As mães em nós
Ela
é a palavra mais linda
Que um dia o poeta escreveu
Ela é o tesouro que o pobre
Das mãos do Senhor recebeu.
(David
Nasser e Herivelto Martins)
A quadra em
epígrafe é da canção “Mamãe”, dos talentosos David Nasser e Herivelto Martins.
Ouvi-a pela primeira vez em Niterói – era maio de 1956, justo o dia em que eu
soube existir aquele segundo domingo voltado para festejarmos as mães. Acho que
decorei música e letra de imediato, pois estava habituado a isso pelas
cantorias frequentes em casa, em Caldas Novas, até dois meses antes...
“Quando o dei à
luz, não foi só ele que nasceu, mas eu também, pois naquele momento eu nasci
mãe”. Não sei que mãe foi essa que conceituou o primeiro parto de modo tão
real, sincero e sentido – sem dúvida, uma poetisa (ou mulher poeta, como
conceituamos desde que Cecília Meireles permitiu-se assim). Sei bem, de tanto
ver, ouvir e sentir o quanto o amor de mãe é diferente, denso e essencial – por
isso, eterno.
Habituei-me a
publicar, uma ou duas vezes ao ano, um poema que produzi ainda a tempo de
submetê-lo ao rigor do gosto de Da. Lilita (que sempre foi Elia Borgese mas, no
meu registro de nascimento, o escrivão Melquíades, de Caldas Novas, distraído,
acrescentou o H da grafia portuguesa, em lugar do original italiano).
Existirá, no
mundo, até estes tempos pandêmicos, poeta que não tenha reverenciado a mãe em
pelo menos uma peça? Eu menino, desde as primeiras cantigas aprendidas, cantava
o que ela escolhia; meu pai solava a melodia, ela me ensinava os versos e a canção
nascia para, algumas vezes, percorrer as ruas de terra batida de Caldas Novas
em memoráveis serenatas. A partir do segundo semestre dos meus dez anos, minha
devoção à mãe era formulada em cartas quinzenais ou semanais, desde a casa da
avó Inês, em Marechal Hermes (Rio), onde morei até as vésperas dos 18 anos.
Henfil com Dona Maria |
Essas cartas
tinham o toque da relação familiar. Eram, pois, diferentes das que, nas décadas
de 1970 e 80, o cartunista Henfil (Henrique Sousa Filho) publicava na última
página da revista IstoÉ, como uma coluna, sob o título Cartas à Mãe. Um
retratinho de Dona Maria ficava no alto, ao lado do título, e o cartunista
ilustrava a missiva semanal, sempre curta, com seus tratos inconfundíveis,
arrematando o texto de crítica política ferino, porém em linguagem de filho
para mãe, como qualquer de nós sabe identificar – desde que filhos de mães
amadas, já que, para os filhos, a melhor mãe do mundo tem o nosso mesmo
endereço.
Henfil viveu
pouco – faltavam 32 dias para completar 44 anos, em 4 de janeiro de 1988. Foi vitimado
pela Aids, contraída em transfusão de sangue (ele e seus dois irmãos homens
trouxeram na herança genética a hemofilia; os três morreram pela trágica doença
que virou peste na década de 1980).
Outro artista
que magistralmente reverenciou a própria mãe com sua arte deixou-nos nesta
semana – o autor e ator comediante Paulo Gustavo Amaral Monteiro de Barros. Ele
completaria 43 anos em outubro e vinha se destacando como humorista e
comediante nesses espetáculos solitários tão em voga nos últimos anos, mas após
uma criação sob o título “Minha mãe é uma peça”, o sucesso em palcos sugeriu a
produção em mídia para a grande massa: um filme. E vieram, depois, duas novas
versões, sempre com picos de bilheteria.
Paulo Gustavo com Dona Dea |
Como Henfil, que
contraiu Aids há 30 anos, Paulo Gustavo foi contaminado pelo Coronavírus, a
praga deste tempo. E não conseguiu vencer a doença nos 50 dias em que lutou com
força, assistido pelas mais recentes técnicas médicas. Dona Déa, sua mãe (que
se tornou “Dona Hermínia”), certamente passa o pior de todos os seus Dias das
Mães, confortada pela comoção nacional em torno do filho que sempre significou
alegria e carinho para seus admiradores.
De minha parte
de filho, sempre retribuí à minha mãe uma espécie de energia que, dizia meu
pai, herdei dela – a persistência em defender meus pontos de vista e saber
demonstrar opinião. Já na minha fase escritor, esbocei referências de amor e
teimosia em meus textos em prosa. Ensaiei muitos poeminhas, de quadras a peças
maiores, que rasguei por constatar que repetia outros poetas. Um dia, porém,
consegui finalizar um poema personalista, de mim para ela, no modo que eu a
sentia e sentia a nossa relação. Fiquei feliz quando ela levantou os olhos do
papel e, com um beijo precedido de um olhar amoroso e diferente, os lábios se
esticando num sorriso, ela puxou para si a minha cabeça e beijou-me a testa,
naquele jeito incomparável.
Foi assim:
Mãe
Tristes não, nem saudosos. Alegres, talvez.
Apenas certos de estender aos anos
alcatifas de coradas flores.
Não cúmplices, mas pedaços
de uma vida, a mesma, entrelaçados
por fecundo sêmen, no estertor de legítimo gozo
de humores a fluir com força:
momento de evocar-me à luz.
À luz, à luz... como vim
e vi-me feito à imagem
de Deus, dizem os crentes;
do Homem, é o que diz Deus.
Há, sim, o entendermo-nos sempre.
Refazer das carnes após o amor de hormônios,
multiplicar de genes, gestar com paciência,
parir entre dores, odores, suores
e as sempre lágrimas.
Deu-me o plasma, e o sorvi como a vida;
deu-me formas, palavras, cores, paladares,
música, dimensões, poesia
e o sentir,
que não se é poeta
impunemente.
De risos, lágrimas, sucessos;
e de tristes, felizes, esperanças;
e de entes queridos ou distantes,
a fé no verbo te eterniza em mim.
* * *
Poeta Luiz de Aquino com a mamãe Lilita |
16 comentários:
Os anos te fizeram poeta; em poesia, nos têm feito assíduos servos de um pensamento expresso em prosa e versos incontidos.
Muitas vezes sensuais com denotado pudor.
Lilita, ao seu lado, tornou presente um passado, que soube eu conviver. Faltam palavras, excede uma imensa saudade.
Maravilha o texto e a poesia! Obrigada...
Parabéns Poeta! Texto, poema e foto perfeitos. Triste e inconcebível para uma mãe a perda um filho.
Feito poeta, excede sentimentos em prosa e versos; como filho, caminha o desenho nostálgico de tantos anos felizes.
Sou servo de um cenário saudoso... em um canto de bar, ensaiando músicas das serenatas inesquecíveis pelas ruas de Caldas.
Segue poeta, me faz assíduo admirador. Versos intensos, poesias descomprometidas, desenhos sensuais com denotado pudor.
Lilita, compadre, inspiração denotada de um momento maduro, faz coro em canções, que eram nossas.
Ainda são nossas.
Bom final de semana.
Linda homenagem! Viva todas as mães!
Grande reflexão! Lembro sim da da. Lilita, sempre determinada!!! Foi também minha paciente... Saudades!
Que lindo, poeta!
Esse é o meu primeiro dia das mães, sem a minha mãe 😢...
Você me emocionou!
Parabéns pelo belo texto e lindo poema.
Lídia Afonso
Nesta postagem você se superou. Emocionante e poético.
Adoro sua forma de escrever, de entrar num tema tão terno e tenso (pra quem como eu que não tem mais a mãe presente), essa forma de perpassar por locais de sua Mória e nos levar aos das nossas, obrigado!!!
Texto muito bom.Bonita homenagem à sua mãe e a todas as mães em seu dia.
Texto ótimo! Bela homenagem à sua mãe e a todas as mães em seu dia!
Texto ótimo! Bela homenagem à sua mãe e a todas as mães em seu dia!
Grande homenagem. Salve todas as mães!
“As mães em nós”
Belo poema, onde o evocar a mãe é pensar na saudade mais real de que se tem notícia, sem sofrimento, antes, com uma alegria que une. O poeta e a mãe desbravaram o amor e seus doces significados. As lembranças intensas, o sentimento que persiste definem os versos construídos com arte e uma beleza singular.
Poeta, quanta sensibilidade! Quanto alcance consegue em minha alma materna. Tirou-me lágrimas este poema. Obrigada pelos belos versos.
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