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segunda-feira, novembro 30, 2015

Cartola,35 anos após!

Hoje, 30 de novembro, faz 35 anos da morte de Angenor de Oliveira, o Cartola, um dos fundadores e autor do nome e das cores da Mangueira, a escola-de-samba símbolo. Transcrevo, sem licença do autor, a crônica do poeta Guido Heleno (as fotos, colhi-as na Internet).



E o bumbo bate por Cartola

Cartola mesmo disse que quem gosta de homenagem póstuma é estátua e que ele queria continuar vivo, brigando pela nossa música. Essa declaração foi registrada em matéria da Revista Manchete de 1977, três anos antes da morte desse que foi um de nossos maiores compositores. Amanhã, 30 de novembro, faz 35 anos que Cartola se foi. Sei que sobre ele fizeram filme, especiais de televisão e publicaram-se reportagens em jornais e revistas. Mas sei também que, apesar da grandeza de sua música, Cartola vai deixando de ser comentado, mencionado. Mas como ele mesmo manifestou, quem gosta de homenagem póstuma é estátua. O melhor é que a música de Cartola continua viva e forte.
Esta frase de Cartola ganha uma força maior quando se sabe que, fazendo música desde rapazinho, só aos 65 anos conseguiu gravar seu primeiro LP. E foram quatro ao todo. Mas seu nome como autor de belas músicas já estava registrado em gravações de Mario Reis, Francisco Alves, Carmem Miranda, Clementina de Jesus, Araci de Almeida, Isaura Garcia, Eliseth Cardoso, Clara Nunes, Nelson Gonçalves e tantos outros. E como Cartola foi importante para o sucesso de tantos. Paulinho da Viola, até então um bancário de nome Paulo César Batista de Faria, lançou-se na vida artística no Zicartola, onde ganhou seu primeiro cachê, além do nome artístico que o consagrou. O nome do restaurante Zicartola era uma fusão do apelido e nome artístico do compositor com o da sua mulher, Dona Zica.
Vejo Cartola também como um grande batalhador. Se compositor e cantor não o sustentava, ia à luta. Trabalhou de pedreiro, tipógrafo e em posto de gasolina. Mesmo já com mais de 50, lavou carros e chegou a trabalhar na portaria de um edifício em Ipanema. Como empreendedor, foi um sucesso em termos artísticos, já que o Zicartola, enquanto durou, foi palco de animadas reuniões de sambistas e pessoal da nascente Bossa Nova, como Nara Leão, Carlos Lira etc. Mesmo sendo Dona Zica uma cozinheira de mão cheia, o casal saiu de mãos vazias. O Zicartola passava por sérios problemas administrativos e tiveram que transferir o restaurante para Jackson do Pandeiro. Mas a vida continuou.
Só nos últimos sete anos de vida Angenor de Oliveira – ela acreditava que o nome dele fosse Agenor, mas ao se casar viu que em seu registro de nascimento haviam colocado um “n” indevido – o Cartola, vivenciou um pouco de fama e sentiu o gosto do sucesso. Até comprou um carro. Um dos fundadores da Estação Primeira de Mangueira, o que escolheu o nome e sugeriu as cores verde e rosa, comprou uma casa em Jacarepaguá. Precisa de sossego, de um pouco mais de tranquilidade para seus últimos dias. E continuou fazendo shows, compondo. Esmorecimento não fazia parte de seu dicionário.
Não preciso falar da qualidade e da beleza das músicas de Cartola, tanto as que fez sozinho como as que foram frutos de parcerias. E teve parceiros dos bons, amigos do peito. Noel Rosa, Carlos Cachaça, Elton Medeiros, Hermínio Bello de Carvalho, Nuno Veloso, Delmo Castello, Zé da Zilda, Nelson Cavaquinho, Heitor dos Prazeres etc. Carlos Cachaça foi seu parceiro de vida toda, o primeiro ainda na juventude e o único em momentos de doenças e privações de Cartola.
Dona Zica e Cartola, na Missa  pelos 70 anos do sambista.
Uma das músicas das mais notórias músicas de Cartola – As rosas não falam – foi composição só dele, por inspiração de sua companheira desde l961 e até o final de sua vida: Dona Zica. A ideia surgiu após comentário de Zica que, após abrir a janela da casa viu que no jardim a roseira já estava florida em tão pouco tempo. Chamou Cartola para ver e, ainda admirada, perguntou por que as rosas haviam crescido tão rapidamente. Cartola disse que não sabia, já que as rosas não falam. Aquela frase ficou na cabeça do compositor que, poucos dias depois a concluiu e a ofereceu à mulher, como um presente de aniversário.
Destaco Cartola também pela sua memorável interpretação da música Preciso me encontrar, do compositor Candeia. É tão marcante esta gravação que, em vários sites, atribuem a Cartola a autoria da música que é, na verdade, do amigo Candeia. Os arranjos para esta música, a maneira de Cartola interpretá-la e a beleza da composição enquanto uma mensagem filosófica fazem com que eu não me canse de ouvi-la: https://www.youtube.com/watch?v=HkW2b0w8bUg
Trinta e cinco anos sem Cartola. Resta-nos sua música e fica também a certeza de que foi um dos maiores dos nossos compositores. Por isso merece ser lembrado, relembrado, ouvido. Por isso retrocedo-me àquele 1980. Tento relembrar daquele dia, da cerimônia de sepultamento de Cartola mostrada em telejornais. Imagens que ganham vida.  Uma semana antes de sua morte, Cartola pediu a familiares que, em seu sepultamento o Waldemiro, ritmista da Estação Primeira da Mangueira, tocasse o bumbo. E isso foi feito. E mesmo que as rosas não falassem, naquele dia sei que disseram um muito obrigado por Cartola ter existido:  https://www.youtube.com/watch?v=V02Zbg-k7PE.

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Guido Heleno é goiano de Anápolis, pioneiro de Brasilia e vive atualmente em Porto Alegre.

sábado, novembro 28, 2015

Luiz Antônio Godinho - Adeus!

Silvana, eterna companheira, e Luiz Antônio naquilo de que mais gostava - cantar!

Adeus, Luiz Antônio! A Deus...


Faleceu hoje, em Goiânia, onde se submetia a tratamento delicado de saúde, meu primo querido Luiz Antônio Godinho.

Nos últimos 23 anos, ele lutou contra males do fígado. Por duas vezes, chegou ao centro cirúrgico, num importante hospital de São Paulo, para submeter-se a transplante – os exames mais recentes desaconselhavam o delicado procedimento médico.

Todos os dias desse “calvário” uma personagem o assistia com zelo e perseverança – sua mulher, Silvana. E na constante expectativa, no inevitável sonho de tudo se resolver a contento, os filhos Mayra e Luiz Antônio Filho. Mas não era só... irmãos e sobrinhos, o velho pai que a cidade e as gerações chamam, com carinho, de Totó, aos 90 anos sempre foi, também, zeloso e dedicado às preces pela saúde de seu primogênito.

Na infância, sob influência de nosso avô, o seresteiro e maestro Luiz de Aquino Alves, Luiz Antônio aprendeu a extrair os sons do violão. A voz marcante e de boa afinação fechava os quesitos que o credenciaram às serenatas e as constantes rodas musicais. E foi dessas rodas que extraí a essência para compor uma canção, musicada pelo amigo José Pinto Neto, estimulada pelos boêmios e amantes da nossa amada cidade – a canção “Sentimento Pirenopolino”, que a sabedoria local logo renomeou para “Manhãs Alegres”.

Ao lado de Luiz Antônio, e feito companheiro leal, cantei canções de rodas boêmias e serenatas. Entre nossos sons de violão e cavaquinho, despertamos as beldades joviais desde os primórdios da década de 60. Muito recentemente, feliz por sentir restaurar-se lhe a voz, Luiz Antônio gravou alguns vídeos (quem manipulava a câmera? Sua netinha de seis anos), tocando e entoando suas preferidas – dentre elas, a minha citada canção, que somente ele cantava com plena fidelidade ao meu texto. Vale dizer que Luiz Antônio foi quem disseminou essa canção na cidade e a tornou conhecida!

Quando escrevi Concerto de Boêmios (Sob o Signo da Lua), pedi-lhe um texto sobre nosso avô boêmio e seresteiro. Luiz Antônio atendeu-me, feliz por experimentar a ocasião de se fazer escritor. Tínhamos planos para novas obras...


Resumindo: nos últimos 40 anos - ou mais – compartilhamos muitas alegrias enriquecidas por acordes e canções, sob o luar mágico de Pirenópolis ou “ilustrados” pelas margens encantadas do Rio das Almas. Juntos, curtimos noitadas várias, sempre cercados pelo cenário maravilhoso da velha Meia-Ponte do Rosário.

Por iniciativa dele, nosso primo Eli de Sá propôs que a Câmara Municipal me fizesse Cidadão Honorário. Mas nossa cumplicidade foi um pouco além. Não há muito, o poeta e pesquisador Adriano Curado, presidente da Academia Pirenopolina de Letras, Artes e Música propôs que meu primo fosse aceito na Academia. Luiz Antônio Godinho foi eleito por unanimidade e, para sua alegria e minha inevitável vaidade, Adriano havia, adrede, proposto e aprovado, numa sessão a que não compareci, o nome de meu pai, Israel de Aquino Alves, patrono da Cadeira que o cantador, ator e ativista cultural Luiz Antônio Godinho ocupou.

O acadêmico Luiz Antônio Godinho foi, enfim, vencido pela teimosia desses males que lhe atingiam o fígado e, há pouco, comprometeram-lhe os rins. Nos últimos dias, sob coma, não demonstrou sofrer – mas também não falava, não cantava, não ria seu riso de cativar carentes – feito eu. Feito todos nós.

Vá com os anjos. E cheio de música, meu primo!

Vai, Luiz Antônio Godinho! Seu sorriso fica comigo!

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Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras e da Academia Pirenopolina de Letras, Artes e Música. 

segunda-feira, novembro 23, 2015

A dor maior

Guilherme com a mana Hariel. Amor imenso, admirável!

A dor maior






Dia puxado demais, esta segunda-feira! Dia de resolver problemas, de “correr atrás”, de renegociar contas e partilhar, viver, sentir por mim e pelo próximo. Coisas triviais, pois, não fosse a dor, esta que pego de empréstimo e não me chega total – mas mesmo assim, como dói!

Já vi muito de jovens morrerem, de crianças morrerem, de pais e mães que choram sozinhos porque a saudade não escolhe lugar, ambiente nem circunstâncias, porque a ausência é uma coisa estranha – um substantivo abstrato que pesa feito concreto.

Eu não estava no instante, mas meu irmão me contou que nosso tio Luizico olhou fixo para ele, pôs-lhe no ombro a mão e disse: “Edmar, perdi meu filho Álvaro, o Alvinho... Ele era da sua idade!”. Era 1972 e a idade era 24 anos. Lá dentro, na sala, o corpo inerte cercado de flores e velas, lacrado num caixão porque acidente de avião é sempre drástico!

Meu avô contava dos filhos mortos de dois casamentos... Muitos amigos escritores calaram suas penas por longos lutos, ou fixaram mensagens desse luto à memória de filhos precocemente desaparecidos. Ah... Todos, com o passar dos anos, colecionamos histórias de mortes e de mortos, de dores e vazios.


Iná e eu, em fevereiro, no Rio.
Nestes poucos dias, menos de uma semana, duas notícias assim sacudiram-me as saudades e os sentimentos – minha prima Iná Meireles, dia 17 passado (dois dias antes de seu aniversário) e o Guilherme, filho de minha amiga querida Heliany Wyrta, irmão da Hariel, poeta promissora.A tia, Iná-Mãe, aos 92 anos, resiste com uma força que lhe é peculiar, ao lado do filho único Colombo (e foi ele quem me falou da força dela ante o infausto desenlace). Mas sei bem do que sofre um coração de mãe, tantas acompanho nesse martírio. 

E ainda mal refeito desse susto, vem-me a história de Guilherme, cujo coração parou justo no Dia de Luta Contra o Câncer Infanto-Juvenil (é isso mesmo?) e machuca fundo os corações da irmã e da mãe – e do pai, vivendo distante, na África de mistérios e outras dores.

Não sei como contar, dizer, confortar. E por não poder dizer, fico quieto, ouço músicas e leio casos vários. Visito meu passado de triste, que o de alegre recolhe-se tímido para não atropelar as lágrimas.

Fico quieto, sim. Envio-lhes beijos e calores, abraços solidários e não me aproximo. Não quero somar minha tristeza às deles.


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domingo, novembro 22, 2015

Omissão e protesto

Omissão e protesto




Publiquei ontem, no blog, a íntegra da palestra da presidente da Academia Goiana de Letras, Leda Selma, sobre o nosso saudoso e agora centenário escritor Carmo Bernardes.
Horas depois, publiquei a minha crônica semanal – Pilotando submarino – que saiu também hoje, na página 8 do DMRevista.
É comum acontecerem muitas curtidas, muitos comentários e também muitos compartilhamentos (no Facebook). Mas desta vez (pensei que fosse por conta do jogo decisivo do Vila Nova em luta pelo bicampeonato brasileiro da Série C), quase nenhuma curtida, quase nenhum comentário, pouquíssimos compartilhamentos (acho que só mesmo os de Zanilda Freitas, Jô Sampaio e Antônio Gomes – que também deixam comentários críticos importantes).
Ao verificar isso, republiquei a chamada para leituras. Talvez meus leitores estivessem, mesmo, ocupados de futebol nessas rodadas finais do Brasileirão e outros certames.
E decidi uma coisa... Não vou mais deixar o blog quase que limitado às crônicas semanais, não. Vou fazer comentários diários sobre qualquer coisa. Espero, assim, estreitar a minha relação com o leitor que gosta do meu texto, com o leitor que discorda e gosta de discutir (é assim que aprendemos, gente!) e o leitor que quer ler, apreciar, contestar, discutir, falar-mal e concluir que o autor é uma anta!
Mas o silêncio ante o texto de ontem-hoje foi barulhento! Por isso as discussões com os poucos manifestantes foi boa, providencial e geradora desta decisão de agitar o blog mais vezes durante a semana.
Vejamos o que me chegou no meio daquela omissão suspeita:
“Excelente crônica! Um desabafo pelos cortes sempre relacionados com a cultura! Por quê? Para os políticos, é melhor mesmo que o povo não seja culto e muito menos politizado”.
O medo é tanto, que ninguém curtiu sua crônica, depois dizem que enfrentaram os milicos nos anos de chumbo. Depois dos milicos em suas gavetas, todos se dizem heróis”.
Foi por isso que publiquei de novo, desafiando as pessoas a se manifestarem. Mas, como se deduz, a covardia é intrínseca, pessoal e generalizada. As pessoas são muito valentes até certo ponto.
Numa das manifestações anti-PT, acontecidas há poucos meses, ouvi na CBN entrevista com uma senhora manifestante - dondoca socialíssima da década de 70 e hoje sexy-avó. "Quero que meus netinhos saibam que a vovó não se acovardou, que a vovó veio para as ruas manifestar-se contra a esquerdização do país, contra a roubalheira dos esquerdistas". Ou seja: quando a direita roubava e os militares torturavam e matavam, a vovó foi morar no “zisteites”, voltou para ser outra vez foto de colunas sociais e entra na fase sexy (agenária) como militante anticorrupção. No momento certo - pensa ela!


E concluo, por hoje, com esta pergunta da atriz, poetisa e, para sobreviver, farmacêutica Zanilda Freitas:
– Por que temos sempre de engolir desaforos?
Assino também a pergunta dela. E justifico:
– Sim, por quê? Somos nós que elegemos, somos nós que pagamos impostos (abusivos e extorsivos) e somos nós que construímos a História, agindo e escrevendo.


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sábado, novembro 21, 2015

Pilotando submarino


Houve um tempo no Brasil em que as pessoas investidas em cargos públicos eram tratadas com respeito. Sempre se soube, porém, que entre aqueles notáveis haviam canalhas, corruptos, sujeitos insensíveis e até capazes de matar (ou mandar matar). É que o poder inebria. E aos que no poder estão compete tomar decisões graves, irreversíveis! E os do poder têm a posse das chaves dos cofres que abrigam o volume do butim... Desculpem! O montante dos impostos, taxas e multas.

Há 51 anos, um grupo de generais egressos da II Guerra Mundial (quase todos formados e forjados no ambiente dos quartéis-escolas do Rio Grande do Sul) procurou apoio financeiro e político entre os insatisfeitos com o presidente da época e montou o golpe que impôs 21 anos de ditadura ao país. Ora! Quando um grupelho de militares proclamou – no grito! – a República, teve de se valer de civis para montar os governos que se formataram na República – e recorreram a antigos ministros do império, nobres que perderam seus títulos mas aproveitam o convite dos golpistas para permanecer no poder.

O mesmo se deu durante e após a redemocratização. Pessoas intimamente ligadas ao poder do arbítrio, e o maior exemplo é José Sarney, desapearam do militarismo e continuaram poderosas nos novos tempos “democráticos”.

Tudo isso eu digo para que o leitor reative os neurônios das análises. As ligações políticas são imprevisíveis para a consciência racional, mas indispensáveis para pessoas assim – feito mariposas em torno da luz. E as surpresas, mesmo com a repetição dos processos, continuam. Nosso exemplo mais recente é a mudança de discurso da secretária Raquel Teixeira quanto à contratação de organizações sociais para administrar escolas. Todos sabemos da incompetência de professores e médicos para administrar unidades de saúde, bem como as barreiras complicadoras das leis rigorosas como a da licitação (rigorosas, mas incapazes de conter muitos atos ilícitos). E milhares de famílias sabem da angústia de ver seus filhos acolhidos em escolas depredadas, sem água ou higiene, infestada de insetos e roedores nocivos.

Mas a secretária da Educação – que este ano absorveu a Cultura e o Esporte, mas que vem desmantelando o que conquistamos nas últimas décadas – posicionou-se ao lado dos movimentos partidários contrários ao governo e, por isso, contrários também a medidas inovadoras capazes de melhorar o quadro. Nas mídias sociais, há vídeos disponíveis da professora Raquel discursando contrária à medida – mas subitamente, ela desembarcou em Goiânia, vinda da Europa, com uma fala favorável ao que ela contestava.

Bem! Não sou contra mudanças de opinião. Mas neste caso o processo ficou um tanto misterioso. Em poucos dias, e são dias recentes, ela suspendeu a participação do Estado numa feira literária, causando constrangimentos a muitas pessoas, inclusive a acadêmicos da Academia Goiana de Letras previamente chamados a proferir palestras remuneradas. Depois, suspendeu o Canto da Primavera (festival de música que acontecia anualmente em Pirenópolis) e o Festival de Teatro de Porangatu.

Motivos? Falta de recursos. Mas bem lembrou nas redes sociais a jornalista Cileide Alves: os xous de sertanejos já contratados também serão suspensos? E suponho eu que alguns deles devem custar bem mais que o Canto da Primavera ou o Festival de Teatro. E não faltam também críticas a outros gastos – como as excessivas viagens da secretária.

Ah! Suspendeu também – ou, como disse ela, adiou – o pagamento do Fundo de Cultura aos projetos aprovados. Dá para acreditar?

***


Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras.

Carmo Bernardes, na ótica de Leda Selma (palestra proferida em 20/11/15, no Centro Cultural Oscar Niemeyer)

Um outro eu que não o vivente que eu tenho sido na vida
grita e exige que eu aproveite melhor o meu tempo, a
tinta e o papel que estruo, e ponha mais uma pedrinha nos
alicerces da obra que os bons estão labutando por
construir.

Daqui do alto da Macambira despejo minha alma pelos
telhados de Goiânia e quanta angústia me abafa quando
admito as tragédias ocultas que há por ai. Tanta coisa boa
que os homens fizeram e tanta miséria que uns tantos
maus fazem.                              


                   
Carmo Bernardes

Poderia, se preciso fosse, resumir as andanças de Carmo Bernardes pela literatura e pelos dias, assim: contista, romancista, cronista, cantador do sertão, de seus rios, chãos estriados, chuvas, estiagens, mitos e folclore. Com a natureza e o homem sertanejo arraigados em seu fazer criativo, poetizou, em sua prosa fecundada pela terra, a fauna, a flora e o Araguaia.  O confronto velado ou explícito do homem com o bicho, da natureza com os parâmetros humanos, do sertão com a realidade urbana, sempre, o tom mais vibrante de sua escritura. Legítimo ‘contador de causos’, conhecedor das superstições e crenças do sertão, Carmo Bernardes, sob o enfoque da linguagem jornalística, deu um caráter crítico e denunciativo às suas crônicas; pelas nuanças poéticas, exalta a natureza, os hábitos do homem simples, simplório, execra a devastação das matas e dos animais e expõe as feridas que a sanha do homem abre na natureza. Por tudo isso, sua obra é um misto de esperança e desalento.

Mas essa superficialidade não seria justa com Carmo e suas circunstâncias pessoais e literárias. Então, precisava, por sua importância, espichar minhas considerações, espionando bem mais o mundo carmo-bernardiano.

Meu objetivo é tentar imiscuir-me nos rastos de Carmo Bernardes. O Carmo Bernardes do sertão, o Carmo Bernardes gente, o Carmo Bernardes homem, o Carmo Bernardes compromissado com o meio ambiente, o Carmo Bernardes exortador dos costumes e valores, reivindicador da dignidade sertaneja, sempre alerta em relação aos problemas do Brasil, às necessidades de reformas, inclusive, a Agrária, o Carmo Bernardes, mistura de carmos e carmas, literato timbrado como regionalista, por obra e graça da influência de suas raízes, de sua sensibilidade de matuto, de seu olhar visionário, revestido de peculiaridades. E o Carmo Bernardes cronista deu-me o tom mais forte para pincelar minha ousadia e perseguir seus rastos, especialmente, na crônica.

Falar sobre o mineirano (mistura de mineiro com goiano) Carmo Bernardes da Costa, o Carmo Bernardes, o Carmo xará de N. Sra. Do Carmo, é, antes de tudo, embrenhar-se pelo sertão, e deixar-se enredar pela voz do trabalhador da roça, o homem rude, de mãos e pés calosos e rachados. Uma voz emanada do solo sertanejo e palavreada na boca do matuto, da gente do campo, de Carmo Bernardes, que só deixou o mato aos 30 anos.

No início da adolescência, ele se enfronhou em aprendiz de artesão, artesão da madeira, por influência do pai, exímio carpinteiro da zona rural, que se guiou, apenas, pelo dom e pela intuição, para exercer tal ofício. Carmo, então, herdeiro do dom paterno, aprimorou-o para a arte de carpintejar.  Tanto que, ainda na adolescência, coadjuvou o pai na construção de currais, carros de bois e armação para as casas, o que muito o orgulhou vida afora. A dupla ganhou fama lá e acolá. Essa, entretanto, foi, apenas, uma das profissões beliscadas. Carmo, inquieto e sempre à procura de novidades transformadoras, foi pedreiro, boiadeiro, carreiro, tocador, cantador, pintor de paredes e protético. Ah! e vendedor de túmulos!

Nascido na Fazenda Santa Rita, propriedade de seus avós, em Patos de Minas, no século passado, 2 de dezembro, portanto, há cem anos, quase no exício da primavera, era filho de mãe tecedeira, e não tecelã, como fazia questão de explicar: Tecelã é operária de fábrica. Minha mãe trabalhava em casa, por conta própria. Plantava o algodão, descaroçava, fiava, tingia ou alvejava a linha, tecia e costurava a roupa. Tecedeira, portanto”.

Os pais, sem escolaridade alguma; todavia, o gosto pela leitura foi instigado, ainda em Patos de Minas, pela mãe, dona Sinhana, que lia muito, por prazer e por avidez de conhecimento. Dizia Carmo que o avô, raizeiro, era o dono dos livros; ele os adquiria, muitos, de medicina, pois precisava lê-los para praticar o charlatanismo, já que produzia e prescrevia raizadas e garrafadas para os males dos cafuçus precisados.

Carmo Bernardes e a mãe liam juntos e trocavam impressões sobre a leitura.  Ela, com a sabedoria apreendida nas lições da vida, injuriava-se com a literatura que desrespeitava o povo da roça. Ele a endossava, pois também sentia, através de sua ótica crítica, embora ainda um adolescente, que escritores ilustrados, oriundos da zona urbana, tratavam o homem do mato, o caipira, chistosamente, como se seres de outra matéria, ou “bichos” falantes. Uma literatura de conteúdo errôneo, carente de informações reais, assim a entendiam mãe e filho, e lamentavam tamanho desacerto. Carmo Bernardes carregou essa mágoa sempre. E mostrou-a, ainda viva, em entrevista ao escritor italiano, Giovanni Ricciardi: “Érico Veríssimo chegou a confessar, na obra Solo de clarineta, que, até um determinado período da vida, ele não emprestava ao trabalhador da roça, o homem rural, rústico, nem raciocínio”.

         Aos seis anos, migrou com a família para Formosa, e deixou, para trás, a infância e a adolescência; em 1927, chegou a Anápolis, e, anos adiante, descobriu-se com o dom do jornalismo; ousado, assinou artigos no pequeno jornal, A Luta, e na Revista Imprensa; nessa ocasião, acumulou as funções de tipógrafo, editor e repórter. Ah! e distribuidor de jornal. Em 1959, fez pouso definitivo em Goiânia; seu objetivo primeiro, ser funcionário público, o que, realmente, aconteceu; porém, cinco anos depois, denunciado como subversivo/comunista, perdeu o emprego na CELG e rumou para o jornalismo, no Jornal Cinco de Março, órgão contestador e muito visado. Carmo destacou-se pela elaboração dos textos e pela correção gramatical, o que, anos depois, despertou o interesse do jornal O Popular, e lá, escreveu até o resto da vida.

Sua inserção na carreira literária, em 1966, trouxe à luz o livro Vida Mundo, com 15 contos. Nele, o passado abarca suas estripulias de caçador, de pescador, de bravo homem do sertão, que não teme bicho, mas pela-se de medo de assombração; o homem em conjunção com a natureza, o mundo de mato e de trabalho, também do Carmo, tudo isso desabrolha, nas pequenas narrativas, materializadas por suas mãos laboriosas e mente sempre em ebulição criativa, primeiro no papel, depois na fiel máquina de escrever, produzindo narrativas ricas e tocantes, que vão da densidade à delicadeza, da tristeza à ira, do humor ao dramático, da dor de viver, à morte libertária.

Carmo Bernardes, autodidata, estudioso, pesquisador, curioso, dono de uma cultura universal, sem atavios academicistas (não completou o curso ginasial), adquirida nas leituras, nas vivências e convivências com o homem roceiro, com o homem culto, com os ensinamentos do cotidiano, em suas buscas e achados; com a maior naturalidade, passava da linguagem coloquial, campeira, à linguagem culta, com um estilo elegante que se destacava pelo respeito às normas gramaticais (queimou quase toda a 1ª edição de Jângala – complexo do Araguaia, devido aos erros nela contidos). Para Carmo Bernardes, duas linguagens respeitáveis: a culta e a sertaneja, cada qual no espaço que lhes concedem as circunstâncias.

Em toda a sua obra, a palavra é manejada com acuro, com fluidez e certo ludismo, o que dinamiza e apresa a atenção, pois a palavra recebe espaço, movimento e vida, na medida certa da contextura. Não economizava figuras de estilo como a hipérbole, a sinestesia e as divertidas catacreses. Observador, captou os meandros da alma do homem sertanejo, conhecedor que era de sua natureza. Como um fotógrafo, retratou o interior goiano, as belezas do Cerrado, do sertão da cabocla e do tal chapéu atolado. E indignava-se com a falta de percepção do próprio homem da terra para essas lindezas privilegiadas por tanta exuberância natural, que tanto o maravilhavam. Carmo tinha razão: só os forasteiros deslumbravam-se com toda aquela riqueza de cores, de sons, de voejos, de cantoria de águas. Os nativos só se focavam nas plantas medicinais e no trabalho duro, sob sóis de cristas de lavas que os ensopavam.

Carmo Bernardes questionador, cutucador, transformador, desejoso de um mundo sem desigualdades e sem injustiças sociais. Se esse mundo não fosse modificado, ele o faria, como escritor, sonhava, na inocência do adolescente, embora adolescente possuidor de uma consciência cidadã revoltada com a vida miserável do homem rural, pois já percebia a existência de um Brasil partido, com fronteiras desumanamente demarcadas: o Brasil urbano e o Brasil rural, que instituía a intrigante distância e desconhecimento recíproco entre ambos. Daí, sua vontade de escrever para apontar e corrigir as discrepâncias que tisnavam a realidade; na concepção carmo-bernardiana, a cultura legítima do povo é aquela que está no povo, que vem do povo”. E, como arremate: “Classe dominante, burguesia trabalham essa cultura e não, criam cultura.

Carmo Bernardes de tantas faces: pescador, caçador (“não gostava de matar ser vivente à-toa, caçava porque gostava de comer arroz com passarinho”. Realmente, um trivial prato da culinária do sertão); Carmo Bernardes ativista ecológico, amante e defensor da fauna, da flora, do Cerrado, dos rios, em especial, do majestoso Araguaia; Carmo Bernardes subversivo, comunista, perseguido pela Ditadura (nessa época, afirmava: “Falar, agora, é um risco. Mas é um testemunho necessário”), fugitivo, relegado à clandestinidade, refugiado na Ilha do Bananal. Carmo Bernardes daquela voz telúrica, palavreada na boca do matuto, e cravada em sua voz literária. Carmo Bernardes escritor de variadas experiências e convivências e que, como disse a crítica Nelly Alves de Almeida, integrou o grupo que “renovou a literatura brasileira, com sua obra personalística”.

Mas Carmo, sempre que o momento se fazia propício, tinha um desabafo, com panca de protesto, na agulha da língua. E Giovanni Ricciardi, mais uma vez, foi todo ouvidos quando Carmo lhe disse que não “criava cultura”, que sua literatura, que custou demais da conta a ser reconhecida, era cunhada no que viu, comeu, partilhou, no sentimento do povo que trabalhava duro e sofria muito. E, sem meias palavras ou digressões, foi categórico: “A literatura que se fez em Goiás até mim, era literatura de cúpula. Alguns regionalistas, mesmo talentosos, como Bernardo Élis, não tinham nenhuma vivência do mundo rural, não sabiam nada, não conheciam o segundo Brasil, então, a obra deles é eivada de informações errôneas sobre a vida e as coisas da natureza. E era esse o móvel que me impulsionou a fazer literatura: corrigir essas distorções. Minha literatura nem era considerada, passei muito tempo assim no escanteio, jogado pra lá, sem que me considerassem literato, chegaram a escrever que minha literatura era literatura de caipira, até que pude sair e minha literatura ser reconhecida lá fora, primeiro no Rio de Janeiro”.

         O Carmo Bernardes cronista, cujo exercício da crônica incitava-o a praticá-lo com entusiasmo, quase como um deleite. Eram muitas, escritas no período de 1966 a 1969, várias já publicadas em jornais; reuni-las em livro, mais que uma sugestão, uma decisão importante, tomada pelo amigo, editor e livreiro, Paulo Araújo, quando Carmo protegia-se dos rancores da Ditadura, em seu refúgio, às margens do Rio Araguaia, carente do aconchego familiar e carente de saúde. Ainda no prelo, os livros, Rememórias (109 crônicas, 1968), e Rememórias II (23 crônicas e dois contos, 1969), foram vendidos e o dinheiro conseguido, repassado ao seu autor.

Essas obras expõem o dia a dia vivido e revivido por Carmo, também em Goiânia, canalizam lembranças sempre acordadas, e forjam uma realidade que funde passado e presente, legado da própria realidade do autor. Na Crônica 80, de Rememórias, com seu jeitão espontâneo e o linguajar meio tosco do homem da roça, conta: “Em 1928 tiramos uma boiada das beiras de Anápolis e andamos até Bonfim. O velho inclinou no lugar, de volta a Formosa, arribou os cacarecos no lombo dos burros, viemos dar o tom no Capoeirão, hoje, Damolândia. Não quis mais lidar com gado, retornou a sua carpintaria, e eu rente. Data daí o meu embarque na leitura até o empazinamento. Panhei a lombriga do jornalismo em 1940 quando fui agente recenseador”.

 Mesclando contos às crônicas, Quadra da Cheia: textos de Goiás, seu penúltimo livro, traz um relato interessante do autor, que ostenta um certo orgulho de si, como se vaticinasse um futuro mais próspero, na crônica Cafuçu na cidade: “Saí da roça para a cidade numa época ainda em que tudo era bem mais fácil. Nos últimos anos da Guerra. 1940, corria muito dinheiro e mesmo eu sendo um cafuçu dos legítimos, tinha muita instrução em comparação com a média dos roceiros”. E dizia, de forma simples e direta, que veio para a cidade porque escrevia “melhor que os de lá”. Selva – bichos e gente, a última obra de Carmo Bernardes, publicada postumamente, em 2003, mais um livro de crônicas. Nele, destacam-se os bichos; os humanos atuam como personagens secundários; e, em tom zombeteiro, critica os que desprezam o linguajar simples da zona rural, os que se definem como puristas da língua, ignorando a língua do povo, seu verdadeiro dono.

É, o capiau Carmo Bernardes chegou à cidade grande, com seu ar despretensioso, mas convicto do que queria; matutou aqui e ali, sentiu o desejo de mudança, atraído pelo toque da modernidade, e desatou todo o aglomerado de inspiração e criatividade (que, diga-se, jurava não ter), estocado durante décadas, que construiu a história humana e literária desse regionalista mineirano do pé rachado, imortal da Academia Goiana de Letras, ganhador do importante prêmio ‘Casa de las Americas’, de Cuba, em 1991, com o livro La resurreccion de un cazador de gatos, conjunto de contos selecionados pelo próprio Carmo Bernardes, nos livros Vida Mundo (1966), Reçaga (1972) e Idas e vindas (1977), além de dois contos inéditos.

O roceiro escrevinhador, Carmo Bernardes, desbancou a arrogância dos escribas da cidade grande, e, numa linguagem vibrante, escreveu o famoso romance Jurubatuba, em que a poesia emposta a voz, dá cor, graça, beleza, humores e, ainda mais, magnetismo ao campo, evidenciando imagens marcantes que contrastam com a vida de sombras do sertanejo. Um duelo entre a fantasia e a realidade. Uma parceria entre a poesia e a desolação.  Uma história de herói conquistador, incauto e um tanto patusco. Gilberto Mendonça Teles diz: “Jurubatuba é portador de uma linguagem que lembra um certo preciosismo de Carvalho Ramos, o aspecto arcaizante de Guimarães Rosa ou a beleza vernácula de Graciliano Ramos. Mas é acima de tudo a linguagem de Carmo Bernardes. É o seu estilo”.

O mineiro goiano nunca abandonou seus costumes, nem o acervo cultural do sertão, onde ainda se perpetuam ditos populares, lendas, crendices, manias, superstições, características do estilo sertanejo do Brasil Central. Mesmo morando na capital de Goiás, jamais apagou as marcas de capiau que sua origem lhe entranhou. Sempre o mesmo Carmo, na simplicidade dos gestos, na singeleza do linguajar, no caminhar displicente, no trajar despojado. Simplório, mas não, bronco. E o calor do cumprimento aos amigos, conhecidos e desconhecidos, o abraço sempre festivo, o riso acolhedor, sempre a sorrir boas-vindas? A ironia, às vezes, mordaz, por outras, como só a sabedoria popular é capaz de sutilizar, sem escondê-la, ao contrário, escancarando-a na própria sutileza, outra marca do Carmo.

Na cidade, apreciava os bailes, gostava das paqueras, dos amores cheios de promessas, das promessas cheias de vontades, das mulheres cheias de alegorias e acolchoamentos físicos que atiçavam seu assanhamento. Era muito saidinho com as mulheres.

         Se na cidade, ou na roça, não dispensava as conversas com passantes, conhecidos, amigos; de tal gosto, não prescindia, e sempre dava um jeito, como dizia, de bisbilhotar um pouquinho mais sobre isso ou aquilo, aquele ou aqueloutro, pois se preocupava sobremaneira com o homem sofrido também da cidade, com a vida difícil e explorada da comunidade rural, vida imposta pela precariedade e insalubridade das matas e cercanias do Mato Grosso Goiano, onde doenças dizimavam seus habitantes, à vista dos poderosos, cujo olhar, mais grosso que o mato, condenava-os a uma condição de iminente perigo, pois o risco de morte era o vizinho mais próximo deles.

Entretanto, as folias nas fazendas, onde rolava aquela cachaça supimpa, onde a alegria peralteava sem cerimônia, e a música instigava os foliões à dança, salvavam, temporariamente, esse acabrunhamento de Carmo, que não dançava, porém, divertia-se a valer, feito criança em um mundo de cores e movimentos.

Em minha leitura, isenta de arquétipos técnicos ou críticos, já que nunca fui crítica, nem amadora, nem de ofício, apenas, leitora, vi (como, naturalmente, qualquer leitor atento viu), com nitidez, que, nos contos, Carmo deixa impressos o matiz e o formato do tradicional contador de causos, com enfoques na rotina do roceiro, também partilhada por ele, em suas vivências, idas e vindas ao sertão, e, também, nos flagrantes do cotidiano citadino. Nas crônicas, marcas do seu engajamento político, das denúncias alusivas à condição humana do trabalhador rude, da destruição da natureza, do desrespeito ao meio ambiente (destruição de matas, matanças de animais), dos caminhos e atalhos das transformações em vigência ou iminentes em terras goianas. Nos romances, toda essa realidade, travestida de ficção, embora sem nunca perder o tom de veracidade.

Dezoito livros publicados. Uma obra toda de cunho humanístico, que aborda o confronto do homem com seus conflitos, que reproduz os hábitos, falares, mitos e tradições do sertanejo, que tem raízes na infância e adolescência do escritor, histórias, na maioria, encenadas no sertão, onde o autor viveu, universalizada por sua ampla visão de mundo, sempre incomodado com os intrincados da vida, sempre buscando descobrir seu genuíno sentido, e, permanentemente, atento às próprias transformações interiores, e às exteriores, preocupado com os grandes desafios que circundavam o mundo, o mundo do progresso, das transformações, o mundo que ele sonhou, um dia, no limiar da adolescência, melhorar.

Carmo deu um jeito de arranjar uma Macambira no céu, construiu uma casinha modesta de madeira, pintou-a de verde, e, no dia 25 de abril de 1996, mudou-se para lá, deixando Goiânia sem seu ilustre filho adotivo. Intuí, de pronto, que ele queria integrar a confraria das estrelas, na copa do sem-fim, para ratificar sua imortalidade. E não duvidei que, como quem nada queria, achou um sertão celestial e, nele, “o cotovelo do rio”, “a pestana do mato”, uma caçada, alguma pescaria... E, creio, já tocou piston, viola, saxofone, participou de bandas, compôs e cantou modinhas, puxou conversa com os flutuantes e xeretou-lhes a vida. Ah! e mesmo que eu tente “lacrar o beiço”, desconfio que já se engraçou por alguma camponesa estelar.



              RIO CRISTALINO


Descobridor do sertão de Goiás,
Minerador das antigas gerais,
Carmo, filho de Goiás, mineiro de Goiás,
Cascos de boiada levantando poeira
no meu coração. E o coração leva
tempo demais, e a solidão castigando
os quintais, Carmo saudades demais,
te esquecer nunca mais, Rio Cristalino
esperando a chegada do seu caminhão.
Quando o galo cantar, deixa o barco correr,
peixe bom pra pescar, te vejo feliz,
Natureza no olhar, voa que nem passarinho.


Letra de Nars Chaul e Isanulfo Cordeiro, música de Fernando Perillo.



Leda Selma, presidente da Academia Goiana de Letras.



sábado, novembro 07, 2015

Os esquecidos da Educação



Alunos do terceiro ano (Médio) do Colégio Vasco dos Reis, da Polícia Militar, na homenagem a José J. Veiga.

Os esquecidos da Educação

Colégio Vasco dos Reis, da Polícia Militar, homenageia José J. Veiga (*)

José J. Veiga, pela pena de Almir
Eli Brasiliense
Pedro Celestino da Silva Filho, político e poeta.
Bernardo Élis
Carmo Bernardes, o mineiro mais goiano

Meus escritos mais recentes acerca dos escritores goianos nascidos em 1915 não têm fim... Sempre imagino que o assunto se encerra, mas sou surpreendido com novos fatos e os trago aqui novamente. E nas últimas duas semanas as novidades foram muitas, como a mesa-redonda na Academia Goiana de Letras em que discorremos (Prof. Rogério Santana, da UFG, e os acadêmicos Miguel Jorge, Aidenor Aires, Moema de Castro e eu) sobre os quatro por mim listados – José J. Veiga, Eli Brasiliense, Bernardo Élis e Carmo Bernardes. Mas faltava um e o lapso inicial foi meu: Pedro Celestino da Silva Filho.

Eurico Barbosa, destacado membro da AGL, notou a falha e de imediato foi apontado para discorrer sobre o saudoso acadêmico e ex-presidente da Academia. Celestino (27/10/1015) é o nosso quinto centenário entre os grandes escritores de Goiás e mereceu belíssima – e emocionada – palestra de Eurico Barbosa, realizada na quinta-feira, 5 de novembro.

Na semana anterior, um fato triste – e vergonhoso – envolveu os quatro centenários.
Lêda Selma, presidente da AGL
Parêntese: aquele meu equívoco inicial foi marcante. Quem se lembrou dos centenários fixou o foco nos quatro citados. E assim fizeram também os organizadores da Feira Literária de Pirenópolis, a Flipiri – evento a que não sou simpático por razões sólidas que não vêm ao caso, agora. Pois bem! Caberia ao Estado liberar uma verba de cem mil reais, mas exatamente no dia de abertura do evento um emissário chegou à velha cidade para informar que o dinheiro não saiu. A feira se fez timidamente, os quatro escritores mobilizados para discorrer sobre Veiga, Eli, Bernardo e Carmo não puderam falar. Seriam palestrantes Bariani Ortêncio, Gilberto Mendonça Teles (que já estava em Pirenópolis, vindo do Rio de Janeiro), Leda Selma e Miguel Jorge– todos da Academia, da qual Leda Selma é presidente. Atente-se que apesar de ter partido de mim a iniciativa de homenagearmos nossos centenários, a SEDUCE, por razões muito especiais de sua titular e que não me cabe saber, decidiu alijar-me do processo. Fecho parêntese.

Outra entidade, a Academia Pirenopolina de Letras, Artes e Música tem sessão marcada para o dia 12 de dezembro para homenagear os Escribas Centenários dos Pireneus: José J. Veiga nasceu numa fazenda entre Pirenópolis e Corumbá – e nesta foi registrado; Bernardo, corumbaense (as duas cidades distam apenas 17 km e as famílias tradicionais das duas cidades têm as mesmas raízes que, no dizer de Bernardo, fixam-se historicamente na antiga Meia-Ponte), Eli Brasiliense, de Porto Nacional, viveu alguns anos em Pirenópolis, onde foi professor, secretário da Prefeitura e dono de gráfica – e ali se casou. E Carmo Bernardes, nascido em Patos de Minas, trazido para Goiás nos primeiros anos de vida, auxiliava o pai em trabalhos nas fazendas nas regiões do Rio das Almas desde as nascentes (Pirenópolis) e todo o Vale do São Patrício. Ou seja, todos tiveram um tempo de vida à sombra dos Pireneus.

E na última sexta-feira, 6 de novembro, o Colégio da Polícia Militar Vasco dos Reis, por iniciativa da professora Viviane e a cobertura do corpo diretivo, envolveu o alunado na produção do XI Mostra de Vídeo realizada pelo educandário. Desta vez, o tema foi José J. Veiga. Estive lá, assisti a abertura, com apresentações artísticas dos alunos e expressivas manifestações de admiração à obra do goiano que, em toda a nossa história, mais distante se projetou – o autor de A Hora dos Ruminantes, nascido José Veiga e que incorporou um J. (jota-ponto) na construção de sua “marca literária”.

Rodovia Corumbá-Pirenópolis. A placa sumiu, a Agetop não a repõe.

Mais uma vez emocionei-me! Das mais de mil e cem dentre as nossas escolas públicas, somente o Colégio Vasco dos Reis, uma das unidades do Colégio da Polícia Militar de Goiás, lembrou-se de um dos nossos escritores centenários: escolheu Veiga e... desobedeceu a cúpula da Educação do Estado! Para estes, nossos escritores nada valem.



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(*) O nome inteiro do estabelecimento é Colégio da Polícia Militar Polivalente Modelo Vasco dos Reis. Seu Diretor é o Tenente-Coronel Marco Antônio Ferreira e a Vice-diretora é a professora Cléa Regina Muniz de Brito. No corpo diretivo temos também a Tenente Waleska Farias - chefe da Divisão de Ensino - o Capitão Prado é o subcomandante e Fábio Vitorino é chefe da Divisão Administrativa. À professora de arte Viviane Bolba coube coordenar a mostra.  
Convidados: Coronel Antônio - comandante da Academia de Polícia Militar de Goiás; Ricardo Veiga, sobrinho do homenageado; maestro José Eduardo de Morais, representante da Secretária Raquel Teixeira, da Educação, e este autor.


Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras.