Os amantes, de René Magritte |
Intimidades
literárias
O homem é mais,
muito mais, que um ser semovente, pensante e inquieto. Busca sempre os espaços,
muitos espaços, e, com igual frequência, aglomera-se, associa-se, organiza-se,
faz o bem e faz o mal. É um ser de dois gêneros – e suas variáveis – que
primordialmente vive para a reprodução, ciente de que sua vida tem um começo e
uma única determinante – a morte.
Entre o nascer e
o desenlace, é-lhe dado todo o direito às escolhas. E o ser humano, em ambos os
gêneros, faz tais escolhas todos os dias, a cada instante, motivado por fatos
adjacentes ou por suas ideias – ou por ambos, concomitantemente. E, nesse
fazimento de novos caminhos, comete feitos lícitos e alguns nem tanto, que ele,
esse ser, mulher ou homem, busca preservar sob a pecha de “a minha intimidade”.
Aos escritores,
como a outros artistas, é dado o direito à escolha de evidenciar seus
‘bem-feitos”, sem que se lhe cobrem a vida íntima, que, por óbvio, é do
interesse exclusivo dos que compartilham dessa tal intimidade.
Ocorre-me um
escritor. Um dos muitos que li com avidez, com quem aprendi muito por lê-lo e,
para minha felicidade, de cuja companhia me enriqueci e pude considerar amigo;
não porque eu tivesse algo a propiciar-lhes, mas por desfrutar de um
aprendizado pessoal, com a liberdade de mostrar-lhes meus escritos e colher
opiniões.
Goiânia,
naqueles 1960 e tantos, era ainda uma cidade pequena. E seu pequenino universo
literário, minúsculo. Era comum espalharem-se os escritores – e seus leitores –
pelas calçadas que circundam o quarteirão do Grande Hotel. As quatro faces
dessa quadra – as avenidas Goiás e Ahanguera e as ruas Três e Sete – eram os
pontos mais agitados da cidade sob a luz solar. Além do primeiro hotel da nova cidade,
tido ante a História como “uma das cinco primeiras arquiteturas”, ali estavam a
companhia telefônica, o Banco do Estado, o Hotel Lord e seu afamado salão de
barbeiros, o Café Central – ponto de efervescência pela aglutinação de
políticos, comerciantes e fazendeiros, além de uma turba de aspecto duvidoso,
tido pela boca-miúda como pessoas contratáveis para serviços escusos e
condenáveis – pela moral vigente e pelas autoridades constituídas. Havia ali,
também, no trecho da Rua Sete – a dos fundos do Grande Hotel – a sede de uma
importante livraria, a Cultura Goiana. Chegou a ter três lojas no mesmo quarteirão
– as demais estavam na Rua Três e na Avenida Goiás, ao lado do famoso hotel
pioneiro. Por isso, a aglomeração de escritores e leitores naquelas calçadas.
Essa massa de intelectuais espalhava-se também para os rumos da esquina da
Avenida Anhanguera com a Rua Seis e o lado oposto da avenida Goiás, em frente
ao famoso hotel já referido – as duas lojas do Bazer Oió, a única livraria
fechada pela ditadura de 1964 a 85 em todo o país.
Pronto! O
ambiente está demonstrado – ao menos o ambiente urbano em que praticávamos
nossa vida social à luz do dia. Então, é hora de falar da personagem. Usava um
boné de pala curta, modelo comum na Europa de ingleses, portugueses e
italianos; dificilmente era visto em “mangas de camisa” ou sem dois ou três
livros sob o braço. De pouca conversa, ligeiramente gago, não recusava prosa.
Nesse modo de ser, acolhia também os moços curiosos, ansiosos da atenção de
alguém famoso – e esse autor era, sim, já famoso: os jornais contavam de suas
correspondências com grandes vultos do Brasil das Letras, da publicação de um
conto seu num jornal alemão, do interesse de uma grande editora do Rio de
Janeiro interessada em publicar suas obras.
Contista exímio,
capaz de narrativa encantadora, desses que nos prendem desde a primeira frase
até o suspense ao final, quando a mente continuava a supor os momentos após o
ponto. Uns tempos após a estreia, com alguns livros de contos já por demais
divulgados, aqui e além do rio Paranaíba, atreveu-se ele a um romance – e
repetiu o sucesso que o marcou na jornada dos contos. Houve uma experiência em
versos, mas não foi tão feliz na forma poética: voltou à prosa, tão rica de
imagens e construções poéticas que os leitores o perdoaram pela tentativa nas
sendas de Bilac, Bandeira e Drummond.
Aos poucos,
inteirei-me de sua vida; soube da tentativa de viver na antiga capital federal,
entre o mar e o maciço da Tijuca, ou num subúrbio da Zona Norte; importante
mesmo seria estar na efervescência dos notáveis das Letras. Não conseguiu viver
longe do cerrado, dos rios Corumbá e das Almas, Vermelho e Paranaíba. A
escrita, porém, persistiu no seu tempo – afinal, desde sempre era de sua
essência, de seu propósito de vida. Fez-se servidor público municipal, depois
professor, escreveu para jornais, orientou principiantes, atendeu sempre ao
apelo de professores de todos os níveis para falar aos jovens e às crianças.
Gostar dele
sempre foi muito fácil. Era gentil com as pessoas, ouvia críticas – uma
elogiosas, outras nem tanto – e a elas respondia como quem esclarecesse algo;
tinha muito a ensinar, mas preferia conduzir o leitor à descoberta.
Discreto sempre,
cuidava de isolar-se para as leituras e as escritas – como fazemos todos os que
trabalhamos textos. Nessas ausências e silêncios, nem todo o tempo era
consumido no ofício – algo de peraltice (ou de pecado) estava nas preferências
do meu herói de causas literárias. O nosso ídolo mantinha, com a possível
discrição, um miúdo apartamento num grande edifício ao lado do Mercado Central.
Morei ali por cinco anos, e foi por isso que descobri dele algumas peraltices
(quase falei “levadices”). Gostava muito, meu velho amigo, de dois tipos de
mulheres – as negras e as loiras. Não se interessava pelos tipos indígena,
morena ou oriental, mas sim pelas “escandinavas” e as do “navio negreiro”.
– O preconceito
de cor foi criado pela mulher branca, quando percebeu que a preta lhe era
superior – dizia ele.
Morava eu no
mesmo andar da garçonière do velho
escriba. Certo dia, sabia eu que ele estava em casa (o tapetinho com a
inscrição Bem-vindo estava do lado de fora). Ao sair do elevador, vi uma mulher
jovem e bonita, ligeiramente gorda; batia na porta, insistia, teimava... Entrei
em casa; a moça continuava batendo na porta e tocando a campainha; saí de novo
e decidi “informar”:
– Moça,
desculpe-me, devia ter dito antes, ele viajou.
A mulher me
olhou com desdém: abaixou a cabeça, empurrou o pequeno capacho com a ponta do
pé e desistiu: caminhou para o elevador sem me olhar nem dizer tchau. Mais
tarde ele passou por mim, junto à portaria; contei-lhe sobre quem chamava à
porta e ele: “Não podia mesmo atender, estava com uma escandinava”.
Este foi um caso
que presenciei; e, aos poucos, habituou ele a confidenciar-me algumas histórias.
Havia as pitorescas e as complicadas, como a de uma “aventura catalana”, no
dizer dele mesmo. Sempre que se via liberto, por dias ou semanas, das amarras
do casamento, enviava dinheiro para a namorada que, no decurso de uma noite,
tomava o trem para Goiânia. Ele não a esperava na estação, seria arriscado
expor-se, mas a moça tinha consigo a chave do “rendez-vous” particular do
contista.
Pois bem!
Aconteceu, para surpresa do rái soçaite
local, a separação, que logo virou divórcio, conforme a evolução das leis. A
moça do interior alimentou esperanças, mas o amado decidiu-se por outra
alternativa. Foi então que ela, incitada por invejosos e estimulada por um
jornalista desses que, à falta de notícia, inventa uma polêmica – ou um
escândalo – publicou um livro, contando particularidades de suas vindas
secretas a Goiânia. E lá, do meio para o final da obra, em texto sofrível, a
traída contou das lembranças:
– Você com seu
bonezinho típico, as pontas dos cabelos escapando dos beirais do chapéu, totalmente
nu passeava pelo apartamento com minha calcinha dependurada no...
Este conto integra a coletânea O escritor como
personagem, idealizada e coordenada pelo
jornalista Euler Belém e pelo escritor Ademir
Luiz, presidente da União Brasileira de Escritores
de Goiás, e foi publicado em 18 de outubro
de 2021 no JornalOpção, de Goiânia.
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