrumara tudo, o pai enrolava um pito de fumo picado e palha seca, macia, de
milho.
O fogão mantinha
um foguinho brando; melhor assim, vai que seja necessário coar um café... melhor
atiçar que acender novo fogo. A criançada se juntava à espera. Era comum haver
tios e tias, as famílias eram grandes, numerosas e felizes naqueles momentos de
se conversar de coisas amenas, apreciar notícias dos distantes e de se praticar
o que os professores nos ensinaram ser “a tradição oral”.
Não me lembro bem
como começava a contação de causos. Muitas vezes, o mote era uma carta, algum
dos parentes “de longe” escrevera e as cartas chegavam cheias de coisas novas.
E como uma conversa puxa outra, falar de parentes se estende a outros mais e
nem tudo o que se fala ou se conta é fato real. Surgiam as histórias da família
e as lendas que as cercam.
Era comum o
contador de causos sentar-se na rabeira do borralho. A rabeira é a parte baixa
do tradicional fogão, o patamar em que se apoia a lenha a se queimar... puxar
para fora o lenho incendiado era amenizar o fogo. As noites daquele tempo eram
frias, ficar próximo ao fogo favorecia o bem-estar e estimulava o sono. Ainda
mais quando se tinha pai, avô ou tio bom contador.
Carmem Gomes é
fruto da mesma natureza que me forjou – éramos meninos à beira dos borralhos,
ouvindo algum mais-velho (pai, mãe, tia, avó – tanto faz!) a enlevar-nos
naquelas histórias. E havia o momento de induzir a criançada ao sono: era o
momento em que algum deles, adultos, emendava uma história sobrenatural, algo
de assombração, por exemplo, para nos meter medo e nos conduzir ao quarto.
Ao ler os originais
deste Beira de fogão – Histórias do
borralho, deixei-me levar às lembranças, sem pretender ligar as histórias
ouvidas por mim aos causos que ela vivenciou e reproduz aqui, em texto de boa
lavra. Este livro reflete os cenários naturais da Serra da Mesa, em Goiás,
naquele atual norte goiano, que ainda era sul de Goiás quando estudávamos os
caudais da nossa terra. É por ali que o Rio das Almas se une ao Rio Maranhão
para formar Tocantins, que dá nome ao novo Estado. E foi ali que decidiram, os
do governo, represar esses rios e formar um dos maiores reservatórios
hidrelétricos do mundo – o lago da Serra da Mesa.
Carmem Gomes viu
tudo acontecer. A obra, o desmatamento, os caminhões (às centenas) trazendo
gente e material, removendo a terra, fazendo a barragem... e tudo isso
coincidiu com o surgimento do agronegócio.
A vida prometia,
sim, mudar muito! O que lhe restava, além de adaptar-se aos novos tempos?
Escrever, é claro!
Ela conta as historinhas dos tempos da elevação das águas, da agitação na mata
porque a água subia... enfim, ela conta também de alegrias, da felicidade que
se tem no convívio com a natureza.
Feito uma tia ou
avó (aquelas mulheres que nos pareciam velhas porque ainda não éramos mais que
crianças), Carmem nos conta histórias. Como se fosse, pois, uma saudosa
contadora à beira do fogo na antiga cozinha. E nos traz isso que se contaria à Beira de fogão – Histórias do borralho.
Luiz de Aquino Alves Neto, da Academia Goiana de Letras.
(*) Prefácio para o livro Beira de Fogão - Histórias do borralho", a ser lançado brevemente.
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