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sexta-feira, março 16, 2018

Marielle Franco


Eufemismo inaplicável



Estado democrático de direito. Alguém com bom senso, ao menos, pode me explicar o que as três palavras, assim juntadas, significam? O noticiário impresso, o eletrônico e as redes sociais estão abarrotados de notícias terríveis, redigidas em péssimo estilo, pronunciadas com total ignorância de regras básicas da Língua e até mesmo em frontal menosprezo aos conhecimentos básicos que, até há bem pouco tempo, eram indispensáveis aos que tiveram o privilégio da escolaridade ao menos mediana.

Já nas primeiras horas do dia, uma frase ecoa na rotina: “Mais um policial foi morto...”. Só no Rio de Janeiro, até a sexta-feira, 16 de março, a estatística era de 27, somente neste ano de 2018. A morte de civis inocentes, vítimas de balas perdidas ou alvos de assaltantes, não foi informada.

Na quarta-feira, a maldade foi posta à mesa da Câmara de Vereadores de São Paulo – uma reforma previdenciária para “punir” o funcionalismo municipal da desvairada pauliceia, elevando até a 14% dos salários acima de cinco mil e poucos reais – os mais pobres não seriam poupados, não: para estes, 11% de desconto para a previdência municipal (era 14 de Março, aniversário de Castro Alves e, por isso mesmo, o Dia Nacional da Poesia – o tradicional, pois a presidente Dilma Rousseff instituiu, por ato autocrático, o aniversário de Carlos Drummond de Andrade como mais um Dia Nacional da Poesia, e o “poetariado” nacional acatou, enriquecido com mais uma data festiva).

Os professores municipais da maior cidade brasileira manifestaram-se. E foram “normalmente” reprimidos com porradas e “cassetetadas” pela zelosa Guarda Civil Metropolitana, coadjuvada pela gloriosa e tradicional Força Pública – nome antigo da atual Polícia Militar paulista. Professoras ensanguentadas, professores feridos e “engravatados”, vidraças quebradas e o prefeito Dória, a quem a competente Guarda Metropolitana obedece, cinicamente, discursou a sua não-convincente discordância à violência praticada.

Na quinta-feira, dia 15, juízes federais, com os reforços dos procuradores de justiça também federais, entraram em greve: buscavam pressionar o Supremo Tribunal Federal a manter o antiético Auxílio Moradia. E deram andamento a essa malfadada iniciativa justo no dia seguinte ao assassinato da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro – o palco “mais glamoroso” para o esporte mais praticado no país, a pistolagem urbana. Covardemente, a moça foi alvejada quatro vezes na cabeça. O objeto que se mostra era o de calar a voz que se erguia contra a discriminação pela cor da pele, pela origem favelada, pela condição feminina... E ainda em defesa dos homossexuais, contra a matança sistemática, pela polícia, de meninos pretos que, por serem pobres e favelados, têm sido alvos das armas oficiais – não bastassem a discriminação, as limitações escolares, o convívio muito próximo com o tráfico de drogas, o contrabando de armas e os conflitos inevitáveis entre policiais e criminosos.

A nação brasileira estarreceu-se ante a violência. O fato atravessou fronteiras e mares, provocou instituições e nações, sacudiu até mesmo o Parlamento Europeu e o Alto Comissariado de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas – mas os juízes realizaram sua greve, sem que nenhuma Polícia Militar ou Guarda Metropolitana espancassem juízes ou lançassem gases contra os procuradores.

A vereadora carioca – jovem e mãe, preta e pós-graduada, política e corajosa – foi velada e sepultada. Muitas vozes se ergueram ante o silêncio que se tentou impor. Eram vozes do protesto lamurioso, da revolta instalada. Eram vozes em poemas e canções, em notas musicais e contextos sociológicos e jurídicos – claramente avisando aos algozes que a voz silenciada foi a da moça guerreira, mas seu pólen espalhou-se por milhares ou milhões de outras pétalas.

Nas redes sociais, o grito e a solidariedade, à causa e à família, aos amigos e à filha da vítima. Mas também textos de ódio e discriminação, por pessoas sem a coragem contagiante da vereadora, pessoas que destilam suas invejas e frustrações, escudando seus argumentos na prosaica forma de serem contra a esquerda a que a moça morta se integrara.

Ridículas reações, estas. A intolerância política, na esquerda e na direita, como na massa trabalhadora e nos portadores do capital, nas religiões e nas torcidas esportivas, essa intolerância é a semente dos ódios, sim. Respeitem-se as ideias contraditórias – desde que sejam mesmo ideias e não somente a repetição enfadonha e burra de lemas abusivos e desgastados.

Então, volto a perguntar: o que vem a ser, dentro da nossa realidade destes dias tristes, esse tal de “estado democrático de direito”? É o direito de matar quem pensa e se pronuncia contrário? É o conforto de xingar “comunista” aos que reclamam seu direito à saúde e à escola? A segurança se estremece quando o aparato policial espanca quem reivindica ou mesmo atira, de tocaia, com armas e munições do patrimônio público ou das sociedades clandestinas da bandidagem para calar desafetos.

E à sombra dessa morte, muitas outras desafiaram o Estado brasileiro, em ameaça ostensiva à Democracia e na indisfarçável intenção de não permitir o exercício pleno do Direito.


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Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras.

8 comentários:

Zanilda Freitas, poetisa disse...

Luiz, sua crônica me deixou calada por uns quinze minutos, pensativa e desarmada. Desarmada pela impotência que sinto diante de situações tão sórdidas e dolorosas como o assassinato dessa moça e seu motorista. Você pelo menos tem o dom de dar o seu grito de protesto! Nem vou te dar parabéns, porque a situação é tão grave e revoltante que esse tal “ estado democrático de direito” não faz o menor sentido, um eufemismo inaplicável. Excelente sua crônica!

Talmon Pinheiro Lima disse...

Parabéns pelo texto contundente e certeiro. Luiz De Aquino Alves Neto. Infelizmente, a qualquer episódio de repercussão, deparamos com a intolerância, a beligerância e o discurso de divisão dos patrícios. Nossa sociedade está doente, inoculada pelo ódio que atinge grande parte da população.

Bulua disse...

Excelente reflexão. Faço das palavras da Zanilda minhas também, o silêncio e a tristeza tomaram conta de mim. Que tempo terrível estamos vivendo.

Unknown disse...

Concordo e sinto da mesma forma! Como pode um crime tão brutal suscitar essa celeuma nas redes sociais, tentando denegrir uma das vítimas (Marielle)? Que Estado Democrático de Direito é esse?

Carmem Gomes, escritora. disse...

Caro poeta Luiz de Aquino Alves Neto. Do alto de sua experiência como jornalista, escritor e grande observador dos movimentos sociais, desde sua justificativa preliminar você já deixou claro que este crime cruel, brutal e premeditado (assim como dezenas de outros no Rio de Janeiro) será brevemente desvendado pela polícia. A polícia é o órgão competente e legal para investigar e apontar os criminosos. Visto com muita lucidez por você, a utilização dessa tragédia pelos abutres politiqueiros de plantão, que a transformaram em palanque eleitoreiro! Muito triste perceber que nos falta lucidez face a esses fatos! Da minha parte, penso que essa beligerância toda só serviu para fortalecer a ideia da necessidade da intervenção federal no Rio de Janeiro!
Parabéns pela análise lúcida deste momento conturbado!

Luiz Antônio Ungarelli disse...

Xará, excelente seu artigo!!
Conseguiu falar de todas as “merdas” que estamos vivenciando, inclusive de nossa língua pátria, que tem sido esculachada a todo instante!!
Parabéns, Xará!!

Ítalo Campos, poeta disse...

Maravilhoso e sereno artigo do L. Aquino.
👏🏼👏🏼👏🏼

Antônio Costa Neto, poeta e professor. disse...

Me considero um cidadão medianamente informado por rádio, TV, alguns jornais e internet (deveria ser mais) mas fiquei assustado ao saber da importância desta moça e eu nunca ouvi falar nada nem li nada sobre ela. Até brinquei que se antes do terrível assassinato se me falassem de Marielle Franco eu, sem dúvida iria perguntar de quem se tratava, Se era a esposa do Moacir ou do pintor Siron Franco? Duas penas lamentaveis: primeiro porque só os machos estão na grande mídia, salvo a minha ignorância e, segundo, a pessoa só presta depois que morre e não pode, portanto, falar ou fazer mais nada.
Lê-se sempre na Internet sobre ações proativas, líderes e lideranças que atuam aqui, na Europa, no mundo inteiro, mas nunca ouvi falar da vereadora Marielle. Mas ficam no ar dúvidas e perguntas. Mas deixa pra lá.
Por que não encontram os aasinios de Marielle se eles estão aí ao alcance da mão. Eles são o Lula, a Dilma, o Temer, suas trupes de assessores e a desgraceira que fizeram e que fazem deste país em relação aos pobres, á saúde, á educação, aos moradores das comunidades, ao povo que trabalha e sofre. Eles são os que dirigem o judiciário Nacional com mãos de ferro no sentido de garantir manejos, propinas e benéficos dos que são o contrário do que Marielle foi: são brancos, são homens, são ricos e corruptos e, por isso, mesmo, protegidos.
Faltam achar os meros executores do crime, os escravos, os operários paus-mandados da bandidagem de plantão. Assim como nas convencionais linhas de produção nos trabalhos e nas fábricas quem executa, bota a mão na massa, sua e se suja de graça é menos importante do que quem gerencia, comanda e controla, na linha do crime deveria ser seguida a mesma lógica. Causas vem antes dos efeitos e aquelas são mais valorizadas do que estes e tudo é legal perante os olhos dos causadores dos que causam este mal capitalistas que são os que fazem, aprovam e impõem as leis, ficando, por isso mesmo, privilegiados e fora dela.
O crime está feito e os mortos, enterrados. Claro que causadores e executores precisam ser, exemplarmente, presos e punidos. Mas enquanto não se encontram os executores, os operários, que deveriam ser, pela ótica atual e vigente, os menos culpados, Se prendermos os causadores, os cabeças, os maiores responsáveis já estaríamos a mais de meio caminho andado em busca do tão sonhado processo de justiça. E estes estão aí, em suas mansões luxuosas. Ao alcance das mãos, em especial, das mãos dos interventores militares que vieram sofisticar a guerra como quem apaga fogo atirando gasolina.


NOTA - O comentário acima, do professor e poeta Antônio Costa Neto, veio datado de 17 de março, mas por questões técnica somente hoje consegui postá-lo. L.deA.