Poesia, a arte hipnótica
por Luiz de Aquino (*)
Escrevo
desde a adolescência, isto é, desde 1960. Os primeiros textos eram as prosas
dos deveres escolares (composição, descrição, dissertação...) e quando os
hormônios se transformaram, pedindo providências ao corpo, passei a escrever
poemas de amor. Poemas primários, adolescentes; poeminhas inspirados, mas
eivados de erros na forma e no jorro, como cascata impulsiva e desenfreada.
Escrevi sempre e atravessei a casa dos vinte anos escrevendo crônicas, artigos
de opinião e similares para publicar em jornais. Desde 1967, publicava artigos
opinativos e alguns arremedos de contos em jornais – primeiro em Anápolis,
depois em Goiânia (Folha de Goiás, O Popular e Cinco de Março).
Em
1978, enchi-me de coragem e dívidas e estreei na vida livresca com O Cerco e Outros Casos (contos). Já
desfrutava de algumas referências como poeta sem, contudo, mostrar em público
tais escritos.
Em
1977 – um ano antes de estrear em livro (o livro de contos O Cerco) – um poema então sem nome e que só alcançou livro mais de
30 anos depois (Antigo eu, é o
título) justificou a minha inscrição na União Brasileira de Escritores de
Goiás, então presidida pelo poeta e multiletras
Miguel Jorge.
Mostrei
ao Miguel esse poema, que caiu em seu agrado, e ele me apresentou ao artista
plástico DaCruz, que se prontificou a ilustrar meus versos; o poema-cartaz participou
de uma exposição num bar no bairro de Campinas, promovida pela própria UBE.
Já
em 1979, meses após a minha estreia com o primeiro livro (de contos), o poeta
Gabriel Nascente incluiu-me em sua antologia Colheita – a voz dos inéditos. E, em 1981, uma revista (Voz Violada – que só teve uma
publicação) inseriu poema da minha escrita dentre os publicados.
Detalhe
que merece realce: meu poema Sem máscara
foi ilustrado pelo cantador Pádua (que, poucos sabem, é exímio cartunista e
ilustrador).
Antigo eu
(Luiz de Aquino)
Eu
quero estar no momento de cada um.
Não me culpem por gostar
da exteriorização clara das ideias.
Não queiram que eu adote o simplismo
da anuência tácita nem me conduzam ao desespero
da espera incerta.
Eu
quero sentir teu espírito.
Vou estar nos teus dias a cada gesto,
buscando perdões enquanto ofereço tudo de mim.
Estarei à tua mesa de trabalho
e falarei pelos sons de teus passos.
Sentirás o meu hálito no barulho do trânsito
e na paz dos jardins
quando a saudade chegar.
Estarei no quebra-ondas e serei
a maciez do teu sono, não te deixando esquecer.
Sejamos mais nós:
...para viver a certeza do teu silêncio;
...para curtir nossa vida abstrata;
...para morrer na certeza da gente.
Este
é o poema que me abriu as portas da UBE de Goiás. Oficialmente, eu me tornava
poeta.
Em
1982, alguns amigos passaram a cobrar-me um livro de poemas. Numa gaveta,
alguns envelopes-saco eram o arquivo de pequenos papéis com poemas esboçados
que, nas horas lúcidas, eu os copiava à máquina e, então, colecionava-os numa
pasta de plástico com abas, tendo um elástico por fecho. E foi nesse mesmo ano
que, na vida adulta, aconteceu o meu terceiro namoro com duração maior que uma
semana (o casamento tivera fim três anos antes, e a nova namorada
acompanhava-me nas horas boêmias, quando as tensões eram deixadas no fechamento
do jornal diário).
Cadê teus sonhos, menino?!
(Lêda Selma)
Cadê
tua pipa,
tua bolinha de gude,
teu biloquê, menino?
Não
te vejo brincar
de finca, de pique-pega,
de polícia, ladrão ou herói...!?
Cadê
tua infância,
tuas “peladas”, teu riso...
pra onde foram teus sonhos?
Por que a “cola”, o “loló”,
por que a solidão ao brinquedo
e pra que esse mundo de medo?
Por
que teu caminho é tão curto,
esburacado e sem volta,
por que a trave na porta?
Sou
cúmplice de teu destino,
tropeços de teu amanhã,
tua noite sem estrelas, menino.
A
vida, então liberta, oferecia-me asas, e eu voava. Os poemas – alguns em laudas
de repórter, outros em guardanapos de papel, à disposição nas mesas dos bares –
eram colhidos pela namorada, que os copiava num caderno. No início de 1983,
depois de devidamente datilografados, mostrei-os ao escritor Anatole Ramos – um
mestre a quem todos os novos autores goianos recorríamos para a revisão e os
conselhos (sempre plenamente acatados). Anatole tornou-se, pois, meu padrinho
literário.
Infalivelmente,
a revisão, na ponta do lápis, vinha acompanhada do indefectível comentário
crítico, estimulante, que apresentava o autor aos possíveis leitores. Era o
prefácio sonhado, orientando o novel escritor e mostrando possíveis méritos nas
peças poéticas. Anatole sugeriu títulos, corrigiu grafias e regências e
orientou-me no ordenamento dos poemas. Assim nasceu Sinais da Madrugada,
lançado em 16 de dezembro de 1983.
Presto
(Lygia de Moura Rassi)
Viva
recrio espaços
à espera do último
compasso.
Do adágio ao
presto
... pausas...
Entalho sem
revolta
a volta
na bengala
do porvir.
Ao prelúdio
“Gota d’água”
mesclo a seiva
quente.
Presente do passado.
Animado,
e com o estímulo da poetisa Yeda Schmaltz, no dezembro seguinte (1984) pus a
público meu novo livro: De mãos dadas
com a Lua. Nasceu, assim, outro apadrinhamento, igualmente luxuoso (adoro
esse adjetivo tão bem aplicado por Luís Melodia numa de suas mais belas
canções, Juventude transviada)
Esse
terceiro lançamento (o segundo de poesia) fechou a minha entrada no clube um
tanto restrito do poetariado goiano. Tínhamos alguns, dentre os veteranos,
dignos de admiração e, como é comum entre os jovens, de contestação. Acho mesmo
que nossa postura adversa tinha apenas o propósito de provocá-los, vez que os
admirávamos e, sem cerimônia, os seguíamos.
Nosso
modernista pioneiro falecera em 1954 (Cylleneo Araújo, que se fez conhecer com
um anagrama, Leo Lynce); Leodegária de Jesus, a primeira poetisa goiana a
publicar livros falecera em 1978, em Belo Horizonte; Regina Lacerda – segunda
poetisa a ser editada em Goiás – trocara a poesia pelas pesquisas e publicações
no campo do folclore; Yeda Schmaltz, ainda muito jovem, publicou seu livro
primeiro de poemas, Caminhos de mim,
em 1964 (antes, pois, de Cora Coralina, que estreou em livro no ano seguinte,
1965). Foram essas as quatro primeiras poetas a publicar livros de poemas em
Goiás.
Vale
registrar: a Academia Goiana de Letras, seguindo o padrão dominante em vigência
na Academia Brasileira de Letras, não admitia mulheres em seus quadros. Segundo
a tradição, o regulamento da ABL, admitiam-se ‘cidadãos’, o que foi levado ao
pé da letra por mais de 60 anos. Ao falecer Zoroastro Artiaga, ocupante da
Cadeira 16 da AGL, a poetisa e folclorista Regina Lacerda pleiteou a vaga.
Prevaleceu como consenso: em língua portuguesa, o masculino se aplica ao
genérico. Assim, a escritora vila-boense ingressou na Academia – era 1973;
somente em 1977 Rachel de Queiroz, valendo-se do mesmo argumento, foi empossada
na Casa de Machado de Assis.
Chuva
(Leo
Lynce, nosso primeiro modernista)
Chove.
Chuva. Chuva fria.
O mundo todo dissolvido em bruma.
Ninguém
sabe do sol.
Cadê Margarida? Margarida sumiu.
Margarida
tinha uma echarpe clara
esvoaçante como a névoa.
E
fiquei sozinho num retalho de rua.
Em todo o mundo, só havia eu.
A
névoa é a echarpe de Margarida
e eu sou a mágoa que choveu.
GEN – Grupo de Escritores Novos
Yeda
integrava o Grupo de Escritores Novos (GEN), criado em 1963, tendo como membros
também Aldair Aires, Miguel Jorge, Maria Helena Chein, Ciro Palmerston, Emílio
Vieira, Eduardo Jordão e vários outros escritores de prosa e poesia, todos em
busca de novas fórmulas e enfoques. Alguns veteranos, naquele tempo, já haviam
entendido que poesia moderna não era apenas ter um trecho em prosa de três ou
quatro linhas, que distribuíam a esmo em várias linhas de três ou quatro
palavras, apelidando-os de versos. Dos mais notáveis, posso destacar Afonso
Félix de Sousa, José Godoy Garcia, José Décio Filho e A. G. Ramos Jubé.
Mutante
(Yeda Schmaltz)
No espaço
sou homossexual
e sou mutante.
Não sou cavalo de aço
– cavalo doido e marinho
(cavalinho).
Cavalgando-me a mim mesmo,
sou meu próprio
tripulante,
com impulso e espera vã.
Que
saudade da maçã!
Eduardo
Jordão marcou bem sua passagem na vida literária e boêmia de Goiânia, ainda
que, mesmo frequentando os bares preferidos, não se envolvesse com os copos e
seus conteúdos. Participou do GEN e, por isso, sempre o tive por poeta, mas
quando assim o apresentei a alguns amigos, ele refutou, delicadamente, o
título: “Não, Luiz de Aquino, eu nunca fui poeta; eu escrevi sempre para
teatro”. Fiquei sem graça, apanhado num flagrante desagradável... Até que, ao
receber um mimo de Maria Helena Chein – a Antologia do GEN (1993, organizada
por Heleno Godoy, Miguel Jorge e Reinaldo Barbalho) – deparei-me com poemas de
sua lavra! Como este:
Poema Exagerado ao Pôr-do-Sol
(Eduardo Jordão)
Ainda farei
um poema ao pôr-do-sol
Como
a flor
fabrica o néctar
e a abelha nos entrega
como um favo de mel.
Jordão
abre outro poema, na mesma Antologia do GEN, assim: “A poesia me pegou / como
me pegam as gripes...”. Entendi como uma confissão retardada: o teatrólogo
confesso passara, sim, pelos encantos do chamamento da Poesia – a arte
hipnótica!
Outro
“geniano” muito ativo (foi seu segundo presidente, sucedendo Aldair Aires) foi
Ciro Palmerston. Tive o prazer de ser seu colega no primeiro ano do Clássico no
Liceu de Goiânia, ao lado do também poeta (e também do GEN) Emílio Vieira –
hoje, confrade na Academia Goiana de Letras.
Miguel
Jorge também presidiu o famoso Grupo de Escritores Novos.
Solidão maior
(Ciro Palmerston)
Pássaro só
voo incerto
num azul tão grande.
O que nos difere
é que
és pássaro
e eu,
gente.
Mulheres poetas
Como
citei linhas antes, a jovem Yeda Schmaltz, no verdor dos 20 anos, membro ativa
do GEN, anunciou sua estreia: era o quarto livro de poesia, em Goiás, escrito
por uma mulher (antes: dois de Leodegária, um de Regina Lacerda e, então, o de
Yeda). O próprio GEN arregimentara muitas poetisas – o termo poeta ainda era
timidamente usado por algumas, mas na década seguinte estaria consagrado entre
as autoras – ainda que algumas sequer tenham publicado livros. O grupo
congregava o que Maria Helena Chein define assim:
– O GEN era um grupo de jovens
turbulentos, porque inteligentes e dinâmicos, que se recolhiam para estudar e
produzir, e se encontravam nas reuniões das sextas-feiras, à noite. Então,
entre risos e sorrisos, debulhávamos as nossas verdades em forma de poemas.
As
poetisas do GEN: Edir Guerra Malagoni, Maria Luzia Sisterolli, Rosimery da
Costa Ramos, Lygia Barreto, Maria da Cunha Morais, Maria Evangelina, Maria
Helena Chein e Yeda Schmaltz (Marietta Telles Machado voltava-se para a prosa,
com ênfase para a literatura infantojuvenil). Dentre todas, as que mais se
destacaram por sua produção e pelo empenho em publicar foram Yeda Schmaltz e
Maria Helena Chein.
Poemeto
(Rosarita Fleury)
Depois
que a distância chegou
nunca mais meus braços se estenderam ansiosos.
Vivem perdidos ao longo de meu corpo
como asas partidas,
como folhas crestadas pelo calor.
E se, às vezes, tento persuadi-los
a se erguerem,
a lutar pela felicidade,
a agarrá-la, a prendê-la em seus dedos,
ficam ainda mais tristes,
lembrando lágrimas compridas à procura da terra
e me dizem num lamento:
– Para quê, se só conseguimos alcançar
o corpo frio da distância?
Em
1967, os membros do Grupo de Escritores Novos resolveram encerrar suas
atividades. Marietta Telles Machado contou, numa roda de escritores em torno de
cerveja gelada, que partiu dela a proposta: “Vamos acabar com o GEN?”. Obviamente,
essa sugestão não se deu por nada, mas a nossa amada autora de contos
infantojuvenis e uma das primeiras bibliotecárias de Goiás não forneceu detalhes,
mas o fato é que todo o grupo aceitou o término das reuniões das sextas-feiras
e não mais se falou das famosas atas, citadas assim por Bernardo Élis: “A
matéria tratada nas reuniões era meticulosamente registrada em longas atas, o
que fazia alguns despeitados dizer – este é o grupo das atas”.
À
distância – e por fora, obviamente – acompanhei as referências ao GEN, quando
de sua efervescência, na década de 1960. Ainda nos tempos de Liceu, Emílio
Vieira queria me levar para o grupo, mas encontrou resistência, ao que eu
próprio lhe disse para desistir da indicação. Àquele tempo, eu conhecia de
vista e de raramente ouvir alguns membros. Senti que era alvo de antipatia
gratuita e não me agradaria ser maltratado, claro! O passar dos tempos
permitiu-me travar conhecimento com alguns dos antigos genianos e uns raros
tornaram-se meus amigos.
Invento Ritos
(Sônia Maria Santos)
A
beleza do rosto,
se flutua calma,
vai para a alma
pelo padecimento.
Não sei se creio.
Mas invento ritos:
desembaço vidros
espelhos
vejo-me
na luz de cada dia
e seu desenho.
Então,
já decorriam os últimos anos da década 1970 e o movimento literário da capital
era bastante agitado. Aos poetas somavam-se as poetisas, a maioria exigindo o
tratamento despertado por Cecília Meireles, num verso imortal: “Não sou alegre
nem sou triste, sou poeta”. As poetas, em breve tempo, mostraram a que vieram!
Algumas
eram de geração anterior – isto é, entre 25 e 30 anos acima da média etária do
nosso grupo emergente –, como Violeta Metran e Rosarita Fleury, e dentre essas
poetas na casa dos 40 e 50 anos, havia as que, enfim, tiveram a chance de
trazer a lume seus livros. Em 1965, por exemplo, Cora Coralina, aos 75 anos,
autografou seu livro de estreia.
Nos anos 1980, foram muitas as mulheres poetas que trouxeram
seus livros às bancas e livrarias: Zina Brill, Abadia Silva, Getulina Pimentel,
Gilka Bessa e Zulma Bessa, Lygia de Moura Rassi, Sônia Elizabeth Nascimento
Costa, Maria Amélia Trindade... E ainda dos anos Oitenta: Sônia Maria Santos,
Vilda Guerra Fernandes, Nice Monteiro Daher, Malu (Maria Luísa) Ribeiro, Fausto
Rodrigues Valle, Leda Selma de Alencar... Maria Lúcia Félix de Sousa estreou
ainda menina, mas não perdeu a verve: continuou o ofício dos versos e
experimenta, também, o da crônica.
A
moderna poesia, em Goiás, ganhava novas vozes e cores! Alguns modernistas já
publicados desde a década de 1950 acolhiam bem os moços – outros, torciam-lhes
os narizes.
Ao banquete que se encomenda
(Miguel Jorge)
É
aqui neste banquete que te encontro:
olhos nos olhos,
uvas no vinho.
É aqui neste banquete que te
encontro:
boca na boca,
possuída
lembrança de romãs
frutificando espigas,
douradas bagas
que
um dia se fizeram maçãs.
Dos
que me eram mais próximos pela idade, havia Emílio Vieira, Ubirajara Galli,
Dionísio Pereira Machado, Valdivino Braz e Ademir Hamu, contemporâneos de época
admissional na UBE de Goiás – o que já nos dava o título de escritores. E dos
novos, mas já inseridos no nosso pequeno universo de poetas editados, havia
Aidenor Aires, Ciro Palmerston, Brasigóis Felício e Gabriel Nascente, todos com
profícua e inquieta produção e muita atividade cultural. Eram os últimos anos
Setenta e os primeiros Oitenta, com grande efervescência cultural em pequenina
Goiânia. As artes plásticas marcavam presenças fortes em eventos vários; a
música, por cantores e instrumentistas locais (Sirlon, Fernando Perillo, Bororó
e as bandas de bailes, como Marquinhos e Seu Conjunto), bem como a incansável
luta de Otavinho Arantes pelo teatro eram atividades de que a sociedade
goianiense se orgulhava.
Retrospecção da Rua
(Emílio Vieira)
O
mundo: sua largueza
cabe nesta rua.
O tempo: sua história
para nestes passos.
As imagens secretas
entram nestes olhos.
As palavras já ditas
voltam a estes lábios.
Um pássaro de vento
pousa nestas mãos.
Testemunho
(Maria Helena Chein)
Seu
sorriso me golpeia,
a palavra me recorta,
a mão me desnuda.
Estou sensível
e não quero brigar.
Testemunhar pode
as minhas dores,
mas, sem atrevimento.
Ainda
na década de 1980, novos autores surgiram no espectro da Poesia em Goiânia,
como Tagore Biram, Celso Cláudio Carneiro, Delermando Vieira (um campeão de
prêmios nos concursos literários locais, nacionais e internacionais), Helverton
Baiano, Gilson Cavalcante, Marcelo Heleno e outros.
Previsão do Tempo
(Maria Lúcia Félix Bufáiçal)
É
possível
provável
que ainda existam
muitos recantos
no coração
para se conhecer.
Não tenho medo.
Como
cheguei até aqui
chegarei também
ao fim dos tempos
com algumas escarpas
na alma
imutáveis
e alguma matéria prima
de sentimento.
Não tenho medo.
Saberei
por certo sentir
o sol
a chuva
o vento
um gosto de comida boa
mesmo sem os olhos
ouvidos
dentes.
Viver sempre fará sentido.
Mesmo
porque
serena-mente
a quase
totalidade
de meus dias
vivi-os
sempre
dentro de mim.
As
reuniões na União Brasileira de Escritores em Goiás, na gestão de Miguel Jorge
naquela passagem de décadas (Setenta e Oitenta), ocorriam às segundas-feiras, a
partir das 18 horas. Em seguida, o grupo seguia para um bar – o de preferência
ficava na esquina das Ruas Oitenta e Três com a Noventa e Quatro.
Por
essa época, recebemos um poeta em nosso meio, Geraldo Dias da Cruz. Chegou a
Goiânia por conta de uma transferência (era gerente do Banco do Brasil) e logo
filiou-se à UBE, era presente nas reuniões e sempre tinha novidades, fosse
alguma notícia nova do meio literário nacional, fosse um novo poema. Nos
últimos tempos, recebi dele dois novos livros, a intervalo razoável, numa
evidência de que, mesmo afastado das efemérides literárias de Goiânia, continua
produtivo e com sua poética mais refinada e bonita a cada novo livro.
Todas as artes
(Ubirajara Galli)
Seu
corpo
é o encontro
de todas as artes.
Onde
misturo
palavras e orgasmos.
(Meu
coração
rola abestalhado de prazer).
Jumento
(Aidenor Aires)
Contigo
aprendi
a deitar com a carga
e não ir adiante.
Contigo aprendi
a rebeldia
e a saber
que, às vezes, é melhor
empacar ou morrer.
Contigo aprendi
a ser terno e duro
como uma faca,
e quando disser “não”
nem o diabo me vira a cabeça.
Os bares
Ao
presidir a UBE de Goiás, na segunda metade dos anos Setenta, Miguel Jorge
(poeta, contista, romancista, cronista, editor do Suplemento Literário de O Popular e crítico de arte) passou a
promover exposições de poema-cartaz. Essas peças consistiam em um poema com
ilustração concebida por um artista plástico e tais exposições valiam-se de
espaços de alta frequência, como os bares noturnos em que ocorriam também
apresentações de músicos, dando um toque de refinamento a tais casas noturnas.
A música, obviamente, atraía um público de fino gosto artístico, em especial
porque eram os anos de chumbo, ainda, e a MPB trazia mensagens subjacentes de
reação, mesmo nas canções românticas.
Essa
característica dos botecos abriu espaço também para os poetas e os jovens e
adultos insatisfeitos com o regime – afinal, o bar era a nossa grande sala de
estar. Desses ambientes advêm incontáveis amizades que se formaram ou se
consolidaram ao som das músicas e sob as discussões políticas de resistência. A
esse mesmo tempo, muitos amores nasceram e se firmaram – ou terminaram, ou se
reajustaram... E sob esse clima, alguns poetas vendiam seus livros de mão em
mão. Uns, por excesso de timidez, não se punham ao comércio de seus livros;
outros, menos disciplinados, embriagavam-se rapidamente, perdendo a ocasião.
POEMA 12
(Tagore Biram)
Mas
a fumaça do cigarro
desenha teu corpo pequeno e aceso
como a brasa. Sob o céu aberto, teu corpo.
Teu lindo corpo. Vaga dos meus escombros.
E começa a guerra. Angústia imperecível.
E
sobe o verso como trepadeira
nos muros altos. Fumo contorna
teu corpo banhado de névoa.
As
heras sobem trançadas como serpentes.
E o fumo desenha teu corpo de névoa
sobre o oceano mudo de minha alma.
Mantive
a disciplina para tais vendas; costumava rodar dois mil exemplares de cada
edição e a esgotava num prazo entre quatro e seis meses, de mesa em mesa; por
produzir poesia de amor, vendia mais que os companheiros, haja vista a elevada
presença de casais (namorados, noivos, casados e amantes), atraídos pela boa
música – e, diga-se, também da boa comida que se servia a um público habituado
com os quitutes da mamãe e da vovó.
Aprendi,
com as experiências, que o bom negócio era limitar o circuito a poucos bares –
entre cinco e dez – porque, de outra forma, seria uma “peça estranha” no
ambiente; mas repetir o circuito mostrou-me que o público dos bares, em
especial nos finais de semana, era sempre renovado. Goiânia, naquela época,
atraía visitantes do interior e, mais ainda, de Brasília; em menor escala, de
outros estados, vestígios esses que descobri nos cheques que recebia em
pagamento – jamais tive problemas por aceitar cheques, mesmo que de Recife,
Belém, Porto Alegre, Rio e Brasil inteiro! Percebi que os leitores de poesia
eram pessoas corretas em seus negócios, mesmo que o negócio fosse a compra de
um livro de poemas.
Eram
também costumeiros os saraus nesses bares. Vez ou outra, algum artista plástico
marcava um encontro em seu ateliê. Os convidados eram, obviamente, os colegas
das tintas e formas e, infalivelmente, alguns poetas. Miguel Jorge, por ser
também crítico de arte e, entre os escribas, um líder nato, era presença
marcante; assim, esses encontros eram marcados também por declamação e leitura
de poemas. Eventualmente, e isso fazia tudo virar festa, algum músico dava tons
na noite.
Ano Novo
(Sônia Elizabeth)
Nessa
manhã revestida
de ano novo em tudo
parece que sossega o vento.
Nas nuvens todos os ritmos
e a humanidade acorda
para qualquer nova esperança.
O calendário mudou.
Sem Pressa
(Fausto Rodrigues Valle)
Não
tenho pressa,
sou como o rio,
escorro lento
minhas águas.
Não
tenho idade,
sou longe dos anos.
Há a eternidade
para domar fantasmas.
Como
o rio,
não tenho tempo
para chegar.
Os lançamentos
Os
lançamentos estão para as letras como as vernissages para as artes plásticas.
Eram, naquela época, festas de grandes referências na sociedade, o que bem
marcava o local escolhido e as notícias nos veículos de comunicação.
A
um lançamento de livros, os dois jornais mais antigos (e diários) de Goiânia
pautavam repórteres e fotógrafos, procedimento comum também aos semanários e às
revistas. As emissoras de rádio enviavam repórteres com seus gravadores (ainda
que manuais, de porte e peso consideráveis) e as de televisão – três canais na
capital – faziam-se presentes para, também, gravar em filme de 16mm ou a grande
novidade: câmeras com cartuchos VHS, ou videoteipe.
No
dia seguinte, o autor era visto nas mídias impressa, falada e televisiva.
Alguns repórteres atreviam-se a narrar, além dos fatos corriqueiros de tais
festas, o número de volumes vendidos.
Esquecido
(Delermando Vieira)
Antigamente,
eu tinha o costume de semear canteiros, aos pingos e à chuva
de janeiros.
Tinha
eu essa liturgia
de na paisagem dos dias semear poesia.
Isso foi naqueles tempos de muita semeadura e rebentos.
Hoje,
nada tenho ou sequer sou o que podia ter sido.
Por isso, estar em mim agora soterrado
aquele poeta ilhado: esquecido!
Em
linhas gerais, era esse o quadro naquele final dos anos Setenta e a década de
1980. Evoquei o passado e tentei demonstrar o quadro social de Goiânia naquela
fase. Destaco o Grupo de Escritores Novos por terem sido, aqueles rapazes e
moças, os que consolidaram as inovações semeadas na Semana de Arte Moderna de
1922 e que encontrou forte resistência em Goiás, ao longo de quatro décadas!
Em
poucos anos, como se viu, o próprio grupo entendeu ter chegado o momento de
encerrar suas atividades coletivas, o que, naturalmente, possibilitou o
crescimento e a concretude de carreiras literárias, a ponto de, ainda hoje, os
que persistiram nas letras despontarem como referências sólidas no ofício do
verso e da prosa.
Recordar
aquele tempo não se limita, como se vê, a um período isolado. É, antes, como
pôr a canoa num rio e descer com as águas, sabendo que ali começou a viagem,
mas não o rio, que, ao permitir-me a navegação, trazia desde as nascentes todo
o tributo de seu curso. A um ponto, ou porto, hei de desembarcar. As águas,
porém, seguem seu curso, avolumam-se e servem aos que estão (e aos que surgem)
à jusante.
Espero
que a minha viagem contribua com os novos navegantes.
(04/02/2022)
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L.deA., 1982 |
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L.deA., 1983 |
(*) Luiz de Aquino Alves Neto, escritor de verso e prosa, da Academia Goiana de Letras e
da União Brasileira de Escritores de Goiás.