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sábado, setembro 30, 2006

Apesar de vocês


...Eu vou ser feliz.

Enfim, acabou-se a campanha. A bem da verdade, e apesar das “pílulas”, o ingrato horário gratuito foi menos chato do que nos anos pares anteriores. Pregou-se a moralidade, falou-se tanto contra a roubalheira e as ações questionáveis dos políticos... Nem parecia que eram políticos os que pregavam tanta “honestidade”.

Lembrei Juca Chaves, lá pela década de 1960, num livro chamado “Eu, baixo-retrato”. Dizia o menestrel que o Brasil é um país estranho, onde estudantes falavam em revolução, generais falavam em paz e políticos falavam em honestidade. E lá vieram eles, os que têm rabos presos em várias ratoeiras, prometendo até absolvição no juízo final.

Ah, sim! Incrível isso de candidatos dispostos a fortalecer bancada unida para tudo, até mesmo para receber mensalão ou transportar malas de dinheiro de origem duvidosa. Incrível também o apego ao poder, o que induziu incautos a agir como se para eles não houvesse lei nem vigilância, como no episódio do dossiê. Incrível que tentem abafar a responsabilidade de alguns com a mera exigência de que investigue a origem do dinheiro para comprar dossiê, mas que se esqueça o que denuncia o mesmo dossiê.

Incrível! Alkmin, comprometido com apenas o Estado de São Paulo, busca votos por todo o Brasil em nome de uma moralidade que seu grupo não respeitou no passado. Incrível também como Lula entenda, agora, que deve fazer mais pela Educação e pela saúde (mas que se faça sem superfaturamento de ambulâncias nem comercialização irregular com derivados de sangue).

Também é incrível a cara-de-pau de quem, em busca da cadeira saudosa na Casa Verde da Praça Cívica, se esquece do que não fez e atire no próprio pé: Maguito Vilela diz ter encontrado o Estado, em 94, em 25º lugar em Educação, e o deixou em 6º lugar... Estranho isso, porque a secretária de Educação foi a mesma do governo anterior, do qual era Maguito o vice.

Mais incrível, ainda, é o vereador já condenado por desviar dinheiro do INSS ser candidato a deputado estadual, atrelado ao candidato à reeleição como federal, sobre o qual pesa um inquérito que, também, deveria impedi-lo de se candidatar. Não consigo entender como os tribunais eleitorais permitem candidaturas de pessoas sob investigação, já que um foro privilegiado, ou o tráfico de influências, procrastinará o andamento de qualquer processo.

De certo, entendo apenas que vou votar. Ainda que chova toda a previsão de um mês num só dia, eu vou votar. Ainda que o voto fosse voluntário, eu seria um desses voluntários. E não vou até a maquininha só para votar em branco ou anular meu voto. Vou votar pela bandeira da Educação; vou votar pelo acerto que se vê agora em Goiás; vou votar porque quero ser representado por alguém igual a mim, ou melhor que eu.

Este ano, nestas seis semanas de campanha, cuidei de não me aborrecer. Não abri panfleto eletrônico enviado pela Internet − uso a rede de computadores para me divertir e trabalhar, e não para ouvir bobagens de fanáticos mal-informados. E agora, neste primeiro domingo de outubro, dia nacional de votação, vou à rua com aquela mesma alegria que me põe brilho nos olhos em dias de Copa do Mundo (antes de ver Roberto Carlos arrumar a meia para não incomodar o atacante adversário). Vou votar, sim; com a almazinha do beija-flor que leva água no bico para apagar o incêndio da floresta.

Faço isso de cabeça erguida. Para votar, não me alinho entre os mal-informados; nem entre os mal-intencionados. Em bandido, decididamente, eu não voto.

domingo, setembro 24, 2006

Entre colunas

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Dias finais de seca, vésperas de primavera. Céu leitoso de névoa sem ranço nem esperança de chuva. Ar seco, de arder e sangrar narinas. É setembro, ainda, e é dezenove; prefiro escrever com antecedência: é terça-feira, tenho tempo, mas o dia branco de alma cinza causa em mim o triste que não se cala. Nestes dias, faço anos; mas costuma chover antes. Este ano, não; a meteorologia faz o ano atrasado.


Era aniversário de minha mãe, 19, desde 1923.

Foi num também 19 de setembro, 1999, que morreu José J. Veiga, o dos contos e de Pirenópolis e Corumbá e Goiás Velho. José, o do mundo, cidadão, não tinha fronteiras: cresceu menino de fala abreviada “cóo rorosé cá senluz, cá vi”; locutor em Londres BBC, leitor compulsivo da Biblioteca Nacional Rio de Janeiro, moço bonito e galante, conquistou Clérida e se fez dela pelos seguintes cinqüenta anos, até que o morte etc.

Setembro é tempo de aniversário meu; o dia é o de menos, festejo-o o mês inteiro, porque se o dia exato me fizer triste, há os outros de me sentir alegre, feliz ou ainda cheio de luz e esperança. Mas 19 é triste, sim; e este é esbranquiçado de nuvem distante, uma só a revestir todo o céu que, de avião, eu veria azul.


Céu do Planalto Central é assim, muito azul. Feito os olhos daquela amada distante em tempo e geografia. Distante, sim; nunca esquecida. Azul é bonito, muito. Penso, mesmo, que azul é a cor do bem da gente. Acho que uma alma feliz é ligeiramente azulada, como a lua de abril, no céu do Planalto, a abençoar a cerrado. Aquele azul que lembra levemente um tom de prata, mas que resplandece feito um lampejo de certeza, sucedendo esperança.

Penso em ligar, teclo zero operadora seis quatro... Não, não ligo. Meu pai há de estar triste; se eu ligar, aumento-lhe a tristeza. Melhor esquecer o aniversário de Dona Lilita. Então, ligo para o Gabriel, zero operadora dois um... Desligo outra vez. Gabriel está, é certo, pensando no Tio José. Também não me concentro no retrato da mãe, obra impecável de mestre Amaury Menezes; nem pego na estante livro algum do José J. Veiga. O dia é, mesmo, para ser triste; e as chuvas esperadas ainda se fazem tardias.

E lá está meu pai, em Caldas Novas; ele, que é filho da bucólica e musical Pirenópolis, que agora é do Canto da Primavera, prefere o calor das termas. Eu, não: filho de Caldas Novas, não me esqueço do cascalho avermelhado nas ruas, das enxurradas onde brincar com barquinhos de papel, dos quintais de frutas e esculturas em talo de buriti, anos tenros e verdes da década de 1950.

Meu pai é decano e remisso na Loja Maçônica Segredo e União. Foi o primeiro a iniciar-se nos mistérios dos pedreiros-livres, 19 de setembro de 1946. Vez em quando, eis o velhinho, mais de oitenta anos, ostentando gravata e paletó e avental de mestre elevado, Escocês Antigo e Aceito...
Sessenta anos de irmandade, meu pai! Parabéns! Você, meu velho, soube, sim trabalhar com a trolha, erguendo “templos à virtude e cavando masmorras aos vícios”.

quinta-feira, setembro 21, 2006

Sede e seda

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Há sede de sedas,
de verbos, de versos.



Bastam-nos os sons
das unhas nas sedas,
de arrulhos nos versos,
de bêbados verbos
que entornam-me o cálice,
derramam metáforas,
embebem-me o poema.



As musas que me dessedentem.


Um poema de Sinvaline Pinheiro

Este poema é da lavra de Sinvaline Pinheiro:



Luiz de Aquino, 15/09/2006



Quanto tempo?
Sessenta e sessentos,
quiçá mais...
Importa é viver.
Mas o poeta é feliz?
Seus versos têm as dores do mundo,
o olhar distante exige, pede.
No jogo das palavras
briga, inebria, movimenta corações.
O grito silencioso
deita no peito amado,
sente o pulsar do feto;
nasce mais um poema,
desafiando o tempo,
a indiferença dos homens.


Obrigado, poeta querida! O coração se conforta... L.deA.

sábado, setembro 16, 2006

Pedro II Tabuada

Prometi estar presente. Neste mês, Setembro, Seis de novo século vinte-e-um, festejo sessenta e um. Eis, então, a minha presença, com um beijo sem pimenta, de Goiás:



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Gosto da palavra velho.

Ela enfeita a página de belo,
escrita à mão ou de letras formais: v-e-l-h-o.

Velho se escreve com vê

de vento e um é que não é verbo,
mas letra de soar em aberto.

A sílaba outra soa engraçada,

como galhofa − risada debochada
de criança a ouvir histórias de avós.

Existe uma riqueza incrível

no que se tem por velho. Feito nossos pais
e avós e os pais e avós deles, antigos e sábios.

É velha a montanha de picos

redondos antigos. Velho é o mar
de ondas iguais; e o ar que me fez vivo.

Velho é o tempo. E a Bíblia, que,

sagrada, gerou livros de ensinar encantos
a quantos os queiram saber e espalhar aos pósteros.

Velho sou eu à porta do prédio,

o “oitenta” da velha Rua Larga Floriano,
templo antigo de letras e ciências e artes tantas.

As pedras paredes, a escada,

degraus em alvo mármore, corrimão:
balaústres solenes e o passado, ali, no alto...

Não há descrição, há que se ver

o velho, aconchego aos jovens em branco
e azul, globo e café, elíptica e orgulho em peito e alma.

O tempo é Miguel, anjo

de música e alma; e Sílvia da selva;
e alva estrela Stela Maris, a do mar.

Direi de Amanda, ainda há pouco

a dançar ciranda. Andanças e salas
e corredores e pátios e passado: saudades.

Gosto do velho e das marcas:

rugas memórias, sulcos na Terra,
vales de rios e vida a recriar o futuro.

Nesses moços alvianil

em velhos recreios zoeira e riso
e saber de futuro, encontro-me decano.

Grito alegre Tabuada e zumzumzum

Pedro Segundo meu passado voa zás!
e traz-me célere ao agora, em cãs e lágrimas.

− E então: como é que é, como é que é?

domingo, setembro 10, 2006

Jardim das delícias

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Parece que foi ontem. Ou há vinte anos, ou mês passado. No fundo, acredito que é de sempre ou que trouxemos de outras vidas essa vontade de ficar juntos, essa alegria de estar juntos, essa esperança de continuar juntos.


Às vezes penso que começou com um beijo. Ou antes, dias antes, quando das primeiras frases (escritas ou faladas?). Ou do primeiro olhar. Mas não me lembro, mesmo, o que aconteceu primeiro: se trocamos cartas e bilhetes, se nos falamos ao telefone, se nos vimos na esquina ou na portaria...

Houve, sem dúvida, um olhar decisivo. E um beijo, cinco minutos depois. Ou cinco segundos? Ou cinco meses? Um beijo na testa, ou dois beijos nas bochechas e nos olhos, um beijo no nariz, na boca... Um beijo que não queria se acabar. Ah, sabe? Acho que não se acabou. Nem mesmo nossos intervalos interromperam aquele beijo. Nem o amor realizado em carne e ofegos, nem a distância, a ausência eventual.

Há tempos, sim; ontem ou há décadas? Sei-te clássica e bela, como sempre: minha paixão, meu amor, meu desejo... Tudo de meu em ti, ou de teu em mim. Essa troca de bom e de bem, tua essência a me acender hormônios... Esta história, a nossa história, calcada em óbices e reencontros, existe mesmo? Nós a vivemos ou a sonhamos, apenas? E pode-se dizer de um sonho que seja “apenas”?

Sim, tenho dúvidas. Não sei se somos reais ou se, um para o outro, somos projeções de desejos eternos, esses que trazemos do éter e que os incautos pensam esvair-se no pó do chão, simbólico e bíblico. Talvez sejamos, sim, projeções de nossos pensares, de nossos anseios. E nós, o que somos, enfim? Digo de mim “o meu corpo, o meu espírito” ou “o meu dedo, o meu pé”, mas se tudo se junta para ser eu, por que me refiro a mim como partes destacáveis? Sou um pacote que se montou em um momento algum, feito jogo educativo que se aplica nas escolas?

Estranho mesmo, isso que se mistura para chamar amor. Ou paixão, embora tão diferentes, paixão e amor. Paixão: desejo sublimado, ornamentado de atos e palavras e vontades. Amor: sentimento sublimado, ornamentado de atos e palavras e vontades. A diferença é do vapor para o gelo. Só isso. O que se tem a meio é líquido, água que dá vida e asfixia, se não se souber que se usa em doses certas e nunca, nunca pode faltar.

Paro e leio um novo poema, que me vem de Rosângela Alves, assim:

“Jardim das delícias

Quisera ser jardim
Abocanhada de delícias
Sairia tudo de mim
Contos com amor
Poesia açucarada
Palavras doces
Hálito puro e fresco
Beijos ardentes
Nenhum ranger de dentes
Maciez aveludada
Batom vermelho paixão
Saboreando um sorvete
Com quente cobertura salgada
Submergindo a língua
Áspera, sôfrega e cálida.

Ávida pelo frenesi voluptuoso
Desembocando no ápice do amor”.

E então te olho mais, e muitas outras vezes, e te toco e te beijo, e te amo de alma, e te amo de corpo. Tomo tuas mãos para trazer-te a mim; dou-te uma das mãos para passearmos sem rumo, ou sairmos apressados atrás do tempo ou do ônibus. E andamos felizes, e vivemos felizes.

É que, de mãos dadas, a gente encena a metáfora: nossas almas estão, sim, juntas. E até há quem julgue, sem muitos enganos, que somos felizes.

Intuitivo

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Como ave que espera estações,

sei do frio e dos ventos,
do sol e das chuvas,
dos frutos,
das flores
e das primaveras.

Tudo é tempo,
é espera, é certeza.

E eu te quero.

sábado, setembro 02, 2006

“Foguinho” caiu na brasa...

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Eis aí a vida imitando a arte, de novo! É que as coisas reais superam qualquer imaginação. Ou melhor: somos muito mais exigentes, como leitores, do que como consumidores desse artigo maior que Deus nos dá de graça: a vida.


Se João Emanuel Carneiro pusesse na telinha uma trama como a que se viu no DM desta quinta-feira, 1º/09, tendo Ernani de Paula como “autor” e Osvaldo Pereira como protagonista, a gente daria boas risadas ou passaria alguma raiva (como a que não consigo evitar quando Lília Cabral incorpora Marta, em Páginas da Vida, de Manuel Carlos). Mas, meus queridos, não: essa pantomima política foi arquitetada por um ex-marido sequioso de reconquistar sua Dulcinéia; e escolheu ninguém menos que “Foguinho” para seu Sancho Pança.

Bem, Goiás não é “la Mancha” e Ernani sequer ostenta a “triste figura”. Osvaldo, coitado, ouviu o canto da sereia, que parece ter o corpo inverso: pernas ágeis para boas rasteiras e a parte superior de peixe não escamado: pois a trama é digna de um cabeça-de-bagre. Imaginem a lucubração do ex-prefeito de Anápolis: “Denuncio o Osvaldo no Fantástico, jogo Maguito e Cidinho em desgraça e Demóstenes se elege; com isso, Sandra se torna senadora e volta pra mim”. Osvaldo, em vez de Sancho Pança, tornou-se o Foguinho de Cobras & Lagartos.

O moderno Don Quixote, porém, não contava com ligeiras adversidades dos tempos de agora. Câmeras ocultas não são para qualquer um; edição de imagens é para peritos (e olhe lá! “Tem sempre um que é mais esperto”, cantou Vinícius de Morais há mais de trinta anos).

Pois bem: os que agridem Lula, perdem votos; os que agridem Maguito, perdem votos; os que agridem Cidinho, perdem votos. O eleitor não quer mais baixaria − até porque já não confia mais em políticos e o Congresso Nacional, feito de duas casas fazedoras de leis, não se dá ao respeito. O eleitor entende, sim, que o que tenta mostrar a desonestidade do concorrente está, mesmo, é escamoteando a sua própria. Sei que não se deve − nem pode − generalizar, mas é essa, infelizmente, a “leitura” que faz o (e)leitor. E ele, o povão, não chegou a tal conclusão sozinho...

Espírito das cidades

“Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima
não vos seria revelado por mim se não julgasse,
e razões não tivesse para julgar, que este
amor assim absoluto e assim exagerado
é partilhado por todos vós”.

Paulo Barreto, o João do Rio, in A Rua.
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Abro o “blogue” do meu amigo Osair Manassan e leio lá uma crônica excelente sobre o próprio autor, por si mesmo qualificado como um boêmio abstêmio e me delicio com a análise que faz dos boêmios bebuns e de si próprio. Concluo a leitura e permaneço sob o efeito dela, apreciando o efeito retardado tal como alguns animais de peçonha que, ainda que lhes arranquemos a cabeça, continuam se mexendo.


Isso se dá nos momentos especiais do amor de alcova com a pessoa mais querida, quando o prazer do colóquio se estende para além dos contatos. Fica na alma, mais que na mente, a nos lembrar que a alegria não se faz só de momentos, mas de sua continuidade. É assim a arte, a música, a poesia. Aliás, não me canso de chamar “poesia” a alma das artes: não basta saber dançar, há que se ter poesia; não basta escrever, há que se ter poesia; não basta pintar nem esculpir, muito menos tocar um instrumento, sempre há que se ter poesia.

Encontro-me com o velho amigo Paulo Bittencourt e ele, comentando nossos escritos (os meus, os dele e os de tantos que fazemos registros de fatos quotidianos das cidades), resume: “Penso, às vezes, que constituímos a alma das cidades”. Vejam que ele usou o singular: a alma das cidades. Sim, também acho que as cidades têm uma só alma. O que muda é a cor, ou o humor, de cada uma delas. Ou de cada esquina numa mesma cidade, ou de cada momento...

O fato é que vivemos essa alma urbana, tal como a alma dos campos desde que neles haja o homem (o homem, não o macho, mas o homem espécie). Engalanam nossos sentidos a cor das flores (ah, que é tempo de ipês floridos!), os tons de verde nas relvas e nas frondes, nas plantações dos grãos e do azul matizado de nuvens ralas ou mesclado de branco único, estampado de cinza-chumbo que prenuncia as chuvas.

Leio Ulisses Aesse e Vânia Lourenço, Leda Selma e Luiz Fernando Veríssimo, Ursulino Leão e Zé Mendonça, João Ubaldo e José Luiz Bittencourt (coincidentemente, pai do Paulo, que citei linhas acima) e viajo no tempo até Nelson Rodrigues, Adalgisa Néri e Sérgio Porto, José J. Veiga e Bernardo Élis. O que seria dos nossos jornais e das nossas almas urbanas sem as crônicas de cada dia?

E repito para mim o que deixei registrado num discurso (recepção a Leda Selma) na Academia Goiana de Letras: a boa crônica implica poesia. Porque é poética a alma das cidades, a alma dos dias, a alma dos nossos sentidos a perceber um tema. E, daí, posso afirmar: não se é, jamais, bom cronista sem que a poesia seja essência do escriba. Uma crônica sem a têmpera poética perde-se na alvura do papel, tal como um som de louça quebrada não é música.

Eis porque, paciente leitor, corro para aprender a cada dia, em cada leitura e em cada conversa, em cada encontro com amigos: quero, um dia, me sentir cronista, e não um mero escrevinhador de coisas avulsas. Enquanto não o consigo, por favor, continue paciente comigo. Prometo aprender.

Poesia, fogos e saudade

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Eis aqui uma tentativa de citar muita gente com a certeza de esquecer muita gente e, no chavão de sempre, admitir que cometo injustiça. Mas, pelamordideus, os injustiçados que me perdoem: vou me expor, sim. Era pouco após as duas da tarde, sábado 26 de agosto, quando cheguei ao Rio Comprido, um pedaço da Tijuca, no Rio de Janeiro. Laurita e Paulo Fernando, amigos meus desde a infância, já me esperavam. Andamos duas quadras e chegamos ao bar para uma série de fartos copos de chope preto e muita conversa de lembranças, com intervalos de bolinhos de bacalhau. Só paramos porque já se aproximava das cinco horas e esse era o horário do “meu” sarau, no Grajaú, não muito longe dali.

O sarau foi uma invenção da Beth Luz. Ela, que traz na essência as lembranças do tradicional Colégio Pedro II, arregimentou a “pedrocada”, com diz a Sílvia Lanfredi. Em pouco tempo, éramos já um grande grupo de ex-alunos. E, também, de poetas e afins como Edir Meireles (goiano, ex-presidente do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro), Lílian Maial (médica, poetisa e prosadora de primeiríssima linha) e a professora Maria Celeste (todos com suas caras-metades “à coté”... Puxa, estou parecendo colunista social, hem!). E de Três Pontas, Adélia Maria Batista, a que me provocou a escrever “As uvas, teus mamilos tenros”, que levou consigo um professor francês Alain Giami.

Miguel, o engenheiro musical, revezou com Rudson ao violão, trazendo-nos músicas dos anos de 1960 (vozes também de Sílvia e Maris Stela). Falei, em dois blocos, pouco mais de trinta poemas, desde lampejos de autobiografia, divagando em textos telúricos e de amor a dois para concluir com o tom tropical da poesia erótica. Entre um poema e outro, alguma história para mesclar o ar e os sons (Rudson, impecável, fazia fundo musical).

Ah, nem tanto “egotrip”! Mas isso, leitores, é inevitável: a emoção foi densa, forte, marcante. A madrugada emendou-se à noite que se estendeu do dia e pouco tempo nos deu de sono até o churrasco na cobertura da Helena Coutinho, em Botafogo, tendo por paisagens o Cristo Redentor de um lado e o Pão de Açúcar do outro (Luzia e Helena: suas fotos ficaram excelentes!). Pena que os três que, comigo, fecham o grupo “os quatro cavalheiros do após calipso” não compareceram: Fernando (que se deslocou de Roraima para estar com a gente), Bambino (esse viajou pouco: de Belo Horizonte ao Rio) e o já citado Miguel, que teve o domingo ocupado. Um domingo fechado na noite carioca sob o pipocar de fogos de artifício. “Luiz, você merece essa homenagem”, gritou para mim a anfitriã Helena. Puxa... Depois dessa, reservo-me, sim, o direito de ser cabotino.
Não era tudo: houve ainda, na segunda-feira, o pacto com alguns colegas: a visita ao vetusto edifício número 80 da Rua Marechal Floriano: a sede do externato do Colégio Pedro II, com sua arquitetura solene e soberana, suas salas de aulas históricas, com nomes e esfinges de antigos catedráticos e muitos, muitos quadros com fotos e nomes de formandos. O mais antigo que vi era dos bacharelandos de 1905. Isso mesmo: há 101 anos!


Nós: Miguel, Stela e Sílvia, mais eu e um saudoso colega de ginásio: Paulo Roberto Tostes, percorremos aqueles velhos corredores e salas guiados por um antigo funcionário − o Núbio, cujo pai foi também funcionário do Colégio. Fizemos setenta e cinco fotos e tivemos também o carinho de alguns alunos, especialmente de Amanda Félix, do primeiro ano do ensino médio.

O espaço se acaba, mas esta história não. Tenho plena consciência de que foi este o melhor final de semana dentre todos os que já vivi, nestas vésperas dos meus sessenta e um anos.