Verdade, fidelidade e lealdade
Fala-se muito em
fidelidade. Alguns religiosos, desconhecendo o real sentido e valor de algumas
palavras, dizem que Deus é fiel. Sinto-me mal com isso. Deus não pode ser fiel
a nós. A fidelidade é um sentimento que implica submissão, por isso o atribuímos
aos cães. Os cães se sentem dependentes de algum humano.
Então, quando
alguém diz "Deus é fiel", sinto-me mal porque Deus é o ápice, a Luz
Maior, a fonte de Luz, de Vida, de Bondades (todas elas). E por conhecer um
pouquinho da natureza humana, atrevo-me a dizer que não fomos feitos para a tal
fidelidade. Não somos monógamos, ou monogâmicos. Nós namoramos um, dois,
três... antes de elegermos alguém.
A fidelidade não é
isso que os padres e pastores enfiaram nas nossas cabeças. Fiéis, na relação
conjugal, que eu saiba, são os animais monogâmicos. Os psitacídeos – papagaios,
periquitos, araras e maritacas – que, quando o parceiro morre, o viúvo mantém-se
assim até a morte.
Você comete o “pecado”
da ansiedade. Ou da angústia. Psitacídeos... Bonito esse nome! Pela pouca
familiaridade com a linguagem biológica, vivo me esquecendo. Os psitacídeos são
fieis, sim. Mas se algum deles conhecer um novo parceiro, a fidelidade, a
monogamia, a exclusividade – seja lá qual for o nome – vai p’ras cucuias (e até
eles já foram mais fiéis). O que se tem não é pecado. É, no máximo, a
infringência de regras sociais que, aos poucos, também vão se esvaindo porque a
sociedade muda na mesma velocidade da tecnologia.
Há anos, vi na
tevê uma história que achei maravilhosa. Uma fêmea chimpanzé, no zoológico de
Brasília, nadava para a outra margem do pequeno canal que separa o seu recanto
da ilha onde morava um macho. Só que ela era casada, tinha sua família, mas
chifrava o marido sem constrangimento. Ia lá, namorava o "ricardão" e
retornava cheia de autoridade - e felicidade, certamente. Os primatas não são
fieis, nesse sentido.
A lealdade é outra
história. Não devemos romper a lealdade, mas a obsessão pela verdade é um mau
hábito que só serve para nos angustiar quando nos flagramos mentindo. E essa é
uma exigência judaica que o catolicismo importou. Sempre pergunto às pessoas –
quem foi a pessoa que mais mentiu para você? Pouca gente acerta. É preciso que
eu diga – "Sua mãe" – e as pessoas concordam, assustadas. Nossas mães
mentiram para nós e nós vamos mentir para os nosso filhos e netos. Ora para
protegê-los (a mãe, a avó), ora para diverti-los (pais e avôs). E o amor
continua, muitas vezes mais fortalecido, nos dois sentidos. E descobrir isso
nos faz amá-los ainda mais.
Jamais diremos às
pessoas que estão na nossa vida sobre o que transgredimos. O amor-próprio é
algo muito forte. Quando crescemos e nos tornamos mais racionais e conscientes,
as mentiras vão se reduzindo, diminuindo. Mas, num dado momento, se algum deles
– ou ambos, ou todos eles – acharem que não devemos saber de algo, eles criarão
uma história para cobrir a realidade e nos deixar mais tranquilos – ou protegidos.
Certa vez um amigo
apresentou-me o pai. Um homem alegre, solitário e paparicado por todos –
filhos, sobrinhos e netos. Ele me contou:
– Fui buscá-lo
(citou uma cidade do interior) para passar Natal e Ano-Novo conosco. Ele fica
muito sozinho, minha mãe pôs um chifrinho nele... Ele ficou triste, mas se conformou
e agora está de namorada. Namoro novo.
Isso foi há quatro
décadas. Achei bonito como ele me contou o desamor dos pais. Sem ranço de mágoa
nem dor, sem tomar partido, sem preconceito. A mãe, que ele amava da mesma
forma, estava em melhor condição emocional, por isso meu amigo se preocupava em
proporcionar ao pai a mesma alegria.
Mas há quem exija
fidelidade. Ora! Se não conseguimos ser fiéis a Deus e até invertemos os
papéis, afirmando que Ele é fiel, que obrigação temos com o próximo nesse item?
Se conseguirmos ter amor ao semelhante, já estaremos chegando perto do que nos
pediu o Cristo.
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Luiz
de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras.
9 comentários:
Espetacular. Reflexão profunda!
Interessante!
No final de 1977, meu presente de Natal foi a publicação da Lei n º 6.515, que me convenceu de que jamais deveria casar-me, por não confundir, etimologicamente, lealdade e fidelidade. Enquanto esta me garantiria um "status" formal, aquela, isenta de provas, dependeria apenas do caráter do meu eleito. Decidi não arriscar!
O que importa é o respeito, poeta!
Excelente.
Adorei!
Somos todos fiéis até que um encantamento maior apareça em nossas vidas. Ninguém está livre disso, Luiz De Aquino Alves Neto.
Muito bom. Importante ė o respeito, a ėtica .
Adorei... cabe-nos refletir!
(...) parabenizar pela ótima crônica sobre traição. Um tapa na cara dos hipócritas e uma excelente retirada de máscaras.
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