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Pintura de Almada Negreiros
Amor
passageiro
Tocava meu queixo
com a ponta dos dedos,
puxava o meu olhar e,
apaixonada, cantava
para o meu encantamento.
(L.deA.)
Acabo
de me vacinar contra Covid-19. Cumpro essa rotina, agora com dose única, desde
que, após três anos, a vida retomou a rotina, ainda que as pessoas adotassem
novos procedimentos para a proteção individual ante a nova doença, surgida nas
primeiras semanas de 2020. Ao deixar o posto de vacinação, vejo-a chegar com o
pai numa cadeira de rodas. Lembrei-me de quando os vi, naqueles dias iniciais
da vacinação, em fevereiro de 2021.
Era
o tempo da prolongada quarentena, imposta pelo rigor da pandemia que assolou o
mundo e a humanidade em plenitude. Uma ordem comum espalhou-se por todo o
planeta, pelos lugares aonde chegavam notícias e temores. Nos primeiros dias
corria-se às notícias, ora no rádio, ora na tevê, e todo o tempo possível
voltava-se à busca de novidades.
Vieram
as mortes. Uma em São Paulo, outra mais no Rio, outras alhures e tentava-se
alcançar proteção, evitar que o mal atingisse o que se tinha por próximo – mas
pouco tempo se deu até que a moléstia se aproximasse. E vieram os casos graves,
as primeiras mortes, a incerteza quanto ao tratamento e, súbito, a morte também
chegou perto. A solidão do recolhimento era como a tábua do náufrago: a única
esperança de salvação.
Álcool
em gel; álcool líquido a 70 graus. Máscaras que, rapidamente, sumiram do
mercado e dando lugar à criatividade de costureiras profissionais, além da
mobilização em famílias para a feitura da nova peça indumentária, que
rapidamente se fez tão usual quanto qualquer peça de roupa no uso quotidiano.
Então,
fez-se preciso preencher os dias. Trabalhos domésticos, velhos discos e filmes
e os indispensáveis livros. A releitura. Alguns livros ainda não lidos. Livros
adquiridos entre amigos e parentes, muito por ler, pois! Mas os dias ganharam cores
mortas e odores à beira do insensível. O refúgio escolhido: livros de poemas e
romances – uns com o peso bem medido dos temperos inusitados, outros insossos
como as frases comuns das pessoas inexpressivas.
Foram
muitos os meses até que surgisse a grande esperança – a vacina. Houve o empenho
da imprensa e dos médicos, pressão da Organização Mundial da Saúde, e muita
gritaria antes que démarches fossem
iniciadas. Por fim, as primeiras doses e um programa de prioridades quanto a
quem seria vacinado primeiro. Aos meados dos meus anos quarenta, sabia que
teria de esperar meses e meses até sentir a agulhada no braço para a primeira
dose do imunizante. Mas, como repórter, estava sempre em pontos da linha de
frente das ações – e, daquele dia em diante, os postos e as filas para a vacina
eram a minha pauta.
Corria
a terceira semana, ou a quarta, quando a vi. Descia do carro e dava alguns
passos até a porta direita, que abriu e acolheu aquele homem, de poucos cabelos
grisalhos e alguma dificuldade na locomoção. Deu-lhe, com graça, o braço
esquerdo e lentamente caminharam à recepção; em poucos minutos, sorrindo feliz
a moça filmava, com o celular, as ações que culminaram com a picada e a injeção
segura do líquido salvador no braço do pai – sei porque ela o chamou, como que
festejando.
Saquei
o telefone e liguei-o para a entrevista, com som e imagem. Nome, idade,
profissão... A filha antecipou ao homem idoso e aquela voz deixou em mim uma
esperança legítima. Legítima, sim: ela falava comigo como se pretendesse falar
mais e, por isso, surpreendi-me ao lhe pedir o número do celular, ao que ela
atendeu de pronto, sem receios nem barreiras. Por três ou quatro vezes eu
liguei; e pelo menos em duas ocasiões ela chamou. E por sentir que era bem
recebido, propus um café.
O
primeiro encontro foi rápido, inusitado... No próprio carro à porta de sua
casa. Sem medos nem zelos, ela aceitou a porta aberta; entrou e passou-me a mão
esquerda, que colhi e beijei, atraído por um perfume delicado, estonteante. Não
percebi o instante em que, tirando a máscara e removendo também a minha, ela me
beijou. Acho que me mostrei um tanto surpreso, talvez assustado, ao que ela me
tranquilizou:
–
Você sugere confiança – ao que retruquei:
–
Não se cuida?
Sim,
ela se cuidava. Costumava ler meus artigos no jornal e acompanhava meu trabalho
na televisão. Por isso dizia confiar, mas insisti em propor cuidados.
Não
adiantou muito. Já nos beijávamos com sede e lascívia. Ouvi frases de
despertar-me delírios, justo após, com decidido atrevimento, acariciar-lhe os
seios.
–
Eu me excito com muita facilidade – disse ela.
Com
delicadeza e segurança, toquei-lhe o peito direito e fiz descer a blusa;
divertida, ela explicava com indisfarçável felicidade:
–
Vê que meus mamilos são pretinhos? Tenho raízes, orgulho-me delas!
As
circunstâncias eram arriscadas, um namoro avançadinho no carro, à luz do
meio-dia em rua movimentada... Interrompemos os toques e combinamos para mais
tarde. Corri para casa, cuidei de arrumar o apartamento para recebê-la.
À
noite daquele mesmo dia, trouxe-a ao meu miúdo e aconchegante apartamento no
Marista. Apartamento de solteiro namorador, sempre cuidei de manter à mão boa
bebida e comidinhas várias para antes e depois do amor. O ambiente era
favorável – afinal, era indispensável preparar o clima de romance – e de amor,
quem sabe?
Soube.
Eu ansiava pelo beijo morno e molhado, o passeio mútuo das línguas cúmplices, a
textura e a temperatura da pele morena. Entre um beijo e outro, ela dizia
coisas e eu também murmurava ternuras.
–
Vai conhecer melhor meus morenos.
Ela
falava dos detalhes afros de sua pele: além dos mamilos e aréolas, os pelinhos
bem tratados, aparados, bem como as axilas depiladas e escuras, atestando a
origem.
Tanto mais se amorena
quanto menos roupa tem,
e eu lhe beijo esses morenos
porque sei que me faz bem.
Por
outros momentos, noites ou dias, e outros locais, em viagens escolhidas,
amamo-nos com uma intensidade incomum, feliz e árdua. Mas em poucas semanas as
rotinas retomaram nossos dias e nosso tempo. Não sei em que momento nos demos
conta das ausências, dos silêncios, das mensagens interrompidas. E não mais nos
vimos.
Agora,
ei-la de novo num posto de vacinas. Trazendo o pai. Cuidando dele.
Afasto-me
discretamente... À simples visão de uma cena repetida senti tremerem-me as
pernas. Acho que, mais tarde, devo lhe telefonar.
Ou
não?
25 comentários:
Maravilhoso meu amigo.
Poema lindo
Amigo Luiz, li o conto, há pouco, e gostei: a ideia de contar uma história de amor, tendo como pano de fundo a pandemia (surgida, a história, na pandemia), ficou bem interessante. Melhor, ainda, é a crítica sutil que você faz ao descuidado e irresponsabilidades perpetrados pelo (des)governante deste país. A moça conhecia o repórter, que não a conhecia:
"Não percebi o instante em que, tirando a máscara e removendo também a minha, ela me beijou. Acho que me mostrei um tanto surpreso, talvez assustado, ao que ela me tranquilizou:
– Você sugere confiança – ao que retruquei:
– Não se cuida?
Sim, ela se cuidava. Costumava ler meus artigos no jornal e acompanhava meu trabalho na televisão. Por isso dizia confiar, mas insisti em propor cuidados.
Não adiantou muito. Já nos beijávamos com sede e lascívia. Ouvi frases de despertar-me delírios, justo após, com decidido atrevimento, acariciar-lhe os seios". '
Jogo de vida e morte: Eros e Thanatos. Parabéns!
"Amor passageiro".
O autor tece delicada trama de sentimento e amor eufemizando a dureza e crueldade da pandemia. Também faz um contraponto interessante entre o adiantado da vida representado pelo pai decadente em cadeira de rodas e o frescor contagiante e provocante da jovem morena.
Muito bom!
Parabéns! Muito bom o conto.
Timbre Luiz de Aquino. Romântico e erótico, com fios críticos.
A sensualidade sobressaindo como pano de fundo (ou de frente) em tempos de pandemia. O apos pandemia inicia o conto.
Um conto de paixão em tempos de pandemia. Muito bom!
Um conto de paixão em tempos de pandemia. Muito bom! 👏👏👏👏👏
Meu xará sempre inspirado e falando com a alma da gente!
Muito bom, Luiz. Encontros e desencontros, fantasias, carências,os sonhos e o dia a dia vivido durante pandemia.
Lindo conto! Como tudo que você escreve ❤️❤️❤️
Na pandemia tudo é ligeiro. Há o medo do tempo levar o desejo antes de ser concretizado. Tão bom! O amor é utilitário. A pandemia se faz eterna.
Seu conto, de verdades e delicadezas, tem a marca de um grande escritor.
Ficou muito lindo, as pinturas maravilhosas, o texto lindo 👏🏽👏🏽❤️😘😘
"Não sei em que momento nos demos conta das ausências, dos silêncios, das mensagens interrompidas. E não mais nos vimos"- Lindo!
Boa noite, amigo Luiz de Aquino!!!
Mais um excelente conto!!! Parabéns!!!
Liga pra ela.
😃😃😃😃😃
Bom tarde, grande Poeta, pra desestressar o recuo da pandemia, só os carinhos de uma morena... muito bom!
"Amor passageiro" tem os fundamentos de um excelente conto: o inusitado, o inesperado, o condão de surpreender o leitor.
Não é esperado que pandemia se coadune com amassos e erotismo. Entretanto é o que ocorre. A testosterona suplanta o medo e acontece o encontro.
Dane -se a não-vacina e o coronavirus. Pode até morrer mas morrerá feliz. Quantas milhões de vezes o namoro inesperado ou proibido não terá ocorrido durante pandemia? O conflito ético e sanitário. Primeiro a Aids privou a humanidade do sexo sem culpa (e sem preservativo). Agora a pandemia traz restrições ao beijo e ao amasso.
Luiz de Aquino quebra tabus, descrevendo "os detalhes afros de sua pele: além dos mamilos e aréolas, os pelinhos bem tratados, aparados, bem como as axilas depiladas e escuras, atestando a origem."
Será que ao menos usou álcool gel?
Versejando ou proseando o poeta se supera. Não só exibe talento. Vai além. Fala pra nossas almas com o poder de aguçar todos os nossos sentidos colocando um sorriso em nossos rostos. Fazendo a gente dizer que o coração está em casa.
Amigo Luiz, nada como um fio sensual para reforçar a certeza de que o amor e a paixão estão sempre vivos. Vírus ou não. Telefonando ou não.
Basta o poeta!
Eu adorei ler esse conto. Muito bom. O Luiz sempre me surpreende com algo inusitado. Uma história amorosa num cenário de pandemia, mais que original, é um doce pecado.
Muito bom...em tempos de incertezas e tristezas, um encontro e um desencontro com fundo erótico, que nos faz esquecer os momentos difíceis que ainda estamos passando...
Muito bom, Luiz. Sensual. Sua marca. Mesmo tempos sombrios.
Muito bom, Luiz. Sensual. Sua marca. Mesmo tempos sombrios.
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