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sexta-feira, junho 30, 2006

A chuva molhou meus olhos

Corria normal o dia, quinta-feira na primeira semana de inverno, neste Paralelo 17º de latitude Sul, mais precisamente em Goiânia. Às quatro da tarde, senti uma dor persistente no lado externo do pé esquerdo. Quis voltar para casa, não pude. Desvencilhei-me do compromisso por volta das cinco e meia, mas a tarde caía rápida, com a dureza de densas nuvens acinzentadas, permeadas do vermelho que antecede o crepúsculo nestes tempos, no Planalto Central.

Faltavam, pois, longos minutos para o crepúsculo, mas a tarde se recolheu, fazendo nascer mais cedo a noite sem estrelas. E um vento frio agitava as copas das árvores, as que ainda não foram descobertas pelas serras implacáveis dos zelosos jardineiros da Prefeitura. O trânsito flui normalmente e, lento, um velho carro vende pamonha pelas ruas.

Chove. Coisa inusitada, em pleno São Pedro. Lembro do poeta Dionísio Pereira Machado, que se regozija com a chuva de inverno. Diz ele, como bom sertanejo do cerrado, que essa chuva vislumbra o encaixe de cigarras embriões nas cascas das árvores e possibilita, então, seu canto alegre quando chegar a Primavera.

A noite promete frio, mas faço algo tão incomum quanto a chuva no inverno do Planalto: vou ao cinema. Incomoda-me, na Alameda Ricardo Paranhos, um longo alinhamento de cones plásticos, tentando delimitar uma pista para caminhantes noturnos. Contam-me que a Superintendência Municipal de Trânsito pretende mexer na estrutura viária da Alameda, reservando uma pista para a prática esportiva. Um atentado ao fluxo regular de veículos, e totalmente desnecessário se nos lembrarmos de que, a duas quadras, está a pista do Parque Areião.

Mais uma excrescência da administração urbana. Novamente, mudanças radicais no quotidiano da cidade, complicando a vida do cidadão. O que mais nos falta, no espaço e na competência da SMT, são placas indicativas, mas o que se pretende, mesmo, é complicar para ser lembrado. Vejamos: mexe-se no sentido viário das ruas 103 e 105; ou seja, inverte-se de novo o fluxo. Para quê? E, já que perguntei, porque não se pode atravessar a Avenida T-4 no cruzamento com a Rua T-62? O alcance à Praça T-25 permitiria fluir até a Avenida 85, mas criaram-se obstáculos para impedir a travessia. E não se consegue entender a parafernália.

Enfim, a sala do cinema, no xópin. Há quantos anos não entro ali? Nem lá, nem em qualquer outro; não gosto daquele ritual de esperar, entrar na fila, comprar o ingresso, a pipoca... Mas fiz tudo isso, com o prazer de pagar meia-entrada porque atingi a maioridade plena e tenho alguns privilégios. Não concordo com meia-entrada, porque ocuparei o mesmo espaço de qualquer adulto comum, mas é a lei. E também não concordo com as alíquotas dos impostos, mas a lei manda. Fazer o quê? Tenho de pagar impostos, furar fila e pagar meia-entrada, após dois chopes enquanto esperava.

E então, com os pensamentos mais leves e uma ligeira fome, volto à casa. Confiro os bares, estão vazios. Não, não foi a chuva, que esta foi breve e fraca; o friozinho que se vê nesta noite, quinta-feira véspera de grandes jogos pela Copa do Mundo, a perspectiva de um sábado mágico para enfrentar a França...

Inevitável sonhar. Confiro recados no computador e as chamadas por telefone.
Pesquiso uns papéis de urgência, confiro algumas fotos, ouço um cedê de boa música brasileira (um doce poema cantado) e me proponho a dormir feliz.

Pelos recursos da informática, espalho poemas e esperança. Mando flores em palavras e peço bênçãos confortantes, renovo alegrias, evito as más notícias, essas que nos perseguem impiedosas.

É noite, madrugada. E o dia, eu sei, há de acordar mais tarde. Feito eu.

quarta-feira, junho 28, 2006

Estação das águas

Quando as nuvens voltarem,
cuidem para que o céu se proteja
e um espaço miúdo se conserve
para eu ver a Lua.

Talvez uma estrela
imprevisível
transluza suave e me traga recados
impensados.

Quando essas nuvens voltarem assim,
na Lua cheia,
deixem que eu abra meus olhos
apesar dos castigos.
Eu tenho uma leve tendência
para ser feliz
em noites de Lua,
tão poucas nos tempos de chuva!

Deixem-me descobrir
novos cantos
num clarão de Lua,
por mais efêmero.


Mesmo quando as nuvens voltarem.

sábado, junho 24, 2006

Copas, Conselho e Cultura

No céu quase inteiro, total azul; miúdas nuvens-carneirinho arrebanhavam-se no horizonte sul. Manhã de alegria na semana mal começada, a cidade em amarelo-ouro teimoso e feliz: esperança madura.

Pensei, curioso: quem deu à esperança a cor do verde? Esvai-se o verde, porque é junho e é seca no Planalto Central, pátria do cerrado. E o cerrado é marrom, observou Gil Perini, o contista. Busco o verde e ele é soja no chão do outrora cerrado, e a soja cai de preço, desespera o produtor.

Lembro as estradas bloqueadas pelos fazendeiros: queriam perdão de dívidas. Conseguiram, é claro. Um soldado da polícia, em Caldas Novas, orientou-me a escolher Ipameri para chegar a Goiânia e a viagem esticou-se: fiz duzentos e sessenta quilômetros, cem a mais.

Fazendeiros podem. Empregados de fazendeiros, não. É a democracia das duas medidas, a mesma que já se fez de omissa quando taxistas linchavam suspeitos. Esses podem. Depois, quando os vândalos sem terra quebraram a Câmara Federal, os mesmos que estimularam a ação dos fazendeiros gritaram sua revolta no púlpito do Congresso. Fazendeiros podem.

Volto ao verde e questiono a esperança. O verde está também na copa das árvores das ruas que os homens vestidos de verde, assalariados do departamento de Parques e Jardins de Goiânia derrubam a esmo. Goiânia perde rapidamente suas árvores desde o começo do atual governo municipal, e de nada adiantam as queixas populares. A Creche São Domingos Sávio, na Avenida Couto de Magalhães, perdeu quase todas as árvores de seu pátio, e a creche é da Prefeitura.

Verdes estão todos os canteiros onde antes havia flores de todas as cores. Cadê nossas petúnias bicolores? O prefeito não gosta de flores. Mas nós, os pagadores de impostos, gostamos. E pensar que se dizia que em Goiânia a Primavera tem doze meses!

Volto ao céu azul, outro símbolo de esperança e liberdade. Azul como o campo central da Bandeira Nacional, agora tão popularizada que está em todas as paisagens, tremulante em cada partida, agitada em cada grande jogada de Ronaldos e parceiros. Ordem e Progresso... As pessoas não lêem? Deviam.

Sem ordem e sem critério, a mesma prefeitura de Goiânia sofreu a vergonha de ter uma conferência de cultura anulada e seu Conselho Municipal de Cultura foi considerado, pois, pela Justiça, ilegítimo. Tudo porque nesta gestão municipal reinstalou-se o mau hábito do tempo do arbítrio de fazer as coisas sob o interesse dos que detém o mando e, obviamente, à revelia da Lei.

Sabemos que eles, os que detêm o mando, não se importam com essas banalidades legais. Mas deviam dar atenção à dignidade daqueles que aceitaram integrar esse Conselho. São artistas e intelectuais de boa-vontade, gente disposta ao trabalho mal remunerado de gerir a política de cultura. Mas é estranho também que esse Conselho seja presidido pelo Secretário de Cultura, vício também herdado dos tempos de arbítrio e que, num momento de insegurança, a gestão anterior definiu assim, sem pensar que fazia o gosto do atual secretário. Um Conselho que, em lugar de fiscalizar, só tem atuação para referendar atos do titular da Pasta.

Como se vê, apesar dos quatro-a-um, apesar da alegria nas ruas, da natureza benfazeja e das nossas esperanças, Goiânia caminha para a tristeza. E ainda surge um áulico a criar poema medíocre pedindo lagos artificiais.

Que venham, sim, as árvores e as flores. E o respeito às leis e à ética.

terça-feira, junho 20, 2006

Proseando com o poeta

Salomão Sousa escreveu um belo poema, entre tantos outros belos, sob o título “Dar-se aos pregos e às léguas”. Deliciei-me das fincadas e andanças do vate da histórica cidade de Bonfim (que o mau-gosto de uns poucos, há mais de meio século, transmudou em Silvânia, sem que a bucólica cidade perdesse o encanto). Ele encerrou o poema com essa estrofe:

“...
perder-se para nascer

nas flores e nos olhos da terra
não ser o ferrolho inchado
o caruncho na madeira das íris

Falei-lhe do meu encanto, e ele retrucou, em mensagem fraternal: “As nossas viagens são as mesmas, com as mesmas íris e o mesmo sol, o mesmo terreiro de chão goiano. O difícil, para nós, é abrir porteiras para fora de nosso rincão. Vamos manter viva a nossa infância, senão perdemos a nossa rebeldia”.


Perdemos, não, poet’irmão! Não a perdemos, pois exercemos essa teimosia de menino birrento, daqueles a quem os castigos da sobremesa não atingem, porque havia os quintais de múltiplas frutas, nem o cerceamento da liberdade por algumas horas, porque os córregos da meninice estavam ali, “de grito” (*); a toxina dos defensivos ainda não exterminara as piabas que colhíamos em anzóis miúdos, em linhas curtas de varas de bambu. Nosso grito de pirralhos embirrados ecoa não no espaço entre paredões, mas na lonjura do tempo que enevoa nossos cabelos e esturrica nossas peles.

E que revéis, somos nós! Crescemos sob o tacão de um regime duro e cruel, mas não esmorecemos; não nos dobramos, como os caniços que nos valiam por varas de pesca, mas não enraizamos tanto que a ventania nos arrancasse do chão benfazejo. Altivos e livres, fechamo-nos por horas em leituras perigosas, mas capazes de nos fazer cidadãos. Cidadãos poetas, porque sem poesia não há liberdade (que o digam Agostinho, de Angola; José Martí, de Cuba; Federico G. Lorca, o espanhol; e Castro Alves, o nosso).

Vimos Godoy Garcia, José Décio Filho, Ieda Schmaltz e Afonso Félix de Sousa a gritar por nossa gente ante o arbítrio; vimos José J. Veiga e Bernardo Elis a prosear coragem na escuridão ante as idéias não permitidas. Deles herdamos a bússola dos inquietos, dos insatisfeitos e insurretos.

Temos sangue, Salomão, para a justiça decantada, sonhada e mal exercida; sangue que tinge nossos solos e põe sal no nosso suor de andarilhos das letras. Deixamos que os dias polvilhem de lembranças nossas almas doces e ingênuas, mas bravas o bastante para não se curvar. Temos as cores das areias da Serra Dourada, o vigor das pastagens na vertente do Piracanjuba e o calor termal da Serra de Caldas, acalentado em serenatas de Pirenópolis e dourado de pôr-do-sol de qualquer paragem Goiás. Comemos pequi e genipapo, ingá e guapeva; bebemos cachaça quilombola; dançamos pagode de roça, dançamos catira e, se deixarem...

Bem, se deixarem, contamos histórias de medo ao fogo do borralho, em noites de chuva. Mas não deixamos, não mesmo, de cantar poesia. Como não se fazer poeta sob o céu deste Planalto do cerrado, siô?



(*)Nota do autor:. “De grito”: expressão do sul de Goiás para dizer “é logo ali”.

domingo, junho 18, 2006

Rondó de menino pobre

Era caldo de manga madura
correndo amarelo no peito pelado.
Era bola de meia no meio da rua
ou a tarde de sol na beira do córrego
– era assim que eu era criança.


Eram tardes inteiras fechado em casa,
a cara no meio da meia-janela,
vendo passar devagar pela tarde
boiadas inteiras de bois curraleiros
– era assim que eu era criança.


Era um tal de acordar muito cedo,
beber leite quente e pedir a bênção à mãe,
correr para a escola e dar a lição todinha de cor
ante a brabeza de Dona Vanda professora
– era assim que eu era criança.


E quando chegava o tempo das chuvas,
as ruas desnudas perdiam o pó e tudo era barro.
Eu fazia barquinhos de jornal e construía pontes
sobre os rios miúdos e torrentosos
– era assim que eu era criança.


Não havia televisão nem brinquedos eletrônicos,
astronauta era mentira de livro de ficção.


Nos tempos de mais calor, eu caçava vaga-lumes
na escuridão das noites de minha infância
– era assim que eu era criança.


Um dia, cresci depressa.
Criei barba, falei grosso, troquei as calças curtas
por roupas de gente grande.
A escolinha se acabou e aprendi contas maiores.
A língua mudou de jeito, diziam “rau ariú, um beijo,
ai loviú” – virei rapaz duma vez.


Não mais o cascalho das ruas, não mais.
Não mais a lama das chuvas,
futebol no meio da rua, coalhada antes de dormir.
Não mais brincadeira de pique, estilingue,
finca ou carrinho; não mais banhos de córrego
nem medo de chinelo velho – chantagem feito ameaça
dos pés para as mãos de mamãe.


Hoje, a barba grisalha e os filhos não mais crianças,
dói fundo no fundo do peito
a saudade do menino magricela
– era assim que eu era criança.

(do meu livro Sarau; Goiânia, 2003)

sábado, junho 17, 2006

Do capelo ao sabre

Em hebraico, a palavra é “quipá”, que alguém haverá de escrever com K e, provavelmente, com um H no final; mas os caracteres judaicos não são os nossos; logo, escrevo como se pronuncia. Não sei os caminhos da palavra, mas deve ter passado pelo grego, pelo latim outras línguas até chegou a nós como quepe, capa, chapéu e ainda capelo. Capelo é muito solene: diz-se de capus (mais uma) de religiosos e do gorro com que se cola grau universitário e, também, grau de doutor.

Sabre? Bem, este eu não quero comentar: traz amargas lembranças...

Apesar de jornalista e bancário, jamais me descuidei da condição de professor, por tão pouco tempo exercida. Já falei aqui sobre a excelência (na época, diga-se bem) dos colégios da Polícia Militar. Meu filho Lucas, agora na sexta série, e meu neto Luiz Henrique, na quarta, são alunos de uma escola do SESC. Portanto, fica claro que acredito em instituições que invistam na Educação.
Mas não concordo com a militarização do ensino, temeridade a que se propõe Goiás. Já sugeri que se incorpore o Instituto de Educação à Universidade Estadual de Goiás, que se tornaria um centro de referência pedagógica, preservando-se sua estrutura de ensino atual como escola de aplicação e fui criticado por professores de lá (entenderam que eu propunha seu fechamento). Insisto nessa tecla, mas as pessoas envolvidas no processo não se dispõem a uma conversa aberta e franca (por que será?).

Agora, sou informado de que o Colégio José Carlos de Almeida será transferido para a Polícia Militar. Isso me entristece. A Secretaria da Educação será desativada? Será transformada em setor especial da Diretoria de Ensino (ou algo parecido) da PM? Ou seja: os que não podem pagar escolas particulares, terão, forçosamente, de cursar estabelecimentos militares, preparando-se para não ter outra profissão que não a de policial militar? Ou isso, ou... Qual é mesmo o propósito?

Fui informado, também, que os professores do José Carlos de Almeida já concordaram, em massa, com a mudança. Não que vejam, aí, algo em prol da melhoria de ensino, mas, sim, em aumento de R$ 250 para professores, R$ 700 para coordenadores e R$ 2 mil para diretor. Perdoem-me, mas a esse argumento eu daria outro nome; e não o escrevo aqui para não ofendê-los; meu propósito é chamá-los à razão.

Educação é uma coisa; disciplina militar sobre toda a população infanto-juvenil de uma, digamos, casta (impossibilitada de arcar com os altos custos do ensino que o Poder Público deveria oferecer com qualidade), outra. Existe, e já ouvi isso de pessoas consideradas bem formadas, a crença de que os colégios da PM impõem disciplina e, assim, realizam bom ensino; existe também a crença, por parte de pais menos aptos ao exercício da educação familiar, de que a PM impede seus filhos de se envolverem com drogas e vandalismo (ou seja, existem pais que outorgam aos oficiais da PM a missão de educar seus filhos). Ora: a escola é o complemento socializante da educação, e não o seu único elemento.
E, estranhamente, essas medidas se fazem em segredo. No começo do ano, estive com a professora Eliana França (ela era a secretária) e questionei-a sobre o futuro de estabelecimentos como Liceu de Goiânia e Instituto de Educação, e as respostas foram um tanto evasivas. A imprensa nada noticiou sobre a militarização de algumas escolas.

Segredos assim não inspiram confiança. Que a professora Milca Severino nos esclareça, pois continuo preferindo o capelo ao sabre.

sexta-feira, junho 16, 2006

Sol, manhã e passarinha

(do livro "A noite dormiu mais cedo". Goiânia, Agepel, 2002)


Tempos difíceis, estes tempos de preto-e-branco. Na imprensa, o nome do presidente, generalizado, restringe a cor da esperança. Tempo de pouco dinheiro, de piruetas e malabarismos. Tempos de insônia e nervosismo.
Nestes tempos de Brasil-novo, sobrou para nós, os que vivemos de salários, pagar as contas do erário e os custos dos planos econômicos: o imposto na fonte custa o dobro do que o Congresso estabeleceu; verduras e frutas, carnes e cereais, detergente e cera – tudo isso que a gente compra em supermercados custa muito mais caro e o nosso ganho ficou congelado aos valores de março... E aí, senhora ministra? E aí, senhor chefe de polícia?

Nestes tempos de frentes frias e roupas pesadas, a naftalina denunciando o pulôver armazenado no baú, estou nervoso. Não consigo equilibrar a necessidade de emitir cheques com a capacidade de deixar na conta os miúdos que sobram do contracheque. Os descontos quase são maiores que a paga. Sem se falar que, do que sobra a título de “líquido de proventos”, cerca de cinqüenta e cinco por cento são também impostos que os comerciantes nos cobram e, dizem, nem sempre mandam para o governo.

Dias duros, noites sofridas. A transição dia-noite machuca: inspira solidão e me faz aumentar a conta do telefone. É buscar companhia para uma breve conversa, discutir possibilidades e esperar que se acabe o horário eleitoral gratuito na tevê. Mas solidão mesmo chega por volta de meia-noite. A cama cresce, parece. Um travesseiro vazio sugere a falta de uma companheira, o braço caça, mas não acha, um corpo de curvas suaves e protuberâncias agradáveis, como nádegas fartas e suculentos úberes de mamilos túrgidos, púbis intumescidos e mãos de carícias plenas, a suavidade exclusiva de pele-mulher.

Esperar o sono, esperar acordar na madrugada. Esperar alvorada, não sonhar com números e preços, tomara! Amanhecer mais tarde, não abrir a cortina. Quando amanhecer, cuidar para não pensar em saldos negativos, em cheques chegantes. Esperança: vem aí setembro, setembro é data-base para negociação de salários, as perdas estão perto de trezentos por cento, mas o governo manda que se dê setenta e sete por cento. Pode? Não pode. É exigir demais da conta. Se conseguirmos cento e cinqüenta por cento, estaremos pegando o boi: patrão não cede de jeito maneira! Há os que ainda brigam, há os que acham melhor largar de mão. Sei não...

Dor de bolso anestesia coração? Não, não deixa esquecer. Amor também faz doer e dor de amor responde embaixo, corre fina pelo peito, dá calafrio na barriga, dói pesado no baixo-ventre; machuca entranhas, pede presença.

* * *

Sol alto, oito horas. Deixo amanhecer em meus olhos, faço abrir a cortina, escancaro janelas a doze andares. Soa um som, quero ouvir: campainha da porta, um copo quebrado no apartamento de cima ou a vizinha do lado a espirrar? Não, é na janela. Asas que rufam, feito quem quer ser ouvido. Dou as boas-vindas a um alado amigo, estirando a mão franciscanamente. A oferenda encontra abrigo e o pequeno voador pousa em mim pezinhos delicados, trinando suavemente como quem conta um caso, uma história bonita.

Duas caixas de som espalham a harmonia da orquestra de Duke Ellington, sons de palhetas em metais e madeira, contrabaixo e piano. Escolho o trinar do pássaro, deixo crescer a sensibilidade e trago ao rosto o pequenino corpo para impingir-lhe um afetuoso beijo na minúscula cabeça.

A luz do sol inunda o quarto, banha a cama desfeita e mancha de luz a escuridão aconchegante, cúmplice do sono. Uma luz maior esparge cores sobre a do sol e um arco-íris apaga todas as imagens por um breve tempo. Foi aí que descobri que o passarinho era... Uma passarinha!

Sem pressa, desfaz-se o arco-íris. Uma figura humana ocupa o lugar do pequeno voador. Primeiro, como uma bonequinha, a tez morena, cabelos castanhos... Veste roupas claras, num tom que realça o azul dos olhos, contraste agradável com a pele e os cabelos.

Sento-me na cama ao sentir que a boneca cresce e se movimenta com naturalidade. Em pouco, é como um bebê, aberçada em meus braços; e cresce e cresce, com suavidade e persistência, até estar sentada nos meus joelhos, os braços a enlaçar-me o pescoço. No rosto, um riso de amável candura. Dedos sedosos riscam-me a cabeça, caracolando-me os cachos.

– Ontem era solidão – disse eu.

– Voei ao encontro do teu pensamento – respondeu-me a Passarinha.

– A solidão é falta de luz. Nada se vê, nada se imagina – insisti.

– A luz do dia premia-me pela esperança. Quando é noite, conservo em meus olhos dois sóis pequeninos, capazes de me fazer enxergar mesmo com os olhos fechados. É assim que durmo e por isso é que sonho sempre.

– Ensina-me a sonhar! Quero sonhar contigo!

– Já o sabes. Foi o teu sonho que me trouxe aqui – explicou a Passarinha.

Dou-lhe o coração por promessa; ganho-lhe o coração por compromisso. Sentimos de novo o arco-íris e unimo-nos num beijo interminável.

* * *

A janela do quarto parece-me enorme. De pé sobre o parapeito, sinto nas minhas as mãos da Passarinha. Percebo, perplexo, que apenas roço nas suas as penas de minha asa esquerda e ouço um duplo rufar de asas. Somos nós, voando livres. Volteamos o edifício, sobrevoamos a cidade e pousamos, felizes, na bateia da estátua do Anhangüera.

Donos da manhã e do mundo!

quinta-feira, junho 15, 2006

De vinho e sol

Altiva e serena, a mulher
levita, não anda; e veio a mim
como o sol que beija manhãs.

O sol, a construir o dia
opera milagres de cor
e amadurece o futuro.

A mulher altiva
falou-me de coisa simples
e felizes. E sorrimos.

Ao sorrir, era outra vez
o sol a corar areias de mar.
E vestia vinho.

Olhei-a tímido, sonhador,
ânsia de beijo que não veio.
Antevejo o sonho.

Amanheceu e o sol
levou de mim a mulher de encanto.
Triste, eu, na manhã; insone e só.

segunda-feira, junho 12, 2006

Beijo Sonhado

Falava de sonhar com um beijo,
um beijo para se sonhar levitando
e saber-me num campo,
sobre o campo verde,
pairando sobre o verdor da relva e de árvores
onde me sentir protegido
porque ao natural saberei sempre amar mais,
amar demais
e demais me entorpecer dos teus lábios.

Um beijo, assim sonhado,
há que ser por muito esperado
e desejado como o desejo,
de alma e pele,
de hormônios e luxúria.

Um beijo para estrear-me aos teus olhos,
ao teu calor,
ébrio da tua pele
e sujeito a me queimar ante teu olhar.
Beijo de expectativa plena,
beijo de excitar sempre,
provocar o não-medo do cotidiano,
das convenções.

Despertar a inconseqüência,
o non-sense, a coragem maior
de te absorver de todo,
te desejar para a eternidade do instante,
para a ternura do sempre.

Pouco importa se estamos de peles nuas,
pouco importa se meus pés buscam os teus,
que beijarei como se lábios fossem.
Pouco importam minhas mãos atrevidas
que te tocarão a pele
como uma luz varre de lume
a escuridão das noites
e faz dia sobre a têmpera
da nossa tesão comungada, somando desejos.

Meus dedos, desbravadores, acharão onde entrar,
e entrarão com carinho porque te faço altar
onde depositar sacrifícios e delírios.
Pouco importa se nossos sexos se atraem
e se buscam e se completam.
Pouco importam os orgasmos simultâneos,
os que em ti me antecedem.
Pouco importa
se o desejo satisfeito exige amanhãs.
Importa, sim, que te beijo de lábios,
te tenho em contato,
te sorvo em salivas e licores
os mais íntimos, agridoces e inesquecíveis.

Importa, não, se te fecundo ou derramo em ti,
bem fundo, a seiva de vida
que divina me brota.
Importa sim que te beijo.

Eros eu era, como quero ser.
E me és Afrodite.
Os veios
do amor assim liberto
alimentam desejos e anseios
para todos os dias advindos.

Importa, sim, que, al primo incontro,
havemos de nos beijar.



(L.deA., in Sarau; Goiânia, 2003).

domingo, junho 11, 2006

O sonho e a aversão

Ouvi de um jornalista amigo um comentário discretamente indelicado. Contava-lhe algo do meio literário, mais precisamente do âmbito da Academia Goiana de Letras, quando ele retrucou: “Ora, isso aí tem pouco ou nenhum interesse; o povo não quer saber de acadêmicos; nem intelectuais querem saber de acadêmicos”. Recentemente, ouvi de um engenheiro recifense, ávido por um papo, opiniões sobre uma praia que não era a sua. Ouvi-o tolerante.

Coisas de academias não interessam às pessoas que lá não estão. Talvez nem mesmo às que, num momento qualquer, interessam-se por romper a muralha desses clubes fechados (academia que se preze tem quarenta membros; menos, é aceitável porque pressupõe um crescimento gradual; mais de quarenta não é número acadêmico e a entidade caminha para ser um clube aberto).

Bem, o jovem engenheiro repudiava a Academia Brasileira de Letras por abrigar, entre os das letras, “pessoas como” (palavras dele) José Sarney e Marco Maciel. Dizia ele: aquilo é uma Academia de Letras ou uma extensão do Senado? Com paciência, expliquei-lhe que a ABL é um clube fechado e lá ingressam quem os 39 eleitores escolherem; a nós, que não somos membros, não nos cabe criticá-la. Parece-me que ele entendeu.

Também acho que as ações do Clube Militar não nos dizem respeito. Como as do Clube de Engenharia. Ou da Associação Médica (dos Conselhos de Medicina, sim, porque afetam nossas vidas). Tratando-se de letras, temos que vigiar os órgãos governamentais. Creiam: eu vi (ninguém me contou) órgão público adquirir livros infantis com graves erros de Português já na primeira linha (fazer o quê? O pai ou irmão ou marido ou mulher do autor é gente influente).

Bem, volto à Academia Goiana de Letras, essa instituição de que meu amigo jornalista não gosta. Direito dele, não gostar; eu também não gosto de muita coisa: igrejas caça-níqueis, por exemplo, não caem bem no meu paladar. Mas, com o povo ou o colega jornalista gostando ou não, haverá eleição, dia 8 de junho, para a Cadeira 31 da Academia Goiana de Letras, que era de Belkiss Spenziere, a Divina. Belkiss é a mulher mais importante da História de Goiás. E duas mulheres disputam a vaga: a escritora Maria Augusta Santana e líder feminista Ana Braga.

Já defini meu voto, e foi fácil: será para Maria Augusta. Ana Braga sequer me enviou carta. A que li, endereçada a outro eleitor (nesse momento, deixamos de ser escribas e viramos valiosos votantes), contém erros de linguagem e de conceito: ela quer a vaga de Belkiss, alegando amizade à minha ídolo falecida em 17 de novembro de 2005, mas quer mesmo é ocupar a cadeira 13, que pertence a Eurico Barbosa, vivo e ativo acadêmico.

Eu estranho dona Ana Braga pleitear uma cadeira entre nós, os da AGL. Soube que uma comitiva de acadêmicos, infringindo a ética, foi à casa dela sugerir-lhe a candidatura, o que soa mal ante sua concorrente, ilustre professora e historiadora. Dona Ana, há seis anos, mandou uma carta muito malcriada à AGL, no dia do sufrágio, desistindo da candidatura porque percebeu que seria derrotada por Leda Selma. E teceu agressões imperdoáveis e não condizentes com a verdade à sua concorrente, seguindo de entrevista grosseira a um jornal, dizendo ter desistido por não suportar a “sordidez humana”.

A sordidez, aí, ficou por conta dos acadêmicos da época (entre eles, Belkiss, de quem agora se diz amiga) e com sobras para a concorrente. Agora, ela própria telefona para Leda Selma e lhe pede voto. Pelo visto, só não pediu votos a mim. Creio que orientada pelos que a convidaram a candidatar-se: afinal, sou notório adversário do ingresso, na Casa de Colemar Natal, de candidatos não escritores.

sábado, junho 10, 2006

Ao som dos sinos

Manhã de sábado, 3 de junho, em aeronave com “orgulho de ser brasileira”; a moça de óculos escuros pede para ficar separada, tem conjuntivite. A aeromoça chama o comandante, que determina o desembarque, a moça recusa, ele chama a polícia civil. Muitos minutos depois chega um homem grisalho, de terno e um código de aviação civil nas mãos. Conversa-se, o vôo atrasa. A moça desembarca constrangida, a contragosto. Três médicos a bordo entendem ser desnecessário o desembarque (um deles até assina um atestado), mas a moça desiste.

Goiânia, Congonhas e, por fim, Santos-Dumont, Rio. Encontro-me com os amigos de uma comunidade Orkut “Chega de abobrinha”. Tempo pouco, converso, tomo dois chopes, saio feliz pelo encontro. Começa, já, a noite. Há o Baile da Saudade (Ancelmo Góis escreveu em O Globo: Vovô quer dançar). O maestro é Sérgio Norberto, que, há umas poucas décadas, já animava nossos bailes. Vovós e Vovôs, no caso, éramos nós, cinqüentões e sessentões ex-alunos do imperial Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro.

O piloto nos conta, quarenta minutos de vôo após, que a moça com conjuntivite fora assistida, em terra, pela infra-estrutura da empresa e que embarcaria, com os cuidados específicos, em outra aeronave e que não houve arbítrio e, sim, zelo para com a saúde dos passageiros. Eu, nas minhas limitações, indaguei entre os vizinhos de vôo (incluindo-se o casal de médicos de Joinvile): será que teremos de mostrar atestados, provando não termos conjuntivite, dermatites ou DST? Um passageiro na minha fileira confessa: “Estou com conjuntivite também, mas quando vi o caso preferi ficar calado”.

Retorno a Goiânia justo no tempo em que os “sem terra” invadem a Câmara, vingando a absolvição dos quarenta ali-babás. Na noite de quarta-feira, Miguel Jorge, “tia Fatinha”, David Isaías, Helena Sebba e eu recebemos, da Universidade Estadual de Goiás, em Inhumas, o belo Troféu Sophia. Helena Sebba lançou seu novo livro, "A turminha dos sete e a terra da imaginação". Cinco professoras mestras da UEG falam de literatura infantil e eu me indago: existe?

Claro, existe. Literatura infantil é a que se faz para crianças. Mas quem de nós deixa de ser menino? Saint-Exupéry não fez “O pequeno príncipe” só para os pequeninos, mas a garotada adorou o livro. Então, será algo escrito por crianças? Ah, sim, acredito! Escritores são crianças grandes que inventam coisas; são mentirosos sem o risco dos castigos e do pecado. E ainda nos dão prêmios...

A semana quase que se acaba. Restava a eleição na Academia Goiana de Letras. Resultado esperado, fui voto vencido e isso merece outro texto. Ficou, na noite de quinta-feira, a alegria do encontro com a professora Augusta Santana. A essência da escrita tem algo de mágico e implica coragem, a coragem simples de se expressar com lealdade. Escribas não podem, nem devem − jamais − conceder como legítimo não soa sincero: os sinos não produzem ruídos mas, sim, a plangência nobre do altivo cobre.

Esvaem-se os dias, e arremato o período neste sábado, 10 de junho, nos ares claros da manhã solene: minha sobrinha Alessandra e seu eleito Gustavo decidiram juntar suas vidas para o futuro e pedem a Unção de Deus. E nós, da geração dos pais e avós, reverenciamos a decisão em preces.