A geração que viu antes
Nossos pracinhas mobilizados, em 1944, para libertar a Itália. |
A
minha geração estava certa. Ou quase. Ou esteve certa, por um tempo. Em grande
parte, suponho que a maioria dos que alcançaram os bancos escolares, os
autodidatas que se informaram acendendo as próprias candeias e aqueles que, sem
a escola e sem o lume, souberam aprender na conversação, à luz do sol e dos
luares e na leitura dos sons das vozes de mães e pais, de avós e avôs, de tios
e tias, e vizinhos mais próximos. Somos nascidos no segundo quarto do século XX
e pudemos contaminar os que viram a luz primeira ainda nas duas décadas
seguintes, ou seja, por quase mais uma geração – considerando de 25 anos tal
conceito.
Nascemos
sob os sons dos canhões da Segunda Guerra – ou ainda percebendo os ecos das
batalhas. As guerras exigem muito das ciências, da medicina, da engenharia etc.
As artes seguiram – ou antecederam – as ciências. As mentes de todos os cantos
aonde chegaram os gritos de ataque ou os gemidos das vítimas abriram-se para
tentar mudar o mundo e seus costumes. Grandes reflexos marcam profundamente os
tempos que temos como pós-guerra, desde a moda do que vestimos, como tratamos
nossos cabelos, como descobrimos o valor dos cosméticos, como passaram a nos
tratar os médicos... Precisávamos ajustar nossos costumes, não bastava adequar
a moda.
Do
meio literário, lá com os irmãos-do-norte, nasceram os beatniks, os
baratas-tontas, que logo contaminaram as artes em geral, dos pincéis às
partituras; o comércio pediu novidades e as indústrias também agiram, os
arquitetos e os desenhistas (hoje chamados designers) inovaram desde
nossas calças e camisas, saias e tailleurs, paletós e agasalhos, além de
uma nova arquitetura que inspirou Pampulha e Brasília, novos tipos e modelos de
automóveis e aviões; do Japão, a “terra do Sol nascente”, veio a miniaturização
que nos ofereceu rádios minúsculos, sem válvulas e dependentes de pequeninas
pilhas, em lugar da complexa rede da energia elétrica.
O pequenino e cobiçado rádio a pilha, japonês. |
O mundo se preparou para sair de casa: se, no começo do século, o homem aprendeu a voar, o sonho aumentou e a ganância também: “Vamos conquistar o espaço além da atmosfera!”.
Bandas de rock chegaram rápido, e sem timidez, nos anos 1950. |
No meu tempo de criança, os rapazes já usavam “calça faroeste”; o brim mesclado, que chamávamos de “brim curinga” – referência à marca oriunda do Moinho Santista – já era comercializado com facilidade nas lojas de tecidos por todo o país; mas a mesma fabricante do jeans (tradução: brim), citado sempre como “blue jeans”, lançou a calça pronta: a Faroeste, com um W bordado em linhas duplas, de contorno, nos bolsos traseiros da nada original five pockets criada pelo antropólogo Levi Strauss.
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Nos
anos que antecederam o golpe de 1964, os navios da maior armada do mundo,
atracados no Rio de Janeiro, eram liberados para visitação; estudantes iam lá,
muito mais para obter cigarros americanos em troca dos nacionais – mais fortes
e muito ao gosto dos mariners. Era comum, também, desde que se
dispusesse ao escambo, obter calças do brim azul fabricadas nos EUA – as
famigeradas “calças Lee”. A partir dos meados da década de 1960, o produto
entrou no Brasil com muita força e intensidade: as calças, confeccionadas sem
os cuidados que normalmente se exigem, tinham um defeito – as pernas eram
desalinhadas, ou seja, as costuras não tinham a simetria em cada perna; e como
era indispensável fazer ajustes, costureiras e alfaiates nacionais
ajustaram-se, com relativa facilidade, àquela coisa torta.
Algo, porém, há que se registrar sempre: somos nós, os nascidos naquele segundo quarto do século XX, os que resistíamos ao peso da infiltração norte-americana. O peso da propaganda das agências de propaganda do irmão-do-norte converteu, sei bem, a maioria dos meus contemporâneos: a música, o cinema e até mesmo a “ajuda humanitária” da USAID, que patrocinou por aqui de leite em pó a rodovias – além, claro, do golpe que nos privou de liberdade por 21 anos – aliciaram a opinião pública. Os remanescentes dos enganados refletem-se, hoje, no eleitorado que diz acreditar que “não houve ditadura” ou que “eles só perseguiram e mataram quem não prestava”. Na realidade, os que os aplaudiam, sim, eram “os que não prestavam”, tanto que doutrinaram filhos e periféricos a acreditar nessa balela.
Estou
hoje, portanto, no pedestal de quem nasceu poucos meses após o fim da Guerra,
em 1945, consciente de que me alinhei do lado certo. Recusei-me a falar inglês,
fui parcimonioso em curtir o cinema e a música vindos de lá; andei muito perto
de me imiscuir dentre os fanáticos (ou fundamentalistas), mas consegui
permanecer nacionalista sem xenofobia, acreditando que o crescimento dos povos
passa, sim, pelo intercâmbio das culturas.
Não
fizemos tudo, não; e sei, ainda mais, que não conseguimos proteger nossos povos
originários, e os militares doutrinados “por eles” (os alienígenas que
refugamos) maculam a dignidade da farda do Marechal Cândido Rondon, ao
protegerem os genocidas que envenenam os solos, assassinam as florestas e ferem
de morte os rios; que corrompem os povos nativos, seduzem-nos com álcool e
drogas, violentam suas mulheres e filhas e contrabandeiam inescrupulosamente
nossos minérios.
Mais
triste ainda, contudo, é ver que muitos – muitos, sim, maioria prejudicada – se
deixaram seduzir pelos cantos-de-sereia do imperialista. São pessoas
imediatistas, patrimonialistas, curtidoras do que se tem, hoje, por “zona de
conforto” e que pagam qualquer preço por tais benesses. Destroem as matas e o
cerrado; comprometem o ar e o clima; envenenam os solos e os rios – que estão
morrendo de sede – e se enriquecem ao produzir comodities. E, ainda,
torcem para elevar o valor do dólar e comprometem a sobrevivência dos mais
carentes, ao impor, no açougue da esquina, a dolarização do quilo de
coxão-duro.
25 comentários:
João Marcello - Mais uma lúcida aula de história e de amor ao Brasil. Parabéns Poeta!
Poeta querido ler você é caminhar pela história. Muito bom!
Receba meu abraço, confrade amigo Luiz de Aquino.
Memorialista falando por toda uma geração, ou boa parte dela, Aquino no far west verbal. Beleza, confrade.
Excelente a sua crônica, Luiz de Aquino, rememorativa de uma época que todos nós presenciamos.
Que crônica fabulosa… deu um passeio após a segunda guerra, passando pelo jeans até quase os dias de hoje…
Ótimo texto, Luiz. Adorei e compartilhei.
Excelente crônica! Um olhar crítico e afetivo sobre os últimos e agitados 50 anos! Bravo, Aquino! 👏👏
Que trabalho Maravilhoso...
Parabéns!!
Achei formidável! Quero trabalhá-la em sala de aula! Você fala de sua geração e tira uma fotografia muito bem organizada do campo político, do geopolítico, das inovações tecnológicas, do papel da arte, da ciência... E você se coloca no meio dos grandes desafios, das grandes conquistas, das perdas... Muito bonito!
A crônica, aliás, é um belo ensaio!
Adorei a crônica, Luiz, parabéns!
Parabéns pela excelência de seu texto !!!
Bela crônica! Parabéns!
Luiz, sua crônica é um excelente documentário sobre essa época vivida por nós. Música, moda, ideias, influências, política marcam o texto bem lembrado, bem conduzido.
Parabéns!!! Análise perfeita!!!
Aquino, muito de tudo na sua memorável e histórica crônica, muito enriquecedor para quem lê e para mim que vivi nesta época em Goiânia, um retrospecto que ainda está na minha memória, mas que você como grande escritor reconstrói um tempo que está presentificado como resistência
Adorei a crônica, Luiz. Como sempre a minha admiração e essa passagem do tempo que você tão bem apresenta .
Adorei a crônica, Luiz. Sempre admirei você e a sua forma de delinear o assunto. Essa passagem do tempo que vivemos ficou uma beleza!
Aquino, quanto tempo esperei para presentificar uma crônica tão bem escrita, um retrato vivo do espaço sócio-político-cultural-educacional de nossa querida Goiânia na segunda metade do século XX e a atuação destemida dos estudantes, professores na defesa da liberdade e na resistência ao modismo do Tio Sam , como falávamos. Também participei da política estudantil e dessa luta libertária, ao lado do Gabriel Nascente, Brasigóis Felício, Cléber Adorno, Aidenor Aires, Altair Sales Barbosa, no Ginásio Municipal de Goiânia, Escola Técnica Federal, no Instituto Rio Branco, Madureza, com os Mestres IZU e Bernardo Élis, e Goiânia era verdadeiramente um Centro Urbano, jovem , e contestador. Como você trouxe tanta riqueza de detalhes quer nos costumes, na educação, cultura e o ambiente secundarista e universitário que tanto formava como influenciava a juventude estudantil. Um recorte que guardarei para o resta da vida e me emociono e alegro-me em tê-lo como amigo e de acompanhar a sua extraordinária literatura , posicionamento da verdade e a intelectualidade invejável.
O abraço e a admiração do professor Leôncio
Bela crônica, colega Luíz de Aquino! Vivi essas transições, busquei leite em pó no SESI, do programa Aliança para o Progresso, até que tomei consciência do colonialismo a que nossas famílias se submetiam. Mas esclarecido, participei ativamente dos movimentos estudantis em Goiânia ,que acabaram por evidenciar nossas ideologias contrárias às baionetas que levaram ao sacrifício muitos colegas, como Ismael Silva de Jesus e tantos outros que desapareceram e não tiveram seus corpos liberados nem para um enterro digno. Pois é, essa quadra das nossas vidas nos deu a experiência de transições importantes na cultura , nas ciências, na tecnologia e está nos ingressando no universo da inteligência artificial. Somos uma geração de resistentes. Parabéns por esses importantes registros!
Parabéns poeta!👏🏻👏🏻👏🏻
Poeta querido, viajei no tempo e na história. A riqueza de detalhes nos fazem aprender, relembrar e verificar quão complicado é o ser humano, pois, embora tanto desenvolvendo, não aprendeu a viver em paz. Parabéns por seu texto tão rico em detalhes que nos traz tanto conhecimento. Kesia Leonardo
A história por que viveu e escreve. Fala por nós, Aquino.
Luiz, que peça literária primorosa, amigo! Poesia, história, reminiscências... Sua verve cronística, confeitada poeticamente, é sensacional. Parabéns!
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