As cotas e os tempos
Quando aprendemos a ler, ficamos encantados: “Como pode
isso? Uma série de desenhos a que chamamos de letras, dispostas em ordem tal que
se tornam palavras nas nossas mentes, ouvidos e voz, traduzem coisas tão
abstratas quanto as ideias e, feito mágica, tornam-se coisas concretas”.
O tempo que passa por nós ensina-nos muito mais coisas. Das
letras, entendemos, pouco a pouco, que não basta formar palavras ao juntá-las,
será necessário aprender e seguir incontáveis regras para que as escritas se
tornem, de fato, algo capaz de nos informar – e nos formar. Os textos ensinam-nos
muito mais! E o tempo “cura” o nosso aprendizado. Aprender enriquece, dá
alegria, felicidade, prestígio e, ainda, os meios para nos cercarmos de
seres, que se tornam amigos e até mesmo irmãos eleitos!
Todas as coisas, porém, têm dois lados, ou mais. E nessas variantes
descobrimos que existem, também, armadilhas que a vida nos prega, como a
interpretação unilateral, radical ou fundamentalista, porque subjetiva. A diferença, porém, não
significa tristeza, derrota ou desânimo: ela nos prepara para o tão propalado
contraditório – uma das palavras na moda nesta segunda década do século
vinte-e-um. O contraditório soa-me como acorde musical, ao contrário de
neologismos de sons ruins, como “empreendedorismo”, que bem poderia ser, apenas
e corretamente, “empreenderismo”; ou “empoderamento”, aplicado como coisa-nova
que se consolida. Bem podiam ser mantidas as anteriores: “força”, “conquista” e
a raiz “poder” – mas sempre há quem se atreva a sugerir uma novidade que os
menos esclarecidos esforçam-se por impor. É a época do politicamente correto –
outra novidade calcada muito mais em vocábulos do que em ações. Sim: os líderes
desse movimento “neodicionarista” (terrível, este também... desculpem-me)
empenham-se na construção de palavras, mas as ações, ah! Ficam sempre
relegadas.
Nessa onda, e em atitudes ou atividades a que muitos se
alinham sem sequer saber a razão, veio a luta contra as cotas nas
universidades, visando a dar chance aos “excluídos por razão de cor ou raça”. E
veio a luta contra as cotas para pretos, índios etc. E quem mais prega contra
isso são os admiradores baba-ovos do “american way of life”, sem saber que a
moda veio “de lá”.
Vejamos o que conta o engenheiro agrônomo Nilson Gomes Jaime
– mestre e doutor, escritor, genealogista e cidadão coerente em seu esforço
social e suas atividades profissionais. Pincei o texto de uma discussão entre
ele e o primo Dido Gonzaga Jaime. Não enfatizo o embate, mas o destaque que
colhi, onde se lê:
Meu pai era militar,
radical defensor da "Benfazeja Revolução de 1964". Na 7a. JSM, em
Palmeiras (GO), onde ele expedia as certidões de reservistas, tinha que se
vestir paletó e gravata, cortar o cabelo, jurar a bandeira e cantar o Hino Nacional.
Aos 14 anos eu já lia artigos militares que ele me repassava e revistas de
cunho lacerdista e militarista. Só que comecei a ver realidades menos evidentes
àquelas anunciadas pelos militares e pelos órgãos de imprensa, sob censura. Aos
16 já lutava contra a ditadura. Se alguma coisa faltava para ver as injustiças
de um regime de direita, o vestibular que prestei, e em que fui aprovado para a
Universidade Federal de Goiás, me levaria a ele. Ingressei na UFG concorrendo a
apenas 50% das vagas, porque não tinha fazenda, nem era proprietário rural.
Isso mesmo: 50% das vagas dos cursos de Agronomia e Veterinária da Universidade
Federal de Goiás – e nas de todo o Brasil – eram reservadas para filhos de
fazendeiros. Ou seja, cotas para ricos. Hoje quando se fala em cotas para
negros, o mundo cai. Entretanto, quando entrei na UFG (em 1980), de uma turma
de 40 alunos, apenas uns cinco eram pardos, como eu. Nenhum preto. Isso em um
país em que mais de 50% da população é de negros (pretos e pardos). O que cabia
a um jovem de 17 anos que já pensava? Ficar do lado dos que tentavam
embargar-lhe o caminho da universidade por força de um decreto ditatorial que
privilegiava ricos? Não! Absolutamente não! Juntamente com Osmar Pires Martins
Junior e centenas de outros companheiros pelo Brasil, intensificamos nossa luta
contra a Lei do Boi e contra o perverso regime que a criara e a sustentava.
Derrubamos a Lei do Boi, a cota social para ricos.
E aqueles estudantes não criaram neologismo algum. Apenas
agiram.
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Luiz de
Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras.
3 comentários:
Ao contrário do que me escreveu Nilson Jaime, mas não tendo, aqui, nada em seguimento à tréplica ou quadrúplica, me sinto honrado em ler Luiz de Aquino. Antes, nem sabia quem era. O Facebook, pasmem, me levou a ele, via Nilson. No Face, essa modernidade tão discutida, hoje, temos a oportunidade de encontrar pessoas.Algo precioso. Encontrar pessoas! Numa tribuna livre, aonde falam até os que deveriam se calar, pois nada somam, encontramos, nas entrelinhas, o alento para imaginar que nem tudo está perdido nesta terra. Há os Aquinos e os Nilsons, como alguns outros com os quais tenho tido o prazer de trocar palavras, num mundo de mudos e surdos, cegos e assemelhados. Nunca soube das cotas para ricos. Sempre fui contra quaisquer cotas, pois defendo o crescimento pessoal pelo mérito próprio. Vamos lá, Luiz e Nilson! As palavras dependem de penas fortes para sua sobrevivência. E vocês tem a força!
Surpreso com seu interesse por um texto mal-acabado para uso em rede social. De qualquer forma, obrigado.
Aos 62 anos, desconhecia a Lei do Boi. Ufa! Até que enfim eu a conheço. Contra fatos não há argumentos.
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