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sábado, fevereiro 16, 2008

Vereador goianiense quer "destronar" o Anhangüera


Futuro é fumaça


Também já fui bobinho o bastante para entender que os bandeirantes não mereciam ser chamados de heróis ou terem assento nas páginas da História do Brasil, pois eram homens truculentos que chacinavam índios. Também já entendi que os generais de toda a História, os imperadores e reis, os bispos e protestantes reformistas eram pessoas movidas por causas mesquinhas, ou seja, não mereciam ser chamados de heróis.

O que me movia era a crença em um dos lados da religião, o lado da bondade ingênua, o da santidade piegas. Demorei a entender que o ser humano é feito de todas as têmperas: no homem cabe o bem e o mal, e bem e mal são conceitos diferenciados conforme a moral vigente e os interesses dos governos e das religiões (duas coisas tão próximas quanto craques e cartolas, diplomatas e espiões, médicos e coveiros).

Vejo aí, nos jornais, a iniciativa de um vereador no sentido de remover do centro histórico de Goiânia a estátua de Bartolomeu Bueno, o filho, desbravador destas terras e fundador de “Vila Buena”, que traduzimos por Vila Boa e que o mau-gosto da repetição impôs com o simplório “Goiás”, em detrimento do nome espontâneo de origem. Goiás é nome bonito, mas já era o nome do Estado; que se conservasse, pois, o nome original.

A primeira vez que ouvi esse disparate, concordei com ele; depois, envergonhei-me do meu analfabetismo funcional e me recompus. O Brasil inteiro reverencia Rui Barbosa, o jurista impecável, o escriba de textos impecáveis, mas político falho que, no Senado (vale lembrar: é tido como o maior dentre os maiores senadores nestes quase dois séculos), repreendeu o presidente Hermes da Fonseca por receber Chiquinha Gonzaga no Palácio do Catete. Disse ele que a dignidade da Presidência da República era contaminada pelo “bodum das senzalas”, referindo-se ao corta-jaca, um ritmo afro-brasileiro que a grande musicista divulgava.

Futuro é fumaça; passado é sólido. Não se muda o passado.

Heróis são pessoas. E as pessoas agem conforme sua época. Expulsar da praça pública, em terras goianas, a memória de Bartolomeu Anhangüera é expulsar Pedro Ludovico do Palácio das Esmeraldas; é expulsar Hipócrates e Pasteur dos hospitais; Platão das academias; e, pior e mais emblemático, é expulsar Jesus Cristo das igrejas, inclusive a do vereador, que é pastor evangélico.

O vereador promete arregimentar líderes como o presidente da Funai e outros mais “ligados” à causa indígena. Ora: povos diferentes, num mesmo espaço, são antagônicos. Tanto era violento o branco europeu por aqui quanto o índio nativo. Sangrentos eram ambos. Como árabes e judeus, hoje, nas disputas pelo território. Mascarar a verdade com a chancela de “minorias qualitativas” é cínico; é inoportuno; é feminismo de dondoca.

Em lugar de tentar burlar a História, o pastor vereador deveria voltar à escola. Falta-lhe filosofia para melhor analisar os fatos e falta-lhe, certamente, melhor conhecimento. Ou ele tenta a fama a qualquer custo? Isso é ruim.

Em lugar de remover estátuas, vereador, Vossa Excelência devia, isto sim, pugnar pelos esgotos pluviais de Goiânia. Ou pelo nivelamento das calçadas do alto dos setores Bueno e Bela Vista. Quanto à estátua, oferecida a Goiânia pelo Centro Acadêmico XI de Agosto, da tradicional Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, trazida para Goiânia por ninguém menos que Cunha Bueno, Jânio Quadros e Ulisses Guimarães, já basta a violência de que foi vítima pela malfadada reforma da Avenida Anhangüera, em 1998.


Sim: cuide da cidade, vereador. Sei que Vossa Excelência tem amor por esta terra, tal como eu; sua juventude dota-o de ímpetos, mas o bom senso recomenda comedimentos, e não seria bom que, em duas ou três décadas, sua consciência o recriminasse por esta medida.

5 comentários:

Madalena Barranco disse...

Oh, Luiz, mas esse vereador é um atentado ao patrimônio cultural e a memória de Goiás! Há certos ícones que fazem parte da alma de uma cidade. Eu também nunca achei que os bandeirantes fossem os "mocinhos" da história, mas, os arquivos de um povo se fazem com alegrias e tristezas. Beijos da fã.

Mara Narciso disse...

As pessoas que passaram para a história fizeram coisas diferentes dos outros do seu tempo e por isso mesmo estão nos compêndios. Os seus feitos chocaram os seus contemporâneos por avançados demais( caso de Chiquinha Gonzaga), e choca os atuais pelo atraso de pensamento(caso dos bandeirantes). Nem heróis e nem bandidos, nem corajosos ou destemidos. Fizeram o que fizeram porque não havia escolha. Seguiram as normas ditadas pelo tempo deles. A estátua é homenagem e lembrança. Hoje não seria erguida, mas se lá está, que fique. Não podemos sair por aí derrubando marcos históricos por que representam aquilo que não gostamos.

Anônimo disse...

Oi Luiz

Desta vez, realmente, você se superou! Adorei a sua crônica FUTURO é FUMAÇA. Oxalá os homens entendessem que " ...o ser humano é feito de todas as têmperas: no homem cabe o bem e o mal, e bem e mal são conceitos diferenciados conforme a moral vigente e os interesses dos governos e das religiões (duas coisas tão próximas quanto craques e cartolas, diplomatas e espiões, médicos e coveiros)."
Quanta sabedoria neste parágrafo! Concordo que tudo o que você disse; a humanidade seria bem melhor se todos conhecessem esta verdade, inimiga do radicalismo e da prepotência.
Parabéns!
( andei sumidinha porque estava doente... só agora retornei ao meu PC...)
Abraço amigo
Mariza

Anônimo disse...

Caro Luiz de Aquino, gostei muito da sua crônica de domingo, FUTURO É FUMAÇA. Sua abordagem do tema é isenta e muito bem feita. Vejo que você não se deixou levar pela paixão que costuma possui-lo quando escreve seus textos, como se o espírito revolucionário que habita o íntimo do seu ser, a cada nova crônica, quisesse dar um golpe de estado e vencer o imperador da razão. Vez por outra leio essa tentativa de revolução nos seus textos, instante em que surgem ataques diretos e pessoa e instituições.
Mas essa crônica sobre a estátua do Anhangüera foi realmente muito bem escrita. A citação de Rui Barbosa, então, merece meu aplauso de pé. Você sabia que esse renomado escritor, no afã de tentar apagar o passado do Brasil, mandou destruir todos os documentos federais sobre a escravidão? Sabia também que o anterior Código Civil era para ter sido publicado em 1906, mas o foi dez anos depois, pois Babosa queria complicar o texto e lhe dar ares acadêmicos? No entanto, nem por isso iremos arrancar estátuas de Rui Barbosa e rasgar seus livros. Como você bem salientou, ele era um homem do seu tempo.
Nem mesmo nós estamos isentos do julgamento da história. Que dirão as futuras gerações de nossas condutas e idéias, ou mesmo de nossas omissões, nesses tempos difíceis que vivemos?! Pinçar um personagem da história e desprezar seu ciclo social, o contexto de época, os modismos e idéias, para julgá-lo pelos nossos valores atuais, sinceramente, é analfabetismo cultural.
Por outro lado, também não sou a favor da estátua do Anhangüera. Creio que o monumento às Três Raças, na praça Cívica, bastaria. Mas não há justificativa para se destruir o que está pronto. Sem contar que, queiramos ou não, os bandeirantes estão intimamente unidos a Goiás.
Parabéns mais uma vez pelo texto.
Adriano Curado

PS.: Gostaria de enviar esta mensagem para os comentários da matéria no DM, mas o jornal não publica todos os textos dos leitores!


Adriano César, o Poeta!

Anônimo disse...

Luiz, bom dia. É a minha primeira
visita aqui e olha, estou apaixonada.
E isso pela sua escrita poderosa.
Pelo seu jeito coerente de 'alertar'
e levar as pessoas a pensar um pouco
mais com o que deveriam se preocupar.
Entendo um pouco a mente destas pessoas
que no lugar de construir buscam
formas de 'implicar' com o que já
está feito.
Existe uma política suja em nosso meio
(infelizmente), mas o que mais me
indigna não é principalmente isso.
É a ignorância política.
Será que não há nada mais importante
para ser feito além de destruir patrimônios?
Será que é muito difícil lançar
olhares para algo mais urgente?
O homem que não raciocina é capaz
de exterminar uma cultura inteira.
E assim, devagar, apagando marcos
do alcance dos mais novos levar
uma cidade a perder a própria identidade.
E depois? Falar de qual passado?
Como compreender raízes e motivos?
Parabéns pela crônica.
Amei estar aqui.
Abraços e um belo dia.