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terça-feira, outubro 24, 2023

Goiânia, 90 anos

Em 1960, com 154 mil habitantes, sem a construção do Centro Administrativo.


Goiânia, 90 anos: memórias


de dois terços desta história!


 

Era 31 de julho, 1963. Faltavam 55 dias para o aniversário de 30 anos da cidade quando cheguei a Goiânia, para ficar. Vinha de minha terra natal, Caldas Novas, mas morava no Rio de Janeiro desde 1956; desembarquei na Estação Rodoviária, atualmente um quartel dos Bombeiros, na avenida Anhanguera, em frente ao Lago das Rosas.


Tomei um táxi até a Rua 96, limite sul do asfalto da cidade; o táxi, na realidade, era uma charrete. Eram muitas charretes para o transporte de pessoas, além de carroças para os fretes de pequeno volume. Os dias posteriores seriam para as descobertas. Eu completaria 18 anos em 45 dias, e esse tempo foi o bastante para palmilhar todas as ruas do Centro e do Bairro Popular: o espaço entre a Avenida Paranaíba e a Rua 67, que se tornou Avenida Independência; e o antigo aeroporto, que virou bairro. e o bosque do Botafogo, onde se instalou o Parque Mutirama, em 1969. O Bairro Popular tinha três grandes referências: o Estádio Olímpico, o Mercado da Rua 74 e a Escola Técnica Federal - hoje, Instituto Federal de Goiás. O eixo central da área mais nobre da cidade era a Avenida Goiás, em cujo término está a Estação Ferroviária; logo após, na década de 1950, surgiu o Setor Norte Ferroviário.


Vivi o Liceu, com sua fanfarra que ostentava um título honroso – Banda Marcial – que disputava hegemonia com sua similar do Colégio Pedro Gomes, conhecido também como Liceu de Campinas. Nossa juventude era pontilhada de festinhas de garagem, bailes no Jóquei Clube (em sua antiga sede), nos clubes do Sindicato dos Bancários e no oitavo andar da sede do Banco do Estado de Goiás.


Nos cinemas, os homens só entravam trajando paletós; as mulheres, sempre em trajes de rara elegância: eram muitas as lojas de moda feminina, ao longo da Avenida Anhanguera; os homens vestiam ternos confeccionados pelas várias alfaiatarias em tecidos comprados na Casa Hudersfield – as roupas feitas não eram muito aceitas. Conheci Campinas, mas evitava as festinhas campineiras, pois o bairrismo era forte e eu não queria me meter com confusão; já bastava a rivalidade entre Liceu e Pedro Gomes e Vila Nova versus Atlético.


Mauro Borges, filho de Pedro Ludovico, era o governador; o prefeito, Hélio de Brito, era médico de ampla referência. A arquidiocese da capital era dirigida pelo bispo Dom Fernando, auxiliado pelo jovem Dom Antônio; a guarnição do Exército era o quartel do 10° Batalhão de Caçadores (depois, 42° Batalhão de Infantaria). Vila Nova, Atlético, Goiânia e Goiás eram os quatro times da capital e para disputar o campeonato bastava incluir os clubes de Anápolis. A pizzaria pioneira era a Capri (depois se chamou Bagainha), os hotéis de maior referência eram o Bandeirante e o Presidente, já existia o Bolonha (restaurante italiano), a Churrascaria Campestre (na Av. Araguaia com a Rua 3) e a Kabana (Av. Goiás com Rua 5).


Havia o Teatro Inacabado, sempre em construção, mas já usado para apresentações, por seu diretor Otavinho Arantes, e o Teatro de Emergência (colado ao Jóquei Clube, demolido por exigência do “regime militar”, que alegava serem os atores “um bando de comunistas”; o meio literário, até então crescendo timidamente, era sacudido pelo GEN – Grupo de Escritores Novos. Na música, as referências eram ao maestro Jean Douliez e à magistral Belkiss S. Carneiro; e os conjuntos de bailes e os boêmios das serenatas...


Para os colegiais, a preocupação era com os vestibulares nas Universidades Católica de Goiás, formalizada em 1959, e Federal de Goiás, em 1960, ambas instaladas nas cercanias da Praça Universitária, no bairro Botafogo, que se tornou Setor Universitário. E tinha ainda uma escola isolada, não inserida em universidade, da esfera do Estado: a Escola Superior de Educação Física de Goiás, conhecida como Esefego.


São muitas as lembranças... e a saudade! Mas resumo: em 1960, a população de Goiânia era de 154 mil habitantes; em 1963, estimava-se em 210 mil. O quanto a cidade se expandiu e refletiu nos municípios vizinhos (a atual Região Metropolitana) é do conhecimento e da percepção dos leitores bem informados – dentre os quais, receio incluir-me sem o risco de ser flagrado em erros.

Goiânia de hoje: somos 1.500 mil habitantes. 


* * *

Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da UBE de Goiás e da Academia Goiana de Letras. 
Especial para o jornal O Hoje.

quarta-feira, setembro 27, 2023

As águas e a Região Metropolitana de Goiânia

 





O confrade Ademir Hamu postou, no grupo da Academia Goiana de Letras, o seguinte texto:

 


O cerrado em Goiânia, já em deterioração pela ação humana.


 Região Metropolitana de Goiânia:

só restam 18,66% de Cerrado.

 

O Censo demográfico de 2022, realizado pelo IBGE, aponta que a área urbana da Grande Goiânia (dez municípios), foi a de maior crescimento populacional, entre os anos de 2010 e 2022, em todo o território nacional.

A Região Metropolitana de Goiânia (RMG) é banhada pelas bacias hidrográficas dos Rio dos Bois, Corumbá e Meia Ponte, que integram a grande bacia do Rio Paraná.

A bacia do Rio Meia Ponte se destaca, no contexto da Grande Goiânia, em função de abarcar 65,49% do total da área da RMG e por conter a maior parte do processo de captação de água para abastecimento urbano da região.

No ano de 2017, a bacia do Meia Ponte integrou a lista das vinte regiões hidrográficas brasileiras com maior quantidade de área irrigada, com 179 pivôs centrais em uma área de 10.035 hectares. 

Estação Cora Coralina, de captação, em época das águas...

Segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), a irrigação representou 49,8% do total de consumo de água no país, seguida pelo consumo humano (24,3%) e atividade industrial (9,7%).

Nos municípios que compõem a RMG, predomina a agropecuária como atividade de maior ocupação de terras (72 38%), a exceção de Goiânia e Aparecida de Goiânia, que tem, majoritariamente, suas terras ocupadas com manchas urbanas.

O município de Abadia de Goiás, entre 1985 e 2020, quintuplicou sua área urbana, passando de 95 hectares para 592 hectares.

Aparecida de Goiânia, no mesmo período, duplicou sua área urbana (de 6.501 para 13. 923 hectares). A totalidade de áreas urbanizadas é de 9% na RMG, tendo as Paisagens Naturais ocupando apenas 18,66% da área total. 

... e a mesma estação, quando da estiagem.

Observando o Valor Agregado por Preços Básicos (VAB), conclui-se que o setor de serviços e a administração pública são os mais importantes componentes da estrutura do PIB dos municípios que compõem a RMG.

A agropecuária, resultante da retirada da vegetação nativa do Cerrado, apesar de ocupar a maior parte da área (72,38%), tem baixo valor agregado e elevadíssimos custos sociais e ambientais.

Repensar o uso do solo na Região Metropolitana de Goiânia, é uma necessidade imperiosa.

Texto: Águas do Cerrado (GWATÁ- UEG)
Fonte: BARBOSA. O.M; SOUZA, J.C; MARTINS. P.T.A. Análises Ambientais do Cerrado. Anápolis, editora Universidade Estadual de Goiás. 2023.

 

* * *


Para soja ou cana, essa solitária árvore também desaparecerá.


Respondi assim:

A cada novo censo, as revelações são bombásticas! A massa (a que chamamos de opinião pública) é iludida pela inconsequência da mídia que noticia sem provocar o senso crítico - e a opinião pública festeja a explosão demográfica, os números do PIB (Produto Interno Bruto), a expansão das áreas urbanas, os arranha-céus, a impermeabilização do solo, o desaparecimento do cerrado (que a arrasadora maioria entende ser uma "paisagem feia") e festeja o sorriso artificial do governante que comemora "o fim da violência" (hem?), as mudanças dos nomes das unidades de saúde (sem acrescentar melhorias às já existentes), regozija-se com os números da Educação (percentuais fictícios com base em resultados de vestibulares) sem considerar a qualidade que resulta em elevação vergonhosa da faixa que se inclui, dentre os diplomados, como "analfabetos funcionais" (isso começa com o não conhecimento do uso da pontuação, somado às falhas na aplicação de regência, concordância e flexão de verbos).

Em suma: não basta trocarmos os governantes; isso só se conserta se trocarmos a população - fenômeno possível de se aplicar, mas depende exclusivamente do aprimoramento no ensino da língua e disciplinas acessórias (filosofia e sociologia, sobretudo), de modo a dispormos de um senso crítico que estimule o povo a raciocinar alguns degraus acima das cores das camisas dos times de futebol e também acima de dogmas ideológicos.

Infelizmente, nossa gente ainda tem medo de comunismo e – pasmem!  de ateísmo; se bem observarem encontrarão os melhores exemplos de comportamentos cristão entre os que se dizem ateus, e não entre os que se carimbam de cristãos e evocam critérios do Gênesis, do Êxodo e outras antiquarias quase que desnecessárias.

E para o futuro em seu todo: as ações governamentais escolhem não ouvir a ciência. Estamos matando nossos rios.

 

* * *

Luiz de Aquino, membro da
União Brasileira de Escritores
de Goiás e da Academia
Goiana de Letras.


 

Goiás Vila Boa, Patrimônio da Humanidade


Como conviver com o título de

Patrimônio da Humanidade? 


Ao longo de 56 anos de jornalismo, convivi com fatos antagônicos que rendiam algumas edições dos jornais, com as inevitáveis manifestações da chamada opinião pública. O bom senso profissional sempre nos recomendava o acompanhamento racional dos fatos, num trabalho exaustivo de remover o joio que comprometia o trigo. É que, em jornalismo, existem também os profissionais que amam fomentar polêmicas – e até mesmo inventar fatos para adubá-las ou fermentá-las. 



Esse movimento sobre o risco de a Cidade de Goiás perder o título de Patrimônio da Humanidade cutuca uma preocupação de todos nós, goianos (tanto os de nascimento quanto os de escolha).

Não é a primeira vez que grupos tradicionalistas da Cidade de Goiás manifestam esse receio – e entendo respeitável tal preocupação. Porém, é sempre indispensável fuçarmos um pouco nas ações, nas conversas e nas intenções de tais pessoas, haja vista a motivação pessoal ou de grupo – de cunho material ou patrimonial que descamba para os ciúmes mais que ideológicos, os ciúmes das tradicionais oligarquias.

Vejo agora, nesta manhã de 22 de setembro (2023), matéria do Jornal Opção (https://www.jornalopcao.com.br/goias/iphan-reafirma-que-cidade-de-goias-pode-perder-titulo-de-patrimonio-cultural-532553/) em que se consultaram pessoas selecionadas para questionar a tal legislação emergencial da Prefeitura de Goiás que visa a enfrentar e regularizar condomínios já existentes e já funcionais. O título outorgado pela Unesco custou muito trabalho, lutas, esforços pessoais com inegáveis sacrifícios (impossível não recordar Brasilete Caiado), o que nos convence de que ninguém quer o cancelamento do título.



Em meio à grita que se avolumou, encontro um texto do arquiteto e urbanista Walfredo Oliveira:

"Devagar com esse andor. Existem inúmeros casos de cidades históricas ao redor do mundo, cuja expansão se houve de modo mais contemporâneo ou atual. Marrakech, com a parte histórica ora destruída, é um destes casos. Como os proprietários de imóveis na parte tradicional da cidade são em menor número, talvez possa ser produtivo planejar uma expansão para abrigar pessoas até com interesse nas atividades turísticas, que não consigam habitar o centro histórico. A posição logística do Município, espécie de portal do fértil vale do Araguaia, também região de extensas pastagens, pode motivar o assentamento de moradores, digamos assim, mais modernos. O meio do caminho parece razoável: basta criar taxas mais altas para a expansão e/ou instituir um sistema de subsídios cruzados, em que um sobrepreço dos novos imóveis, pudesse subsidiar a reforma e manutenção da parte tradicional. Me desculpem, mas parece inconveniente ou impossível tratar um centro urbano, mesmo que tombado, como uma espécie de museu".

 

Estranhei o fato de o Jornal Opção não ter ouvido opiniões contrárias a esse movimento – ou elas não existem? Parece que se preferiu escolher pessoas afinadas com o pensamento dos conservadores vila-boenses, certamente viventes ou proprietários no centro histórico. Acredito nos argumentos de Walfredo Oliveira. Afinal, nenhuma cidade Patrimônio da Humanidade deve ser congelada, vetando assim seu crescimento e, inevitavelmente, as ações da gestão municipal com vistas a harmonizar as relações dos antigos moradores com as novas paisagens urbanas dos adventícios, bem como do fluxo turístico inevitável, posto que milhões de brasileiros querem conhecer "a terra de Cora Coralina" e saber de um Patrimônio da Humanidade que expressa a história social, política e artística do Centro-Oeste brasileiro. 


Noutra matéria, de 21 de setembro, o JO noticia que o prefeito Aderson Gouveia (https://www.jornalopcao.com.br/goias/prefeito-suspende-lei-que-beneficia-condominios-ilegais-na-cidade-de-goias-ambientalistas-seguem-pedindo-revogacao-532477/) suspendeu os procedimentos da Lei Complementar n° 7, para novos estudos e discussões acerca do tema, numa demonstração de boa vontade.

Aguardemos. 


Luiz de Aquino é membro da União Brasileira
de Escritores de Goiás e 
da Academia
Goiana de Letras.

                                        











sexta-feira, agosto 11, 2023

LEODEGÁRIA, Doutora Honoris Causa

 





LEODEGÁRIA DE JESUS,


Doutora Honoris Causa

 

Ad perpetuam rei memoriam

Forte calor no fim da tarde, ainda que inverno, na Cidade de Goiás, a 16° de latitude Sul. Com toque de bom humor, num mês de julho, anos atrás, o professor e poeta Nasr Chaul comentou: "Em Goiás, temos apenas duas estações, o Verão e a rodoviária". Neste 8 de agosto de 2023, a cidade festeja o134° aniversário de nascimento de Leodegária Brasilina de Jesus (a grafia, no final do Séc. XIX, era "Brazilina"). 


Os termômetros marcavam mais de 30°C, mas a alegria era maior que tal incômodo: afinal, ali já estavam a Magnífica Reitora da Universidade Federal de Goiás, professora Angelita Pereira de Lima, com uma pequena e expressiva comitiva, para cumprir um ato definido pelo Conselho Universitário, que era a Outorga do grau de Doutora Honoris Causa a Leodegária Brasilina de Jesus: professora, jornalista e sobretudo poetisa (a seu tempo – limitado a 1889, ano de seu nascimento, e 1979, o de seu desenlace da matéria – as mulheres poetas ainda não haviam se decidido pelo uso de poeta também para o gênero feminino).

Leodegária, como sabemos, nasceu na Vila de Caldas Novas (1879), mas não tinha lembranças de sua terra natal, de onde saiu com poucos meses de vida; os primeiros anos e as primeiras letras têm por cenário a pequenina (então) Jataí; e de lá a família se muda para Rio Verde. Seu pai, o professor José Antônio, foi eleito deputado e, por isso, muda-se a família para a cidade de Goiás.


A Unidade Acadêmica Especial de Ciências Sociais Aplicadas (UAECSA) e a Unidade Acadêmica Especial de Ciências Humanas (UAECH), ambas do Câmpus Goiás da UFG, formularam a proposta que logo ganhou a adesão da Faculdade de Direito do Câmpus Colemar Natal e Silva da UFG, em Goiânia. O diretor da Faculdade de Direito, prof. José Querino Tavares Neto, lembrou que, ao concluir o Curso Normal no Colégio Sant’Ana (em cujo auditório realizava-se a solenidade de Outorga), foi impedida de ingressar na então novel Faculdade de Direito, o mais antigo embrião da UFG. O ato, então, no entendimento do diretor, buscava corrigir a lamentável decisão impeditiva da possibilidade de as mulheres cursarem faculdades; não fosse isso, Leodegária teria sido a primeira mulher a ostentar o grau de advogada em Goiás.


Profa. Luciana Dias

Em seu discurso, a secretária de inclusão da UFG, profa. Luciana Dias, fez uma síntese clara e explicativa da biografia de Leodegária, que viveu os anos finais da infância e toda a adolescência na então capital de Goiás. Destacou o clima adverso à sua família, de pessoas negras, fato agravado pelo posicionamento político independente de seu pai, vítima de uma doença que lhe dificultava os movimentos, ao mesmo tempo em que perdia a visão.


A família muda-se para Catalão e depois Araguari, buscando recursos para o tratamento do pai. Com a morte do professor José Antônio, muda-se novamente a família para Uberlândia. Leodegária viveu seus últimos anos em Belo Horizonte, onde faleceu em 1979, mas Luciana Dias enfatiza, como fecho: “Leodegária presente!” – evocando coro e palmas. 


Angelita Pereira de Lima,
Reitora da UFG.

A Reitora, profa. Angelita Pereira de Lima, explicou que a concessão do título in memoriam “é um pedido de desculpas a todas as mulheres que foram afetadas pela negativa ao ingresso de Leodegária na Faculdade de Direito”. Mais adiante, disse: “Infelizmente, o tempo não nos permite reparar o que foi negado a ela, mas é uma reparação histórica para as mulheres negras, para a população negra brasileira”.


Em toda a sua história (63 anos), a UFG outorgou apenas 25 títulos de Doutor Honoris Causa, sendo 21 para homens e quatro para mulheres. O de Leodegária é o primeiro na condição post mortem e também o primeiro para uma mulher negra.


Na plateia, ao lado de algumas Mulheres Coralinas, como a profa. Ebe e minha comadre Beth Moiana, vivi instantes fortes, capazes de me trazer lágrimas e causar arrepios. A pequenez dos preconceitos não permite a muitos “estudiosos” e “críticos” aceitar Leodegária, a mulher pioneira na poesia em Goiás desde a sua estreia (1906) até que uma segunda poetisa ousasse publicar poemas em livro (Regina Lacerda, em 1954). Esses críticos alegam uma estilística fulcrada no romantismo, mas ocultam saber que, na virada do Séc. XIX para o Séc. XX, o acesso a informações dos centros maravilhosos do país, especialmente o Rio de Janeiro e a capital Paulistana, com o despertar para o modernismo à luz da Belle Époque que agitava a vida naquelas fulgurantes cidades.


Houvesse atenção à tentativa feminina pela igualdade de gêneros – como a luta pelo direito ao voto – e, a esse mesmo tempo, o respeito aos brasileiros de herança genética africana, Leodegária teria ao menos o reconhecimento daquela sociedade machista e oligárquica para permitir-lhe acesso ao ensino superior. Mas o que lhe foi negado em vida coroa-se agora numa solenidade em que, tanto na mesa diretora quanto no público assistente, era notada a quase totalidade de mulheres.

E mulheres negras, também; senti que na vetusta Goiás estão as mais belas mulheres pretas deste Estado.


                                                    * * * 

Ebe Lima, L.deA. e Beth Moiana.









Luiz de Aquino, escritor,
membro da União Brasileira
de Escritores em Goiás
e da Academia
Goiana de Letras.

terça-feira, agosto 01, 2023

Seis décadas em Goiânia

 


Seis décadas em Goiânia

 Para Emílio Vieira


Em 1963, justo no dia 31 de julho, deixei Caldas Novas, às 7 horas para, numa viagem de cinco horas, fixar-me em Goiânia; a cidade era, para mim, uma incógnita. Sete anos e meio antes, eu deixara Caldas Novas rumo ao Rio de Janeiro, onde me preparei para o Exame de Admissão e pude, pois, cursar o ginasial (segunda fase do Ensino Fundamental de hoje).

Estava, então, já matriculado no Liceu de Goiânia, oficialmente chamado de Colégio Estadual de Goiânia – mas esse nome só aparecia nos papéis oficiais. As aulas, obviamente, começariam no dia seguinte, o sempre referenciado primeiro de agosto. Entrei no histórico prédio – afinal, já existia desde 1937, ou seja, estava no 26° ano de funcionamento e Goiânia, naquele ano, festejava 30 anos de sua Pedra Fundamental. Descobri, naquele mesmo primeiro de agosto, que eu estava no segundo mais antigo colégio em funcionamento ininterrupto no Brasil, considerando-se que o CEG (sigla oficial) era a continuidade do Liceu de Goiás, criado em 1846 pelo então presidente da Província de Goiás, o Barão de Ramalho. Aquela informação encheu-me de orgulho, especialmente por eu supor que seria, sim, o único brasileiro a ter sido aluno dos dois mais antigos colégios do país – dentre os que jamais fecharam suas portas.

Aquele foi um dia de conhecer gente nova – moças lindas e (a maioria delas) muito falantes; rapazes mais discretos, mas, tal como as garotas, olhavam-me com uma curiosidade incômoda (para mim). Alguém antecipara a notícia de que chegaria um novo colega, vindo do Colégio Pedro II. Em pouco tempo, revelei-me uma decepção: eu não era sábio, não era carioca, era pobre, vestia-me mal aos sábados – um dia de exibicionismo em que o uniforme era dispensado.

Devo dizer que os adolescentes (dizíamos, então, meninas-moças e rapazinhos) goianienses eram, em maioria, altamente burgueses; eu vinha de um colégio em que não era raro de se ter o filho de um ministro ou de um banqueiro ao lado do filho de um comerciário do longínquo interior de Goiás – eu – ou do filho de um motorista de lotação – Paulo Fernando, o meu melhor amigo desde aqueles tempos.

Na turma, recordo-me de alguns nomes: Liane, Maria Zélia, Carlota, Beatriz, Lílian, Guaracy... E os marmanjos Mário Alberto, Emílio Vieira, Francisco Taveira, Ciro Palmerston, Samuel, Tinoir, Elci... Professores queridos – alguns excessivamente severos (ou severas), como Maria França e Ofélia Jaime de Pina. Dona Ofélia, identificando-me em sua primeira aula, conclamou a turma a “dar nossas boas vindas ao entrante”; e a partir daí, era com esse quase apelido que as meninas se referiam a mim, mas os rapazes foram mais receptivos.

Justamente naquele semestre, Ciro e Emílio anunciavam seus livros de poemas – ambos estreantes – para muito breve; Ciro fez sua festa em dezembro e Emílio, pouco tempo após, mas já em 1964. Os dois eram membros do Grupo de Escritores Novos (GEN). Resumo: daqueles (calculo eu) trinta estudantes, quatro se fizeram escritores: Emílio, Ciro, Elci e eu

Consegui emprego num escritório, o patrão era engenheiro e construía um prédio de apartamentos na Rua 15, quase esquina com a Alameda do Botafogo. Exigia tempo integral, por isso fiquei muito pouco tempo ali, não queria trocar de curso e apenas um colégio na cidade oferecia o Clássico, no turno matutino. Então, empreguei-me como cobrador da recém criada Pousada do Rio Quente; depois, arranjei-me noutro – vendedor externo na Livraria Cultura Goiana, de Paulo Araújo; andava muito, vendia pouco (melhor seria vender esporas de porta em porta, pois esta era (e é) a capital de um Estado essencialmente agrícola).

Mas havia concursos. Fui aprovado no Ipasgo e no Banco do Estado de Goiás; fiquei no BEG, pois teria jornada de seis horas, enquanto o outro tinha jornada de oito horas. E esse foi, sem detalhes, o percurso de um ano e meio, no comecinho de minha vida goianiense. E me tornei, de fato, um Cidadão Goianiense, com diploma da Câmara Municipal, datado de 16 de setembro de 2010, um ano após o título equivalente que conquistei, também sem o ter pleiteado, da Câmara de Vereadores de Pirenópolis.

O intervalo entre 31 de julho de 1963 e hoje inclui toda uma formação, a vivência valiosa como bancário, como professor (por poucos anos, pois os dedos em riste elegeram-me para a deduragem: abandonei o magistério antes que me complicassem com as forças); caí em “desvio de função” e me fiz jornalista. Aposentei-me como bancário em outubro de 1995; continuei a jornada de jornalista, de assessor de imprensa e, ainda, em funções similares no serviço público até 31 de dezembro de 2018. Desde então, este feliz goianiense restringe-se ao ofício de escriba, colhendo grandes alegrias.


*   *   * 







Luiz de Aquino é 
membro da União
Brasileira 
de Escritores em
Goiás e 
da Academia
Goiana de Letras.

segunda-feira, julho 31, 2023

Poesia, a arte hipnótica

     

Poesia, a arte hipnótica

por Luiz de Aquino (*)

 

Escrevo desde a adolescência, isto é, desde 1960. Os primeiros textos eram as prosas dos deveres escolares (composição, descrição, dissertação...) e quando os hormônios se transformaram, pedindo providências ao corpo, passei a escrever poemas de amor. Poemas primários, adolescentes; poeminhas inspirados, mas eivados de erros na forma e no jorro, como cascata impulsiva e desenfreada. Escrevi sempre e atravessei a casa dos vinte anos escrevendo crônicas, artigos de opinião e similares para publicar em jornais. Desde 1967, publicava artigos opinativos e alguns arremedos de contos em jornais – primeiro em Anápolis, depois em Goiânia (Folha de Goiás, O Popular e Cinco de Março).

Em 1978, enchi-me de coragem e dívidas e estreei na vida livresca com O Cerco e Outros Casos (contos). Já desfrutava de algumas referências como poeta sem, contudo, mostrar em público tais escritos.

Em 1977 – um ano antes de estrear em livro (o livro de contos O Cerco) – um poema então sem nome e que só alcançou livro mais de 30 anos depois (Antigo eu, é o título) justificou a minha inscrição na União Brasileira de Escritores de Goiás, então presidida pelo poeta e multiletras Miguel Jorge.

Mostrei ao Miguel esse poema, que caiu em seu agrado, e ele me apresentou ao artista plástico DaCruz, que se prontificou a ilustrar meus versos; o poema-cartaz participou de uma exposição num bar no bairro de Campinas, promovida pela própria UBE.

Já em 1979, meses após a minha estreia com o primeiro livro (de contos), o poeta Gabriel Nascente incluiu-me em sua antologia Colheita – a voz dos inéditos. E, em 1981, uma revista (Voz Violada – que só teve uma publicação) inseriu poema da minha escrita dentre os publicados.

Detalhe que merece realce: meu poema Sem máscara foi ilustrado pelo cantador Pádua (que, poucos sabem, é exímio cartunista e ilustrador).

 

Antigo eu
(Luiz de Aquino)

 

Eu quero estar no momento de cada um.
Não me culpem por gostar
da exteriorização clara das ideias.
Não queiram que eu adote o simplismo
da anuência tácita nem me conduzam ao desespero
da espera incerta.

 

Eu quero sentir teu espírito.
Vou estar nos teus dias a cada gesto,
buscando perdões enquanto ofereço tudo de mim.
Estarei à tua mesa de trabalho
e falarei pelos sons de teus passos.
Sentirás o meu hálito no barulho do trânsito
e na paz dos jardins
           quando a saudade chegar.

 

Estarei no quebra-ondas e serei
a maciez do teu sono, não te deixando esquecer.

 

Sejamos mais nós:
...para viver a certeza do teu silêncio;
...para curtir nossa vida abstrata;
...para morrer na certeza da gente.

Este é o poema que me abriu as portas da UBE de Goiás. Oficialmente, eu me tornava poeta.

 

Em 1982, alguns amigos passaram a cobrar-me um livro de poemas. Numa gaveta, alguns envelopes-saco eram o arquivo de pequenos papéis com poemas esboçados que, nas horas lúcidas, eu os copiava à máquina e, então, colecionava-os numa pasta de plástico com abas, tendo um elástico por fecho. E foi nesse mesmo ano que, na vida adulta, aconteceu o meu terceiro namoro com duração maior que uma semana (o casamento tivera fim três anos antes, e a nova namorada acompanhava-me nas horas boêmias, quando as tensões eram deixadas no fechamento do jornal diário).

 

Cadê teus sonhos, menino?!
(Lêda Selma)

 

Cadê tua pipa,
tua bolinha de gude,
teu biloquê, menino?

Não te vejo brincar
de finca, de pique-pega,
de polícia, ladrão ou herói...!?

Cadê tua infância,
tuas “peladas”, teu riso...
pra onde foram teus sonhos?

Por que a “cola”, o “loló”,
por que a solidão ao brinquedo
e pra que esse mundo de medo?

Por que teu caminho é tão curto,
esburacado e sem volta,
por que a trave na porta?

Sou cúmplice de teu destino,
tropeços de teu amanhã,
tua noite sem estrelas, menino.

 

A vida, então liberta, oferecia-me asas, e eu voava. Os poemas – alguns em laudas de repórter, outros em guardanapos de papel, à disposição nas mesas dos bares – eram colhidos pela namorada, que os copiava num caderno. No início de 1983, depois de devidamente datilografados, mostrei-os ao escritor Anatole Ramos – um mestre a quem todos os novos autores goianos recorríamos para a revisão e os conselhos (sempre plenamente acatados). Anatole tornou-se, pois, meu padrinho literário.

Infalivelmente, a revisão, na ponta do lápis, vinha acompanhada do indefectível comentário crítico, estimulante, que apresentava o autor aos possíveis leitores. Era o prefácio sonhado, orientando o novel escritor e mostrando possíveis méritos nas peças poéticas. Anatole sugeriu títulos, corrigiu grafias e regências e orientou-me no ordenamento dos poemas. Assim nasceu Sinais da Madrugada, lançado em 16 de dezembro de 1983.

 

Presto
(Lygia de Moura Rassi)

 

Viva
recrio espaços
à espera do último
compasso.

Do adágio ao presto
... pausas...

Entalho sem revolta
a volta
na bengala
do porvir.

Ao prelúdio “Gota d’água”
mesclo a seiva
quente.
Presente do passado.

 

Animado, e com o estímulo da poetisa Yeda Schmaltz, no dezembro seguinte (1984) pus a público meu novo livro: De mãos dadas com a Lua. Nasceu, assim, outro apadrinhamento, igualmente luxuoso (adoro esse adjetivo tão bem aplicado por Luís Melodia numa de suas mais belas canções, Juventude transviada)

Esse terceiro lançamento (o segundo de poesia) fechou a minha entrada no clube um tanto restrito do poetariado goiano. Tínhamos alguns, dentre os veteranos, dignos de admiração e, como é comum entre os jovens, de contestação. Acho mesmo que nossa postura adversa tinha apenas o propósito de provocá-los, vez que os admirávamos e, sem cerimônia, os seguíamos.

Nosso modernista pioneiro falecera em 1954 (Cylleneo Araújo, que se fez conhecer com um anagrama, Leo Lynce); Leodegária de Jesus, a primeira poetisa goiana a publicar livros falecera em 1978, em Belo Horizonte; Regina Lacerda – segunda poetisa a ser editada em Goiás – trocara a poesia pelas pesquisas e publicações no campo do folclore; Yeda Schmaltz, ainda muito jovem, publicou seu livro primeiro de poemas, Caminhos de mim, em 1964 (antes, pois, de Cora Coralina, que estreou em livro no ano seguinte, 1965). Foram essas as quatro primeiras poetas a publicar livros de poemas em Goiás.

Vale registrar: a Academia Goiana de Letras, seguindo o padrão dominante em vigência na Academia Brasileira de Letras, não admitia mulheres em seus quadros. Segundo a tradição, o regulamento da ABL, admitiam-se ‘cidadãos’, o que foi levado ao pé da letra por mais de 60 anos. Ao falecer Zoroastro Artiaga, ocupante da Cadeira 16 da AGL, a poetisa e folclorista Regina Lacerda pleiteou a vaga. Prevaleceu como consenso: em língua portuguesa, o masculino se aplica ao genérico. Assim, a escritora vila-boense ingressou na Academia – era 1973; somente em 1977 Rachel de Queiroz, valendo-se do mesmo argumento, foi empossada na Casa de Machado de Assis.

 

Chuva
(Leo Lynce, nosso primeiro modernista)

 

Chove. Chuva. Chuva fria.
O mundo todo dissolvido em bruma.

Ninguém sabe do sol.
Cadê Margarida? Margarida sumiu.

Margarida tinha uma echarpe clara
esvoaçante como a névoa.

E fiquei sozinho num retalho de rua.
Em todo o mundo, só havia eu.

A névoa é a echarpe de Margarida
e eu sou a mágoa que choveu.

 

GEN – Grupo de Escritores Novos

Yeda integrava o Grupo de Escritores Novos (GEN), criado em 1963, tendo como membros também Aldair Aires, Miguel Jorge, Maria Helena Chein, Ciro Palmerston, Emílio Vieira, Eduardo Jordão e vários outros escritores de prosa e poesia, todos em busca de novas fórmulas e enfoques. Alguns veteranos, naquele tempo, já haviam entendido que poesia moderna não era apenas ter um trecho em prosa de três ou quatro linhas, que distribuíam a esmo em várias linhas de três ou quatro palavras, apelidando-os de versos. Dos mais notáveis, posso destacar Afonso Félix de Sousa, José Godoy Garcia, José Décio Filho e A. G. Ramos Jubé.

 

Mutante
(Yeda Schmaltz)

 

No espaço
sou homossexual
e sou mutante.
Não sou cavalo de aço
– cavalo doido e marinho
(cavalinho).

 

Cavalgando-me a mim mesmo,
sou meu próprio
tripulante,
com impulso e espera vã.

 

Que saudade da maçã!

 

Eduardo Jordão marcou bem sua passagem na vida literária e boêmia de Goiânia, ainda que, mesmo frequentando os bares preferidos, não se envolvesse com os copos e seus conteúdos. Participou do GEN e, por isso, sempre o tive por poeta, mas quando assim o apresentei a alguns amigos, ele refutou, delicadamente, o título: “Não, Luiz de Aquino, eu nunca fui poeta; eu escrevi sempre para teatro”. Fiquei sem graça, apanhado num flagrante desagradável... Até que, ao receber um mimo de Maria Helena Chein – a Antologia do GEN (1993, organizada por Heleno Godoy, Miguel Jorge e Reinaldo Barbalho) – deparei-me com poemas de sua lavra! Como este:

 

Poema Exagerado ao Pôr-do-Sol
(Eduardo Jordão)

 

Ainda farei
um poema ao pôr-do-sol

Como a flor
fabrica o néctar
e a abelha nos entrega
como um favo de mel.

Jordão abre outro poema, na mesma Antologia do GEN, assim: “A poesia me pegou / como me pegam as gripes...”. Entendi como uma confissão retardada: o teatrólogo confesso passara, sim, pelos encantos do chamamento da Poesia – a arte hipnótica!

Outro “geniano” muito ativo (foi seu segundo presidente, sucedendo Aldair Aires) foi Ciro Palmerston. Tive o prazer de ser seu colega no primeiro ano do Clássico no Liceu de Goiânia, ao lado do também poeta (e também do GEN) Emílio Vieira – hoje, confrade na Academia Goiana de Letras.

Miguel Jorge também presidiu o famoso Grupo de Escritores Novos.

 

Solidão maior
(Ciro Palmerston)

Pássaro só
voo incerto
num azul tão grande.
O que nos difere
é que
és pássaro
e eu,
gente.

 

Mulheres poetas

Como citei linhas antes, a jovem Yeda Schmaltz, no verdor dos 20 anos, membro ativa do GEN, anunciou sua estreia: era o quarto livro de poesia, em Goiás, escrito por uma mulher (antes: dois de Leodegária, um de Regina Lacerda e, então, o de Yeda). O próprio GEN arregimentara muitas poetisas – o termo poeta ainda era timidamente usado por algumas, mas na década seguinte estaria consagrado entre as autoras – ainda que algumas sequer tenham publicado livros. O grupo congregava o que Maria Helena Chein define assim:

– O GEN era um grupo de jovens turbulentos, porque inteligentes e dinâmicos, que se recolhiam para estudar e produzir, e se encontravam nas reuniões das sextas-feiras, à noite. Então, entre risos e sorrisos, debulhávamos as nossas verdades em forma de poemas.

As poetisas do GEN: Edir Guerra Malagoni, Maria Luzia Sisterolli, Rosimery da Costa Ramos, Lygia Barreto, Maria da Cunha Morais, Maria Evangelina, Maria Helena Chein e Yeda Schmaltz (Marietta Telles Machado voltava-se para a prosa, com ênfase para a literatura infantojuvenil). Dentre todas, as que mais se destacaram por sua produção e pelo empenho em publicar foram Yeda Schmaltz e Maria Helena Chein.

 

Poemeto
(Rosarita Fleury)

 

Depois que a distância chegou
nunca mais meus braços se estenderam ansiosos.
Vivem perdidos ao longo de meu corpo
como asas partidas,
como folhas crestadas pelo calor.
E se, às vezes, tento persuadi-los
a se erguerem,
a lutar pela felicidade,
a agarrá-la, a prendê-la em seus dedos,
ficam ainda mais tristes,
lembrando lágrimas compridas à procura da terra
e me dizem num lamento:
– Para quê, se só conseguimos alcançar
o corpo frio da distância?

 

Em 1967, os membros do Grupo de Escritores Novos resolveram encerrar suas atividades. Marietta Telles Machado contou, numa roda de escritores em torno de cerveja gelada, que partiu dela a proposta: “Vamos acabar com o GEN?”. Obviamente, essa sugestão não se deu por nada, mas a nossa amada autora de contos infantojuvenis e uma das primeiras bibliotecárias de Goiás não forneceu detalhes, mas o fato é que todo o grupo aceitou o término das reuniões das sextas-feiras e não mais se falou das famosas atas, citadas assim por Bernardo Élis: “A matéria tratada nas reuniões era meticulosamente registrada em longas atas, o que fazia alguns despeitados dizer – este é o grupo das atas”.

À distância – e por fora, obviamente – acompanhei as referências ao GEN, quando de sua efervescência, na década de 1960. Ainda nos tempos de Liceu, Emílio Vieira queria me levar para o grupo, mas encontrou resistência, ao que eu próprio lhe disse para desistir da indicação. Àquele tempo, eu conhecia de vista e de raramente ouvir alguns membros. Senti que era alvo de antipatia gratuita e não me agradaria ser maltratado, claro! O passar dos tempos permitiu-me travar conhecimento com alguns dos antigos genianos e uns raros tornaram-se meus amigos.

 

Invento Ritos
(Sônia Maria Santos)

 

A beleza do rosto,
se flutua calma,
vai para a alma
pelo padecimento.
Não sei se creio.
Mas invento ritos:
desembaço vidros
espelhos
vejo-me
na luz de cada dia
e seu desenho.

 

Então, já decorriam os últimos anos da década 1970 e o movimento literário da capital era bastante agitado. Aos poetas somavam-se as poetisas, a maioria exigindo o tratamento despertado por Cecília Meireles, num verso imortal: “Não sou alegre nem sou triste, sou poeta”. As poetas, em breve tempo, mostraram a que vieram!

Algumas eram de geração anterior – isto é, entre 25 e 30 anos acima da média etária do nosso grupo emergente –, como Violeta Metran e Rosarita Fleury, e dentre essas poetas na casa dos 40 e 50 anos, havia as que, enfim, tiveram a chance de trazer a lume seus livros. Em 1965, por exemplo, Cora Coralina, aos 75 anos, autografou seu livro de estreia.

Nos anos 1980, foram muitas as mulheres poetas que trouxeram seus livros às bancas e livrarias: Zina Brill, Abadia Silva, Getulina Pimentel, Gilka Bessa e Zulma Bessa, Lygia de Moura Rassi, Sônia Elizabeth Nascimento Costa, Maria Amélia Trindade... E ainda dos anos Oitenta: Sônia Maria Santos, Vilda Guerra Fernandes, Nice Monteiro Daher, Malu (Maria Luísa) Ribeiro, Fausto Rodrigues Valle, Leda Selma de Alencar... Maria Lúcia Félix de Sousa estreou ainda menina, mas não perdeu a verve: continuou o ofício dos versos e experimenta, também, o da crônica.

A moderna poesia, em Goiás, ganhava novas vozes e cores! Alguns modernistas já publicados desde a década de 1950 acolhiam bem os moços – outros, torciam-lhes os narizes.

 

Ao banquete que se encomenda
(Miguel Jorge)

 

É aqui neste banquete que te encontro:
                    olhos nos olhos,
                    uvas no vinho.

É aqui neste banquete que te encontro:
                                       boca na boca,
                    possuída lembrança de romãs
                              frutificando espigas,
                                        douradas bagas
                    que um dia se fizeram maçãs.

 

Dos que me eram mais próximos pela idade, havia Emílio Vieira, Ubirajara Galli, Dionísio Pereira Machado, Valdivino Braz e Ademir Hamu, contemporâneos de época admissional na UBE de Goiás – o que já nos dava o título de escritores. E dos novos, mas já inseridos no nosso pequeno universo de poetas editados, havia Aidenor Aires, Ciro Palmerston, Brasigóis Felício e Gabriel Nascente, todos com profícua e inquieta produção e muita atividade cultural. Eram os últimos anos Setenta e os primeiros Oitenta, com grande efervescência cultural em pequenina Goiânia. As artes plásticas marcavam presenças fortes em eventos vários; a música, por cantores e instrumentistas locais (Sirlon, Fernando Perillo, Bororó e as bandas de bailes, como Marquinhos e Seu Conjunto), bem como a incansável luta de Otavinho Arantes pelo teatro eram atividades de que a sociedade goianiense se orgulhava.

 

Retrospecção da Rua
(Emílio Vieira)

O mundo: sua largueza
cabe nesta rua.
O tempo: sua história
para nestes passos.
As imagens secretas
entram nestes olhos.
As palavras já ditas
voltam a estes lábios.
Um pássaro de vento
pousa nestas mãos.

 

Testemunho
(Maria Helena Chein)

Seu sorriso me golpeia,
a palavra me recorta,
a mão me desnuda.
Estou sensível
e não quero brigar.
Testemunhar pode
as minhas dores,
mas, sem atrevimento.

 

Ainda na década de 1980, novos autores surgiram no espectro da Poesia em Goiânia, como Tagore Biram, Celso Cláudio Carneiro, Delermando Vieira (um campeão de prêmios nos concursos literários locais, nacionais e internacionais), Helverton Baiano, Gilson Cavalcante, Marcelo Heleno e outros.

 

Previsão do Tempo
(Maria Lúcia Félix Bufáiçal)

É possível
provável
que ainda existam
muitos recantos
no coração
para se conhecer.

Não tenho medo.

Como cheguei até aqui
chegarei também
ao fim dos tempos
com algumas escarpas
na alma
imutáveis
e alguma matéria prima
de sentimento.

Não tenho medo.

Saberei por certo sentir
o sol
a chuva
o vento
um gosto de comida boa
mesmo sem os olhos
ouvidos
dentes.

Viver sempre fará sentido.

Mesmo porque
serena-mente
a quase
totalidade
de meus dias
vivi-os
sempre
dentro de mim.

 

As reuniões na União Brasileira de Escritores em Goiás, na gestão de Miguel Jorge naquela passagem de décadas (Setenta e Oitenta), ocorriam às segundas-feiras, a partir das 18 horas. Em seguida, o grupo seguia para um bar – o de preferência ficava na esquina das Ruas Oitenta e Três com a Noventa e Quatro.

Por essa época, recebemos um poeta em nosso meio, Geraldo Dias da Cruz. Chegou a Goiânia por conta de uma transferência (era gerente do Banco do Brasil) e logo filiou-se à UBE, era presente nas reuniões e sempre tinha novidades, fosse alguma notícia nova do meio literário nacional, fosse um novo poema. Nos últimos tempos, recebi dele dois novos livros, a intervalo razoável, numa evidência de que, mesmo afastado das efemérides literárias de Goiânia, continua produtivo e com sua poética mais refinada e bonita a cada novo livro.

 

Todas as artes
(Ubirajara Galli)

Seu corpo
é o encontro
de todas as artes.

Onde misturo
palavras e orgasmos.

(Meu coração
rola abestalhado de prazer).

 

Jumento
(Aidenor Aires)

Contigo aprendi
a deitar com a carga
e não ir adiante.
Contigo aprendi
a rebeldia
e a saber
que, às vezes, é melhor
empacar ou morrer.
Contigo aprendi
a ser terno e duro
como uma faca,
e quando disser “não”
nem o diabo me vira a cabeça.

 

Os bares

Ao presidir a UBE de Goiás, na segunda metade dos anos Setenta, Miguel Jorge (poeta, contista, romancista, cronista, editor do Suplemento Literário de O Popular e crítico de arte) passou a promover exposições de poema-cartaz. Essas peças consistiam em um poema com ilustração concebida por um artista plástico e tais exposições valiam-se de espaços de alta frequência, como os bares noturnos em que ocorriam também apresentações de músicos, dando um toque de refinamento a tais casas noturnas. A música, obviamente, atraía um público de fino gosto artístico, em especial porque eram os anos de chumbo, ainda, e a MPB trazia mensagens subjacentes de reação, mesmo nas canções românticas.

Essa característica dos botecos abriu espaço também para os poetas e os jovens e adultos insatisfeitos com o regime – afinal, o bar era a nossa grande sala de estar. Desses ambientes advêm incontáveis amizades que se formaram ou se consolidaram ao som das músicas e sob as discussões políticas de resistência. A esse mesmo tempo, muitos amores nasceram e se firmaram – ou terminaram, ou se reajustaram... E sob esse clima, alguns poetas vendiam seus livros de mão em mão. Uns, por excesso de timidez, não se punham ao comércio de seus livros; outros, menos disciplinados, embriagavam-se rapidamente, perdendo a ocasião.

 

POEMA 12
(Tagore Biram)

Mas a fumaça do cigarro
desenha teu corpo pequeno e aceso
como a brasa. Sob o céu aberto, teu corpo.
Teu lindo corpo. Vaga dos meus escombros.

E começa a guerra. Angústia imperecível.

E sobe o verso como trepadeira
nos muros altos.  Fumo contorna
teu corpo banhado de névoa.

As heras sobem trançadas como serpentes.
E o fumo desenha teu corpo de névoa
sobre o oceano mudo de minha alma.

 

Mantive a disciplina para tais vendas; costumava rodar dois mil exemplares de cada edição e a esgotava num prazo entre quatro e seis meses, de mesa em mesa; por produzir poesia de amor, vendia mais que os companheiros, haja vista a elevada presença de casais (namorados, noivos, casados e amantes), atraídos pela boa música – e, diga-se, também da boa comida que se servia a um público habituado com os quitutes da mamãe e da vovó.

Aprendi, com as experiências, que o bom negócio era limitar o circuito a poucos bares – entre cinco e dez – porque, de outra forma, seria uma “peça estranha” no ambiente; mas repetir o circuito mostrou-me que o público dos bares, em especial nos finais de semana, era sempre renovado. Goiânia, naquela época, atraía visitantes do interior e, mais ainda, de Brasília; em menor escala, de outros estados, vestígios esses que descobri nos cheques que recebia em pagamento – jamais tive problemas por aceitar cheques, mesmo que de Recife, Belém, Porto Alegre, Rio e Brasil inteiro! Percebi que os leitores de poesia eram pessoas corretas em seus negócios, mesmo que o negócio fosse a compra de um livro de poemas.

Eram também costumeiros os saraus nesses bares. Vez ou outra, algum artista plástico marcava um encontro em seu ateliê. Os convidados eram, obviamente, os colegas das tintas e formas e, infalivelmente, alguns poetas. Miguel Jorge, por ser também crítico de arte e, entre os escribas, um líder nato, era presença marcante; assim, esses encontros eram marcados também por declamação e leitura de poemas. Eventualmente, e isso fazia tudo virar festa, algum músico dava tons na noite.

 

Ano Novo
(Sônia Elizabeth)

Nessa manhã revestida
de ano novo em tudo
parece que sossega o vento.
Nas nuvens todos os ritmos
e a humanidade acorda
para qualquer nova esperança.

O calendário mudou.

 

 

Sem Pressa
(Fausto Rodrigues Valle)

Não tenho pressa,
sou como o rio,
escorro lento
minhas águas.

Não tenho idade,
sou longe dos anos.
Há a eternidade
para domar fantasmas.

Como o rio,
não tenho tempo
para chegar.

 

 

Os lançamentos

Os lançamentos estão para as letras como as vernissages para as artes plásticas. Eram, naquela época, festas de grandes referências na sociedade, o que bem marcava o local escolhido e as notícias nos veículos de comunicação.

A um lançamento de livros, os dois jornais mais antigos (e diários) de Goiânia pautavam repórteres e fotógrafos, procedimento comum também aos semanários e às revistas. As emissoras de rádio enviavam repórteres com seus gravadores (ainda que manuais, de porte e peso consideráveis) e as de televisão – três canais na capital – faziam-se presentes para, também, gravar em filme de 16mm ou a grande novidade: câmeras com cartuchos VHS, ou videoteipe.

No dia seguinte, o autor era visto nas mídias impressa, falada e televisiva. Alguns repórteres atreviam-se a narrar, além dos fatos corriqueiros de tais festas, o número de volumes vendidos.

 

Esquecido
(Delermando Vieira)

Antigamente,
eu tinha o costume de semear canteiros, aos pingos e à chuva
de janeiros.

Tinha eu essa liturgia
de na paisagem dos dias semear poesia.

Isso foi naqueles tempos de muita semeadura e rebentos.

Hoje, nada tenho ou sequer sou o que podia ter sido.
Por isso, estar em mim agora soterrado
aquele poeta ilhado: esquecido!

 

Em linhas gerais, era esse o quadro naquele final dos anos Setenta e a década de 1980. Evoquei o passado e tentei demonstrar o quadro social de Goiânia naquela fase. Destaco o Grupo de Escritores Novos por terem sido, aqueles rapazes e moças, os que consolidaram as inovações semeadas na Semana de Arte Moderna de 1922 e que encontrou forte resistência em Goiás, ao longo de quatro décadas!

Em poucos anos, como se viu, o próprio grupo entendeu ter chegado o momento de encerrar suas atividades coletivas, o que, naturalmente, possibilitou o crescimento e a concretude de carreiras literárias, a ponto de, ainda hoje, os que persistiram nas letras despontarem como referências sólidas no ofício do verso e da prosa.

Recordar aquele tempo não se limita, como se vê, a um período isolado. É, antes, como pôr a canoa num rio e descer com as águas, sabendo que ali começou a viagem, mas não o rio, que, ao permitir-me a navegação, trazia desde as nascentes todo o tributo de seu curso. A um ponto, ou porto, hei de desembarcar. As águas, porém, seguem seu curso, avolumam-se e servem aos que estão (e aos que surgem) à jusante.

Espero que a minha viagem contribua com os novos navegantes. 

     (04/02/2022)


L.deA., 1982

L.deA., 1983
(*) Luiz de Aquino Alves Neto, escritor de verso e prosa, da Academia Goiana de  Letras e
da União Brasileira de Escritores de Goiás.