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sábado, agosto 06, 2022

José J. Veiga visto por Ítalo Campos

José J. Veiga: 




Um sertanejo e seu


 universo fantástico (*)


Por Ítalo Campos: 



A verdade só pode ser dita nas
malhas da ficção. (Jacques Lacan)

 

Era o ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1910. Benedita Cipriano Gomes com 7 anos, nascida ali na fazenda Mozondó no município de Pirenópolis, apresentou uma doença estranha e desconhecida. Em estado comatoso, e já dada como morta, preparavam a extrema-unção e o banho de defunto quando alguns familiares notaram que o corpo de Benedita, chamada de Dica, retomara o calor, sua respiração tornara-se nítida e apresentava um suor frio. Resolveram encompridar o velório e no terceiro dia Dica estava recuperada. Milagre! Milagre! Pouco tempo depois esta voz ecoou pela região e iniciou-se uma peregrinação à casa de Dica para pedir sua benção e orientação. Mocinha, já estabelecia regras e comandava uma legião de mais de quinze mil pessoas em torno da sua comunidade. Fazia curas, rezava missas, pregava a igualdade, a abolição dos impostos e a distribuição de terras que, para ela, era propriedade exclusiva do Criador, dado a todos os homens e mulheres o direito de explorá-la e produzir todos os alimentos. Sua fazenda estranhamente não tinha cerca, nestas atitudes libertárias ela pregava a autonomia do cidadão, da população e, coerentemente, distribuía a produção de sua propriedade para toda a comunidade.

Contrariando os coronéis, grandes proprietários de terras, que temiam o aparecimento de um novo Canudos, acionaram as autoridades de Pirenópolis para conter as suas ações. Estas se declararam impotentes e buscaram a participação da força policial do Estado. Em 10 de outubro de 1925 uma guerra chamada Dia do Fogo aconteceu no sítio Mozondó. As forças policiais, com fazendeiros e jagunços, cerca de 79 homens, se dirigiram à fazenda para prender Dica e seus seguidores. Sorrateiramente ocuparam os pontos estratégicos do povoado mas não conseguiram prender a Santa Dica. Balas que se resvalavam pelo corpo da Dica, outras se alojavam no seu cabelo, uma sucuri protegia o caminho da sua casa, são histórias que se contam deste evento. Dica foi presa após alguns dias ao se apresentar no fórum de Pirenópolis e levada para Goiânia, e libertada pouco tempo depois, resultado da pressão da população e por falta de provas concretas de algum crime e inteligente defesa. Santa Dica, mais tarde, formou um batalhão de 400 homens, sendo ela designada e nomeada cabo do exército nacional, anos depois recebeu a patente de Capitão. Participou da Revolução Constitucionalista de 1932, indo guerrear em São Paulo com uma tropa de 150 homens, voltando sem nenhuma baixa. Dica morreu em 9 de novembro de 1970 e está enterrada em Lagolândia, distrito de Pirenópolis, onde nasceu.

A poucos quilômetros dali, na fazenda Morro Grande, dentro do município de Corumbá, em 1915, nascia José J. Veiga, apenas 12 anos mais novo do que a Benedita, chamada ainda viva de Santa Dica. Se ela e José Veiga não foram amigos mas certamente se conheciam e comungavam do mesmo ambiente rústico, místico e religioso do interior de Goiás. A 150 km em linha reta de Corumbá encontra-se Uruaçu, cidade onde nasci. Isolada dos centros urbanos e decisórios, esta região do Brasil profundo gerou pessoas duras, resistentes, com universo sensível povoado por mitos herdados especialmente dos povos originários, dos negros escravizados e outros.

Uma cosmogonia própria, rica, abundante e, ainda hoje, conservada, faz de Goiás uma referência de escritores de literatura regionalista com doses de realismo fantástico ou, como outros chamam, realismo mágico. São escritores sensíveis à secura do planalto, onde de repente o insólito e o improvável acontecem.

Freud, o pai da psicanálise, foi um grande escritor, criando os textos psicanalíticos e, por isso, foi merecedor do prêmio Goethe de literatura. Além disso, creditava os artistas como precursores em anunciar a existência do inconsciente em suas obras pictóricas, esculturais, estatutárias e principalmente na literatura. Nesta, encontrava também um modo de validar, de exemplificar suas teorias como o Édipo de Sófocles. Dizia com grande modéstia que pelo caminho que ele trilhava com enorme trabalho e dificuldade o artista já tinha passado. Em carta endereçada ao escritor e médico Arthur Schnitzler, que havia enviado os cumprimentos pelo seu aniversário, escreve: “muitas vezes me perguntei com perplexidade de onde o senhor poderia ter retirado este ou aquele conhecimento secreto, que eu havia adquirido através de laboriosas investigações”. A admiração e reconhecimento que Freud tem com a arte e literatura é demonstrada em seus trabalhos que tratam de arte, literatura e estética.

Relaciono, cronologicamente, a seguir, as obras, ou parte delas, escritas por Freud em correspondência e artigos: Em 1897 Sobre Édipo Rei e Hamlet, numa carta a Fliess; Em 1898 A Juíza em carta a Fliess; Em 1898 A Interpretação de Sonhos; Em 1900 Sobre Édipo Rei e Hamlet; Em 1905 Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente e Tipos Psicopáticos no Palco; Em 1906 Delírios e Sonhos na `Gradiva’ de Jensen; Em 1907 Contribuição a um Questionário sobre Leitura; Em 1907 Escritores Criativos e Devaneios; Em 1910 Sobre o Sentido Antiético das Palavras Primitivas; Em 1910 Uma lembrança Infantil de Leonardo da Vinci; Em 1913 O Tema dos Três Cofres; Em 1913 As Reivindicações da Psicanálise ao Interesse Científico; Em 1914 O Moisés de Michelangelo; Em 1915 Sobre a Transitoriedade; Em 1916 Alguns Tipos de Caráter Encontrados no Trabalho Psicanalítico; Em 1917 Uma Recordação Infantil; Em 1919 O Sinistro; Em 1927 Pós-escrito a O Moisés de Michelângelo; Em 1927 O Humor; Em 1927 Dostoievski e o Parricídio; Em 1929 Carta e Reik sobre Dostoievski; Em 1930 O Prêmio Goethe; Em 1933 Prefácio a Edgar Allan Poe de Marie Bonaparte; Em 1935 Carta a Tomas Mann (Pelo seu 60º aniversário). Nesta carta Freud chama a atenção para responsabilidade do escritor afirmando: “As palavras dos escritores são ações”.

Um bom texto para esse ângulo de leitura e sobre a escrita é o artigo O Poeta e o Fantasiar, de 1907/8. Este se inicia com a inquietação do Cardeal d’Este de Ippolito perguntando ao seu protetor, o poeta Ariosto (1474-1533), autor de Orlando Furioso, como ele conseguia despertar nos leitores tanta emoção que não se supunha jamais sentir? Neste texto, diz Freud que a raiz da produção poética está na infância, nas brincadeiras de criança. O poeta é aquele que não mais brinca, mas sim fantasia. A fantasia, necessária para a criação artística, é o substituto do brincar.

Tanto a literatura como a psicanálise trabalham tanto com a linguagem como com os conteúdos complexos, obscuros da alma humana e suas angústias. O poeta e o psicanalista traçam os contornos em torno de formas desconhecidas, dando existência ao l'Unbewusst, o insabido, o Inconsciente. "Lunáticos, amantes e poetas são iguais em sua imaginação" disse Shakespeare. Embora os poetas e escritores sejam considerados como antenas sensíveis do universo, Freud considerava que esta possibilidade está para todas as pessoas "Somos poetas, e só com o último homem morrerá o ultimo poeta", escreveu Freud em seu texto Escritores criativos e devaneio.

A escrita criativa de José J. Veiga ilustra para nós leitores, ou melhor, provoca em nós leitores, uma fruição estética produzida pela liberação de certos conteúdos inconscientes, fantasias recalcadas, que estavam aprisionados pela lógica consciente, cartesiana, racionalizadora. Sua obra também traz conteúdos políticos sociológicos e críticas à modernidade desumanizadora, que transforma o homem em mais um objeto de uso.

Recorrendo à internet: (10 livros de José J. Veiga para ter na estante. By Douglas Eralldo – fevereiro, 27, 2017), trago, esperando a paciência de vocês, o título e assunto de  alguns de seus livros.

1 - A Hora dos Ruminantes: Considerado o romance mais importante do autor, A hora dos ruminantes conta a história da pequena cidade de Manarairema, que vê a sua rotina alterada por acontecimentos inexplicáveis. Primeiro uma legião de homens, de procedência desconhecida, decide acampar na cidade. Os moradores, temendo represálias e com medo dos visitantes misteriosos, passam a especular sobre a intenção do grupo...

 

2 - O Risonho Cavalo do Príncipe: Neste livro, Veiga coloca seus personagens – e nós leitores – em situações curiosas, que nitidamente imaginamos e visualizamos como se tivéssemos diante dos olhos, no cinema ou na TV, uma das mirabolantes aventuras de Indiana Jones... 

 

3 - O Trono no Morro: Um bandoleiro se torna o líder de um estranho reino, onde o inesperado pode acontecer a qualquer momento. Neste livro, o interior do Brasil é o pano de fundo das narrativas envolventes e humanas do autor... 

 

4 - Os Cavalinhos de Platiplanto: O conto que dá título ao livro serve como síntese da obra, como aponta o escritor Silviano Santiago no prefácio desta edição. Para ele, a obra “consegue equilibrar a violência que domina o mundo real com a nostalgia do paraíso que se perdeu, somando à saudade do passado a realização do desejo”. As dificuldades da vida adulta percorrem todo o universo narrativo do livro...

 

5 - Torvelinho Dia e Noite: Torvelinho já não é a mesma, parece uma cidade grande; todos têm de se posicionar a respeito do 'progresso forçado' que se instala. A história se desenvolve, de emoções em emoções, até seu desfecho. Apenas uma pergunta é deixada no ar - de que lado estão os fantasmas?

 

6 - Os Melhores Contos de José J. Veiga: A sua obra de ficcionista está povoada por fantasmas bonachões, nada fantasmagóricos (no sentido usual do termo), mais capazes de encantar do que assustar, objetos que se humanizam, mas também de casos de horror, mistério, sobrenatural, estranhos, por vezes terríveis, quase sempre com um sentido de alegoria...

 

7 - Sombras de Reis Barbudos: 'Os urubus ainda não estavam em nossos telhados, mas as sombras deles estavam. Os primeiros chegavam logo depois do sol, e pelo meio-dia o céu ficava coalhado deles, as sombras caindo vertical nas ruas, nos muros, nos gramados, em toda parte aquelas cruzes negras volteando sobre nossas cabeças'...

 

8 - Os Pecados da Tribo: 'A experiência de vida que a leitura de 'Os Pecados da Tribo' nos proporcionará contém lições que enriquecerão nossa capacidade de ver e sentir, de analisar e, tendo sorte, sonhar. E é sonhando que o homem recria o mundo'...

 

9 - O Professor Burrim e as Quatro Calamidades: Vida de professor não é moleza. O professor Burini não sabe mais o que fazer para que os alunos prestem atenção nas aulas de português...

 

10 - O Relógio Belisário: Um relógio encantado, que conta histórias em imagens. Um menino sem família, que tem o poder de captar as imagens do relógio.

 

Freud escreve em 1919 no artigo Das unheimliche. Esta palavra, após a publicação de Freud, expande a sua significação e se torna além de uma palavra um conceito. De difícil tradução em francês, por exemplo, foi traduzida por Inquietante Familiar. Outro traduziu por Inquietante Estrangeiro e Inquietante somente. Em espanhol foi traduzido por Sinistro, Ominoso, em italiano O Perturbante e em português na publicação da primeira coleção freudiana, foi traduzida por O Estranho e atualmente, na publicação da Companhia das Letras, foi traduzida como O Inquietante, e na edição da editora Autêntica como Infamiliar. Termo e conceito de complexidade tal que aparecem sempre novas traduções/interpretações. Embora fieis ao original, nenhuma tradução é perfeita. O Un, em alemão significa, partícula de negação, enquanto heimliche significa partes conhecidas, íntimas, sensíveis, familiares, ou conhecidas. Assim a “ambiguidade” presente já no título do ensaio de Freud para descrever o processo psíquico presente em determinado evento em alguma experiência de qualquer ser humano neurótico é o estranhamento, a inquietação, diante de algo, ao mesmo tempo novo e antigo, conhecido e desconhecido, estranho e familiar. Infamiliar é aquilo que nos provoca angústia e horror, é tudo que deveria permanecer escondido, oculto e, de repente, vem à tona.  Como outros grandes escritores e filósofos como Schopenhauer, Freud transforma o adjetivo em substantivos, modifica o uso de adjetivos e advérbios em um trabalho importante com a linguagem. Assim se vê no exaustivo trabalho filológico-lexical que Freud realiza no início do artigo citado. Mais do que lingüista, ciência que viria a se desenvolver e firmar anos mais tarde com Suassure, ou filósofo, que o autor não desejava ser, ele queria confirmar ou comprovar a divisão psíquica, a existência de um outro território além da consciência. Assim também era seu propósito no artigo Sobre o Sentido Antitético das Palavras. Como nos dizem Gilson Ianini e Pedro Heliodoro Tavares no texto Freud e o Infamiliar, um dos capítulos do livro da editora Autêntica, chamado justamente O Infamiliar, referem-se ao texto de Freud: “Este texto que o leitor tem diante de si é uma das mais ricas demonstrações de como a psicanálise opera com sua mais fundamental ferramenta: a língua cotidiana, com suas camadas e sua história. Aqui Freud demonstra de modo inequívoco como se entrelaçam na própria escrita os registros teóricos e estéticos, como a linguagem científica e literária se interpenetram, ou ainda como o vivido e o fantasiado tecem relações complexas”.

Freud, com sua formação médica, desejava que suas descobertas em psicanálise se situassem no campo das ciências para depois descobrir que estas rejeitavam, desprezavam, justamente o que ele descobria, verificava e teorizava a partir da sua clínica, o inconsciente. Na filosofia ele também não encontrou  ressonâncias, mostrando uma distinção epistemológica da psicanálise com outros saberes. No entanto o diálogo, a troca, importante se faz entre a psicanálise e a matemática, com os novos conhecimentos como a topologia e a lingüística, a história, a lógica e com a antiga aliada, a literatura e as artes em geral.

No ensaio Unheimliche (Infamiliar) Freud recorre a uma novela para ilustração do fenômeno que ocorre no aparelho psíquico. O internauta Lucas Furlan, formado em Comunicação Social, resumiu assim a novela utilizada por Freud O Homem da areia, publicada em 1816.

Nela, E. T. A. Hoffmann (Ernst Theodor Amadeus Hoffman) Hoffman narra a crescente insanidade do personagem Natanael, graças ao seu medo da figura folclórica do Homem da Areia (Der Sandmann, no original alemão). Em uma versão da lenda, ele é apenas o responsável por jogar um pouco de areia nos olhos das pessoas, fazendo com que elas fiquem com sono e adormeçam; em outra, ele é um ser maligno que arranca os olhos das crianças que não querem dormir, e as leva para servir de alimento para a sua família que vive na lua. É esta segunda versão que Natanael, ainda criança, ouve de sua babá.

O pavor que o garoto sente do Homem da areia aumenta quando ele começa a acreditar que a criatura está convivendo com sua família, disfarçada como o advogado Coppelius. Depois que uma tragédia acontece, Natanael passa a ter certeza que O Homem da Areia/Coppelius tem como objetivo impedir sua felicidade. Essa idéia ganha força quando o protagonista, já crescido e estudando fora, reconhece seu inimigo usando outra identidade. Em O Homem da areia, Hoffmann trabalha com temas caros ao Romantismo, como o conflito entre loucura (representada através de Natanael) e razão (personificada em Clara, a noiva do protagonista), e paixões fulminantes e proibidas. Mas a história, ao mesmo tempo, é muito original: ela começa como uma novela epistolar (ou seja, narrada através de cartas) e depois muda para um relato em terceira pessoa. O autor também insere um elemento inesperado, que se tornaria recorrente na ficção científica tempos depois. O Homem da areia não chega a dar medo, mas é uma leitura muito relevante e que se tornou extremamente influente com o passar dos anos.

Entre os admiradores de Hoffmann estão autores como Edgar Allan Poe, Dostoiévski, o brasileiro Álvares de Azevedo e até Sigmund Freud, que, como disse, utilizou o texto do autor alemão como referência para o seu ensaio O Infamiliar. No romance o horror, a incerteza que se apossa da criança Nathanael acontece quando o oculista ambulante G. Coppola lhe oferece óculos. Ele compra um binóculo para avistar o apartamento do professor Spalanzani, cuja bela filha é  Olímpia sempre imóvel e misteriosa e objeto da paixão de Nathanael. Por ai continua a novela num intrincado desenvolvimento entre associações, condensações, deslocamentos, alucinações, interpretações, retorno do recalcado, que dão à novela seu caráter fantástico, infamiliar. Freud, textualmente destaca que o infamiliar da ficção, da criação literária é muito mais rico do que o infamiliar vivido já que neste abrange-se toda a totalidade e pode, com a liberdade literária, ser mais extensamente apresentado sem necessidade da prova de realidade. As vezes o bom texto literário nos faz reagir às suas ficções tal como reagiríamos à nossas próprias vivencias e quando nos damos conta já é tarde demais. Quanto frio na barriga, quanto estranhamento já me aconteceu com a literatura, ou com outras criações como o cinema e até mesmo um quadro, uma pintura.

A idéia de fantástico como uma literatura de fantasia está coerente com as afirmações da psicanálise, que dizem que nosso aparelho psíquico apresenta diferentes dimensões no acesso e na apreensão da realidade. Lacan as nomeou de Real, Simbólica e Imaginária. Aquilo da realidade que não é apreendido é ficcionalizado. Lacan considera a fantasia como uma escrita do real e esta enodura o desejo com a realidade, o imaginário com o simbólico. Portando a fantasia, ao mesmo tempo vela e desvela o real. Esconde e apresenta o desejo. A literatura do gênero fantástico produz movimentação do afeto de angústia possibilitando uma fruição estética. E abrindo caminhos para novas criações, dando passagem a conteúdos desconhecidos. Assim, os estudiosos apontam a aproximação do fantástico com o inconsciente. A condição para o nascimento da literatura fantástica está no iluminismo, que suplanta uma idéia teocêntrica do mundo, condições também que vão possibilitar a criação da psicanálise freudiana no inicio do século XX, incorporando os elementos desprezados pelo pensamento científico e cartesiano, os restos diurnos, os sonhos, os equívocos, os enganos, as desrealizações, a loucura e a desrealização de elementos que eram incluídos ou, mesmo matéria, da literatura fantástica.

A literatura fantástica, para os pesquisadores, se inicia no final do século XVIII na Inglaterra, quando o aristocrata e romancista Horace Walpole (1717-1797), lança em 1764 o livro O Castelo de Otranto, considerado pelos teóricos da literatura como o primeiro livro do gênero fantástico, ou pelo menos com as sementes deste gênero. O cenário é lúgubre e escuro de um Castelo medieval na Itália, povoado de entidades sobrenaturais da Idade Média, sem, no entanto, abandonar uma certa racionalidade já presente na Idade Moderna. Dois outros livros em diferentes países publicados pouco tempo depois seguem e desenvolvem este gênero. O Diabo Apaixonado, do francês Jacques Cazzote (1719-1772), publicado em 1792, foi um grande marco neste gênero de literatura, explorando o “sobre natural”. O autor, monarquista, foi guilhotinado pela revolução de 89. Outro marco literário, considerado uma novela policial é O Manuscrito Encontrado em Saragoza, do polonês Jan Potocki (1761-1815), lançado em 1805, é considerado uma obra prima. Um romance picaresco, soturno, com cenas eróticas, policiais e rasgos filosóficos, enfim, muitas narrativas num único livro.

Especialistas ensinam que a literatura fantástica não se constitui num gênero autônomo, se misturando, se apresentando com outros gêneros com os quais pode se confundir. Ele se situa entre o maravilhoso e o estranho. O maravilhoso é considerado aquele em que o sobrenatural é aceito como real, e o estranho tem o seu conteúdo sobrenatural explicado. Estes estudiosos apontam a existência de subgêneros transitivos: estranho-puro, estranho-fantástico, fantástico-puro, fantástico-maravilhoso, maravilhoso-puro. No Brasil nosso manancial fantástico está no anedotário, nas lendas, no folclore, misturando e trançando elementos culturais europeus, africanos e indígenas, formando um universo, uma cosmologia específica que acho, a Semana de Arte Moderna acontecida em 1922 quis valorizar.

Fizemos uma aproximação da psicanálise com a literatura fantástica mas é importante destacar que são campos diferentes. Um de seus pontos de contato é a preocupação estética nos modos de sentir e pensar. O objetivo da psicanálise no meu entendimento não é apenas poético ou estético, mas sim ético. Ambos trabalham no campo da linguagem. Lacan, lendo Freud, deduz que o inconsciente é estruturado como linguagem. O advento da linguística, que aconteceu simultaneamente Freud, veio clarear o que este dizia a respeito da condensação, deslocamento, metáfora, metonímia e outros conceitos que a nova ciência nos ensinou para melhor ler a psicanálise freudiana e os fenômenos psíquicos. Por tudo isso Lacan dedica todo um seminário para a obra de Joyce, o Ulisses. Neste seminário riquíssimo, Lacan mostra como a escrita estrutura J. Joyce. Esta força estruturante, reparadora e “curadora” da escrita já tinham sido identificadas por Freud em Goethe ao escrever a sua obra mundialmente conhecida: Os Sofrimentos do jovem Werther.


José J. Veiga e Luiz de Aquino

Quem me apresentou o grande escritor goiano, pois eu tinha lido apenas dois dos seus livros, foi o militante cultural, escritor e poeta, membro da Academia Goiana de Letras, Luiz de Aquino Alves Neto, que usa o nome artístico de Luiz de Aquino. É ele, o amigo a quem José J. Veiga deixou seu acervo e biblioteca para que dela fosse o guardião. Cumprindo a promessa o amigo perenizou o acervo de mais de mil e duzentos livros, incluindo em outros idiomas. Luiz de Aquino conquistou um espaço exclusivo e apropriado no SESC-Goiânia, inaugurado em 2007 – Espaço José J. Veiga –, que está aberto à visitação, consulta e pesquisa. No Espaço se encontra um busto do autor e uma duplicata se encontra no espaço cultural Oscar Niemeyer em Goiânia. Luiz de Aquino foi o primeiro escritor goiano a utilizar o meio eletrônico para divulgação da arte literária com o blog:HTTP://penapoesiaporluizdeaquino.blogspot.com. Senhor de múltiplas atividades, é jornalista, colaborando com vários jornais e revistas, assessor de imprensa de vários órgão em Goiás. Ele nasceu nas águas quentes de Caldas Novas, talvez por isso tenha se graduado em Geografia pela PUC-Go. Este generoso conterrâneo foi minha fonte de informações dos aspectos curiosos e biográficos do José J. Veiga.

Ele nasceu José Veiga, vindo ao mundo no dia de Iemanjá do ano 1915, em pleno verão seco e quente do Centro-Oeste do Brasil. Seu primeiro choro para a vida aconteceu numa fazenda perto de Corumbá-Goiás ao lado da estrada que levava a Pirenópolis, Go-225, que hoje leva o seu nome: Rodovia Estadual José J. Veiga.

José J. Veiga era filho de Luis Pereira Veiga e de Maria Marciana Jacinto Veiga. O pai o registrou com José Veiga. Ficou órfão de mãe muito cedo aos 12 anos indo com isso morar com parentes na capital do que era chamada Vila Boa de Goiás, hoje denominada Cidade de Goiás. Aos vinte anos vai para a capital federal o Rio de Janeiro, onde fez o curso de direito. Apesar de um pouco tímido e comedido faz amizades no meio literário e se prepara intelectualmente. Aos trinta anos de idade vai para Londres trabalhar como interprete na rádio BBC uma das mais importantes do ocidente por seu alcance e tradição, onde fica por cinco anos e retorna ao Rio de Janeiro, ingressando no jornalismo no ano de 1950. Publica seu primeiro livro Cavalinhos de Platiplanto em 1959, livro que havia ganhado o segundo lugar num concurso literário. Bem mais tarde, já amigo de João Guimarães Rosa, foi convencido por ele a adotar um nome cujo resultado apontado pela numerologia, antiga “ciência”, lhe traria bons agouros. Em seu estudo da numerologia Guimarães pegou os nomes completos dos pais e não aproveitou o Pereira do pai, nem o Jacinto da mãe e acrescentou apenas um J no nome do escritor e assim ficou. Talvez influenciado pelas superstições de Guimarães Rosa, ele passa a adotar os títulos dos seus livros preferencialmente com quatro palavras. Inusitado, como são as obras de Veiga, é como começou sua amizade com Guimarães. Conta-se que a amizade aconteceu não por motivos intelectuais ou literários mas, fantasticamente ao estilo veiguiano, por causa de um animal, o gato. Aracy esposa de Guimarães Rosa e Clérida, esposa de José J. Veiga, tinham um veterinário comum. Certa feita, a Aracy procurou o veterinário que se encontrava doente e não podendo atender recomendou que ela procurasse a Clérida Veiga que tinha um bom conhecimento para cuidar deste animal. O gato da dona Aracy se salvou e a amizade entre o casal foi consolidada. Apesar de certa timidez do goiano passaram a se freqüentar semanalmente e a dividir gatos e literatura. José J. Veiga é detentor do prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras e do prêmio Jabuti com o livro De Jogos e Festas, que contém três novelas e outros. Traduzido para vários idiomas, José J. Veiga escreveu dezenas de livros que ainda estão desconhecidos do grande público.

Veiga publicou mais de vinte títulos, além dos já citados antes, que foram objeto de estudos acadêmicos e que resultaram em dissertações e teses em diversas universidades pelo país afora, algumas encontráveis na internet. Um trabalho de pesquisa muito interessante e profícuo é o de Irene Severina Rezende, em sua tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo em 2008, cujo título é  O Fantástico no contexto sócio-cultural do século XX: José J. Veiga (Brasil) e Mia Couto (Moçambique). Um trabalho de fôlego publicado em mais de 241 páginas, afirma no seu momento de conclusão”. Mia Couto e José J. Veiga assumem posições claras quanto ao que defendem: países livres de opressões, de guerras, de proibições e inseridos no mundo que detém as grandes decisões. Os dois optam por narrativas fantásticas, diferentes da narrativa trivial, e constroem suas histórias impregnadas de potencial filosófico e ideológico. Há em suas obras uma mostra do anseio das sociedades de cada época. Em José J. Veiga, um jeito brejeiro do goiano e bem brasileiro de todos nós, mas de uma maneira universal; em Mia Couto, nas descrições originais, a presença do homem em suas relações umbilicais com a terra”.

A temática dos contos de José J. Veiga é a relação do sujeito com a realidade. A opressão provocada pelos modos e instrumentos da atualidade são metáforas sutis que o autor utiliza para falar da subjugação, da alienação a que, discreta ou explicitamente, nos submetemos. A introdução da modernidade destruindo os valores e modos até então vigentes. Os heróis dos seus contos, na maioria são anti-heróis que passam por processos, às vezes, penosos, para chegar à tomada de consciência e decisões. A realidade na sua literatura vai além da realidade sensível e observável, introduzindo motivações ocultas, elementos históricos conscientes ou inconscientes que influenciam no destino das pessoas e por isto da comunidade que o cerca. Passagens bruscas, cenários que se modificam, descrições físicas detalhadas que colocam o leitor dentro do ambiente, uma trama bem elaborada e envolvente enquanto desliza o enredo fazendo com que o leitor fique agarrado ao texto, se faça também personagem literário na medida em que o autor vai mexendo suas varinhas (mágicas ou, chamamos estilo) particulares para colocar o leitor em outro nível de consciência. Até que ele, o leitor, se pegue surpreendido por algo em si mesmo que é aceito e praticado pelos personagens como também se identifica com aspectos renegados, recalcados em si próprios. Ao retirar o leitor da ilusão do comando da realidade concreta, ao demonstrar que seus próprios atos realizados, através dos personagens, fornecem ao lado de certo conforto psíquico um incremento no caminho da humanização e civilização.  Interessante é destacar que muitos estudiosos têm discutido sobre o gênero literário produzido por este goiano. Apesar da extensa contribuição à literatura ficcional brasileira não há um consenso se seus livros seriam fantásticos, góticos, estranhos, maravilhosos, realismo ou apenas recheados de alegorias.  Apesar desta questão que, acho puramente formal e acadêmica, a sua obra, em formato de novelas, contos, livros chamados infantis, e textos de consumo rápido como os jornalísticos, José J. Veiga revela, na sua capacidade e estilo em utilizar o ambiente, o ar, os elementos regionais e vivências infantis para trazer, refletir, apontar, denunciar, as grandes causas mundiais, os dramas humanos que acontecem e estão presentes em qualquer lugar do planeta. Utilizando de recursos da estrutura do sonho, da distorção onírica, do humor, da ironia, da paródia, prendendo o leitor, revela a sua habilidade de escritor. Tudo isso faz de José J. Veiga não apenas um grande escritor, mas um escritor atemporal e universal.

 

Referências Bibliográficas

 

Lacan, J.M.  Outros Escritos – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003 (Campo freudiano no Brasil)

Lacan, J.M. Escritos – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998 Campo freudiano no Brasil).

Freud, S. O Infamiliar e outros escritos. Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2019 (Obras incompletas de Sigmund Freud).

Ibid     Zahar Editores.  O Estranho, Volume 17.

Ibid     Zahar Editores. O Premio Goethe, volume 21.

Ibid     Zahar Editores. Pronunciamento a Thomas Mann em prefácio a Vida e obras de E. Allan Poe: Uma interpretação psicanalítica de Marie Bonaparte.

Vicentini, Albertina - O Sertão e a Literatura – Revista Sociedade e Cultura, Jan-Jun, 1998.

 

 

Ítalo Campos

psicanalista, poeta, Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória; Membro das Academias Espírito-santense e Uruaçuense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo.

 

 

* Palestra proferida na Academia de Letras de Vila Velha, em julho 2022.

 

quinta-feira, fevereiro 24, 2022

Mais uma trajetória premiada, que enche nossos olhos de felicidade.

Nosso poeta, @poetaluizdeaquino teve sua trajetória reconhecida pelo Governo do Estado de Goiás, através da Lei Aldir Blanc.
Que a cultura goiana seja abraçada e reconhecida por sua plena importância.
Viva, poeta!
(Laila Santoro)



sábado, fevereiro 19, 2022

1922 Leo Lynce e a Semana de Arte Moderna


Maria Clara, entre mim e o padrinho e  tio Pedro
Nolasco, da estirpe de Leo Lynce.


NOTA DO AUTOR: Ao tempo em que dou notícias do lançamento da antologia "Contos de 22", informo que notei, no texto aqui publicado e no livro em referênciua (no parágrafo que começa "Contudo, o movimento não..."), um erro que há de ser corrigido: a palavra "diagrama" em lugar de "anagrama". Assim, renovo a publicação, com o texto devidamente corrigido, com o meu pedido de desculpas ao leitor. A festa foi prestigiada por quase todos os autores e expressiva presença de nossos convidados, com a luxuosa apresentação do conjunto vocal Fé Menina. Fui surpreendido com um gesto emocionante de Maria Clara (bisneta de Leo Lynce e afilhada de seu tio Pedro Nolasco), que me ofertou um belo bouquê, com aroma e cores de despertar lágrimas neste autor, ato esse que ela disse ser "em nome da família" pelo meu texto, com foco no notável poeta pioneiro do modernismo em nossa terra. 



Semana de 40 anos

 

Para comemorar o centenário da Semana de Arte
Moderna (13 a 18 de fevereiro de 1922), a União
Brasileira de Escritores de Goiás convidou 22
associados a escrever contos sobre o evento na
Pauliceia Desvairada (epíteto de Mário de Andrade 
para a capital paulista).
Este é o meu:


A Semana de 40 anos!


 

O moço Cylleneo em 1914. É o nosso
primeiro poeta modernista.


  

 

De um ponto favorável, ou seja, não sendo visto nem sentido com clareza pelas pessoas, acompanho a vida de um pacato lugarejo no Sul de Goiás. Isso faz de mim um espectador privilegiado e, ao meu modo, sei como e quando interferir em favor de melhores condições nesse povoado.

Contarei, a seguir, aspectos de seu cotidiano, numa realidade carente de recursos e iniciativas – daí os meus palpites, cada um como mola a ativar algum movimento.

 

1920 – Caldas Novas e a ponte São Bento

 

Manhã cinzenta, esta, de céu fechado e chão lamacento. Faz frio e o chão é mole, baboso, escorregadio. As ruas cheias de poças, algumas alongadas pela trilha das carroças com roda de madeira. Tem também os caminhões e dois automóveis, que têm rodas de borracha chamadas de pneus, mas esses carros com máquinas não levam vantagem sobre as carroças e charretes, as máquinas atolam mais – porém, os caminhões que passam às vezes por aqui não ficam presos na lama, porque nos tempos de chuva colocam correntes nas rodas e assim escapam do grude dos atoleiros. Os caminhões levam sacas da produção de arroz, feijão, mandioca e milho para Ipameri, onde tem a estação do trem e de lá essa carga segue para Minas e São Paulo. Na volta, os caminhões trazem produtos das fábricas de São Paulo ou dos portos do Rio de Janeiro e de Santos para as lojas daqui e de Morrinhos.

 

Minha presença é pouco notada. Aliás, ninguém me olha, ninguém me vê. A bem de ser justo e sincero, sou quase imperceptível: alguns me ouvem, não em som aberto e nítido, claro, límpido: costumo soprar sugestões e conselhos, ou apenas palpites ocasionais e determinantes ao ouvido dos seres, em especial dos capazes de impor decisões por novos atos e feitos que venham em favor da melhoria de vida da comunidade.

 

O coronel Bento de Godoy pediu ao governo que fizesse uma ponte no Corumbá, na divisa de Caldas Novas com Ipameri, mas o presidente do Estado disse que não tem recurso para a ponte, por isso o coronel mudou o pedido e trouxe de lá a concessão para construir e aplicar pedágio para recuperar o investimento. A ponte está em construção, estão fazendo as cabeceiras dos dois lados, em alvenaria forte para aguentar o peso. Um engenheiro estrangeiro falou numa ponte pênsil, que vai levar madeira de lei e cabos de aço. Ele explica que não vai ter colunas dentro d´água porque a garganta onde se constrói a ponte é muito estreita e de grande profundidade, por isso a tal de ponte pênsil – que será sustentada por fortes cabos de aço. Por enquanto, os caminhões e carroças grandes levam a produção das roças até a beira do rio e passam para o outro lado na balsa; quando a ponte estiver pronta, vão passar direto, vai ser só pagar o pedágio e seguir viagem.

 

Incomoda-me tanta chuva. Mas, dirão as senhoras e os senhores leitores, se não me molho nem sinto frio, porque me incomodo com a chuva? Simples: muitos são os entraves, os incidentes e mesmo os acidentes em que minha presença, minha quase imperceptível presença, se faz necessária e, não raro, decisiva. Estimulo a criatividade dos que acodem, inspiro força física aos que dela necessitam para solucionar determinados impasses – como uma carroça atolada, alguém ferido que necessite de remoção e não tem condição individual para isso et cetera.

 

O dia está terrível! Ninguém aguenta tanta chuva! Os caminhões que vêm de Ipameri trazem também doentes e viajantes curiosos para tratar ou apenas conhecer as águas. Chegam cheios de dúvidas, não acreditam que há minas d’água quente no leito e nas margens do córrego das Lavras. Este nome é por causa da mineração. Quando chegaram aqui, os bandeirantes batiam bateias pelo aluvião do córrego procurando ouro. Acharam um pouco, pouco mesmo; a riqueza da terra é a temperatura das águas.

 

Cheguei a vê-los, naqueles primórdios, no afã de bamburrar, colhendo muito de ouro em pó ou, eventualmente, uma expressiva pepita. Deliciavam-se, mesmo, no prazer do banho quente à margem, relaxando a musculatura cansada e sentindo aumentar o desejo sexual, para saciá-lo com a parceira costumeira, com um rapazola que ainda não tivesse sua definição e preferência ou, ainda, dando vazão solitária ao imaginário.

 

Gosto de ver a chegada dos caminhões e carroças trazendo produtos da indústria e viajantes para os banhos. Como disse, uns vêm pela saúde, outros pela curiosidade. Os primeiros são chamados de pacientes, os outros de turistas que, dizem, é algo que vai acontecer muito no futuro. Sei não... Fosse para receber tanta gente aqui e se isso fosse render dinheiro para a cidadezinha, o trem teria vindo p’ra cá, mas preferiram manter a rota e levar a linha para os rumos do Roncador. Estão fazendo lá a estação e já surge por lá um povoado, uma cidade nova. Por isso o coronel Bento teima com a tal ponte; afinal, Ipameri está a umas dez ou doze léguas, nem é tão longe – o problema é o Corumbá.

Viajantes que vêm de Minas e de São Paulo costumam trazer jornais. Ipameri também tem jornal. E todos são interessantes, como o Lavoura e Comércio, de Uberaba, além dos que chegam da capital de São Paulo e da capital federal, o Rio de Janeiro. Comerciantes gostam dos jornais para, depois de lidos por eles e clientes que frequentam suas lojas para os dedos de prosa de todas as manhã, servirem de papel de embrulho.

Em Caldas Novas, os doentes pobres acomodam-se em ranchos simples num alinhamento novo chamado de Rua da Palha, por causa da cobertura dessas casinhas com folhas de palmeiras, que são muitas na região. Os mais afortunados hospedam-se na pensão que tem no largo da Matriz. E é ali, no salão de entrada, que os viajantes vindouros costumam deixar jornais, que leram durante a viagem de vinda. Cadernos e folhas são separados e passam de mão em mão para a leitura de todos, ávidos de novidades e de assuntos para as conversas naquele ermo: um povoado pequeno que, menos de dez anos atrás, ganhou foro de município.

 

Ponte São Bento (sobre o rio Corumbá,
entre Caldas Novas e Ipameri, em 1920).
 


Gostei das ações, das agitações e das reuniões que anteciparam e coincidiram com a outorga legal que fez do arraial de Caldas Novas um município autônomo, em 1911. Fiz zumbidos oportunos e saudáveis nos ouvidos internos do coronel Bento, de seu sobrinho José Teófilo, do coronel Orcalino Lopes de Morais e outros notáveis da pequenina comunidade chamada, na época, de caldense; com o tempo, fez-se necessário aplicar-se o gentílico apropriado, diferenciado de outras localidades que se valiam do mesmo termo, por isso a mudança foi necessária e oportuna, corrigido para caldas-novense.

 

E nestes tempos, seu prefeito é um engenheiro civil, sobrinho do coronel Bento, nascido em Estrela do Sul, em Minas, e formado no Rio de Janeiro. Esse moço é filho de importante figura do Triângulo Mineiro, Teófilo de Godoy, o pioneiro que buscou na Índia uma raça exótica de bovinos, o zebu. O engenheiro José Teófilo só ostentava o nome civil em documentos, como seus autos e lados profissionais, além da papelada da Prefeitura, pois, para toda a cidade, e até sua morte, seria conhecido como Juca. Juca de Godoy, engenheiro e poeta.

Um ano depois dessa invernada de chuvas persistentes, deu-se a inauguração da ponte, no ponto em que o rio Corumbá se estreita e – dizem – torna-se mais profundo o seu leito; o local é chamado de Rochedo, referência óbvia às colunas de pedras escolhidas como alicerces para as cabeceiras da ponte pênsil. Seu nome, Ponte São Bento, é uma evocação ao santo de que o coronel Bento de Godoy é devoto.

 

1922 – A Semana de Arte Moderna e uma nova cidade na ponta da linha

 

Neste ano de 1922, no salão da Pensão Central, no largo da Matriz, diverti-me com os comentários entre sorrisos dos leitores de um exemplar do Correio Paulistano. Era uma reportagem interessante, falando numa tal “arte moderna” que um grupo de escritores, músicos e artistas da pintura e da escultura e outros promoveriam na Pauliceia. E seria no mês que vem, quero dizer, fevereiro. Eu não preciso de ler o jornal, pois basta que estejam próximos e já me informo de seu conteúdo; os leitores na pensão, porém, ficaram curiosos: o que é arte moderna? Se um quadro foi pintado hoje, ou se uma música foi composta ontem, é claro que é moderna. Sei não... – pensavam, intrigados, esses leitores.

Um dos recém-chegados, justo o portador do grande jornal paulistano, resolveu esclarecer o tema. O homem, aparentando 30 anos, apresentou-se como “advogado e beletrista”, e começou a discorrer sobre o que vinha a ser a tal arte moderna: nas letras, o escape das formas tradicionais – na poesia, por exemplo, caiu o rigor das métricas e acentuações tônicas, como também as rimas seriam ignoradas ou até mesmo abolidas. No conteúdo, uma drástica transformação na contística, nos romances e também nos versos; qualquer assunto passa a ser interessante e digno da arte das belas letras. No desenho e na pintura, como na escultura, as formas seriam mexidas de modo radical! A figuração perderia muito de sua importância, as cores viriam intensas nos tons e nas variedades, o artista passa a desfrutar de sua plena liberdade criadora etc. e tal, e na música muita novidade viria, também, pois o admirado maestro Heitor Villa-Lobos era um dos mais animados dentre os participantes do importante evento.

Não faltou quem questionasse: mas isso vai continuar se chamando arte? O beletrista, em defesa de sua adesão ao tema, afirmava que sim; e como advogado, evocava o direito às liberdades da criação, pelo fim dos rigores escravagistas que cerceiam os voos da imaginação e exaltava “o abuso dos sonhos em seus voos sem limites”.

 

Esse beletrista doutor em leis e processos foi meu escolhido nesse fim de tarde, comecinho de noite. Ele próprio surpreendeu-se por tão espontânea e eficaz inspiração, buscando palavras apropriadas e de modo a ser bem compreendido por aquele público, no qual, sem dúvida, haveria pessoas sem alcance acurado ante um discurso pomposo; era preciso falar claro, de modo a ser bem compreendido e, convenhamos, era esse um dos propósitos nos argumentos de Oswald de Andrade.

 

Na capital do Estado, a antiga Vila Boa que, agora, se chama Goiás (na escrita da época, Goyaz), uns poucos letrados destacam-se por seus feitos estampados em parcos jornais locais. Nos primeiros anos do século, por volta de 1905, circulava até mesmo um jornal feminino, A Rosa, no qual destacavam-se duas meninas-moças, Leodegária (de Jesus) e Aninha (Ana Lins dos Guimarães Peixoto), poetisas.


Em 1922, poucos letrados – quase sempre advogados e alguns farmacêuticos, que, por extensão e necessidade da sociedade, eram também professores – praticavam as letras. Poucos eram também os artistas plásticos em lides de escultura e pintura; um grau de artesanato marcava os afazeres de costureiras, alfaiates e finalizadores das construções civis.


Lá em São Paulo, capital de província – depois Estado – importante na política e na economia desde os tempos coloniais, a vida cultural se agitava sob ações dos escritores Oswald e Mário, ambos de Andrade (sem parentesco), Menotti Del Picchia e Guilherme de Almeida, entre outros. Também de realce era a participação de vários artistas plásticos, como Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Victor Brecheret e Tarsila do Amaral. O maestro Heitor Villa-Lobos há de ter sido a maior referência entre os músicos.

 

1922 em Goiás: um poema diferente, fora dos prumos românticos e parnasianos

 

Contudo, o movimento não atingiu Goiás. Soube-se do acontecido, comentou-se a novidade. A mudança – como toda mudança – amedronta; e amedrontou. Tanto é que, seis anos depois, o juiz de Direito Cylleneo de Araújo, ao publicar seu único livro (em vida), Ontem, foi tido como o pioneiro do modernismo em Goiás. Cylleneo, em seu ofício de poeta, construiu um codinome com um anagrama de seu prenome: Leo Lynce.


Obelisco - marco de fundação de Pires do Rio, Goiás, 1922.


Nascido em Pouso Alto, recebeu o nome de Cylleneo Marques de Araújo Valle. No ano de completar o décimo aniversário é internado no Seminário de Ouro Fino, pequena e importante localidade bem próxima a Vila Boa, capital do Estado. Em breve o seminário era transferido para Uberaba, em Minas; o menino segue para Bela Vista de Goiás, nova residência de sua família após a morte do pai. O menino – ele diz isso em um poema – teria herdado da mãe os dons que o levaram à escrita literária.

 

Caldas Novas voltara a um estressante marasmo após a inauguração, em 31 de janeiro de 1921, da Ponte São Bento, que a aproximava da estação ferroviária de Ipameri. Alguns jovens como Oscar e Celso, liam notícias sobre os artistas modernistas de São Paulo, mas não tinham nada a fazer senão trocar ideias entre si. E o coronel Bento, por volta de 1925, procurou seu adversário político Luís José Pereira e propôs-lhe uma sociedade, uma empresa para construir uma usina hidrelétrica que, em 1927, iluminaria a pequenina cidade das termas. E eu, na existência etérea, troquei o foco; percebi a inquietação daquele Cylleneo e não o perdi em minhas observações.


Leo Lynce por Amaury Menezes




 

Aos 15 anos, publica seus primeiros versos. Nesse mesmo ano, 1900, o jornalzinho de sua estreia deixa de ser desenhado e entra na fase impressa; Cylleneo cria um Grêmio Instrutivo, com rapazes (como ele) ávidos de conhecimentos; e passa a ser publicado nos jornais AraguariGazeta de Uberaba e Lavoura e Comércio (também de Uberaba). Fez-se, ao fim da adolescência um peregrino sem receios, pronto a deslocar-se e adaptar-se a novos sítios e ares. Tais andanças por Goiás (ele gosta de escrever Goyaz) e outras terras, umas meio distantes, outras distantes demais, rendem-lhe um valoroso conhecimento – o que se tem por autodidatismo. E o natural, em tais casos, é um aprendizado espontâneo, processo que assegura, mais que a memorização, a fixação indelével do que se viu (e se assimilou). Antes dos 20 anos, é nomeado Juiz Municipal para a Comarca de Bela Vista – que cobria uma grande área no Sul de Goiás, um Estado cujo território supera os 700 mil quilômetros quadrados e uma extensão superior a dois mil km, de Norte a Sul. Funcionário hábil em questões de terras, assume direções de jornais aos 21 anos e abrevia seu nome para Cylleneo de Araújo. Ato contínuo, adota o nome literário pelo qual se faz conhecido – Leo Lynce (anagrama de seu nome). Envolve-se em política, é perseguido, muda-se para o Rio de Janeiro, depois para Uberaba, retorna a Goiás e vive em várias cidades (Jataí, Palmeiras de Goiás, Catalão; elege-se deputado e, na capital (Cidade de Goiás), começa o curso de Direito. Vive, por curto tempo, em Campos de Goitacazes, no Estado do Rio, retorna a Goiás.

Vida muito ativa, pois, com intensa atividade no jornalismo e na Instrução. Em 1922, empolga-se com as notícias acerca da Semana de Arte Moderna – é nesse mesmo ano que produz o poema Goyaz (que não pode ter seu título mudado para a grafia Goiás, pela exaltação do Y na terceira estrofe. O poema, com estrofes ora de seis versos, ora de cinco e, ainda, com sete versos, tem nítida integração com os propósitos dos literatos do movimento, em especial com as ideias dos Andrade – Mário e Oswald.


 

1945 – Resolvi nascer, que a vida
etérea impedia-me de praticar 
a escrita com grafite ou 
 tinta sobre o papel


Viriam outros tempos tediosos: um golpe político em 1930, uma efervescência em 1934, muito barulho em 1937 e. no final da década, uma guerra por demais sangrenta na Europa, com reflexos inevitáveis no Novo Mundo. O conflito teve reflexos amplos, chegando a perturbar a paz dos pachorrentos sertões de Goiás. Por tantas assim, decidi por outra coisa – materializar-me por estes cerrados e veredas, com prioridade para as tépidas águas das Caldas – as Velhas, as Novas e as de Pirapitinga.

Nasci, então.

 

Alguns estudiosos entendem como marco da modernidade literária em Goiás com sendo 1928, ano da publicação do único livro, em vida, pelo autor: Ontem. O poema Goyaz, porém, foi escrito em 1922, nas proximidades de 9 de novembro – data de fundação da cidade de Pires do Rio, nascida em torno da nova estação “no fim da linha” da Estrada de Ferro Goiás.

Aqueles seis anos de intervalo entre A Semana e a publicação de Ontem foram ignorados pelos poetas locais, ainda fixados nas marcas do Romantismo e do Parnasianismo.

 

Apenas 41 anos...

 

E a Semana de Arte Moderna, em São Paulo, refletiu-se em 1922 na pena sensível de Leo Lynce, quando um pequeno grupo se reunia em torno de um obelisco para marcar o surgimento de uma nova cidade em ponta de linha férrea, nestes confins de Goiás; críticos e pesquisadores precisaram de um livro em 1928 para saber dessa estreia, que só encontra eco, de vez, a partir de 1963, com a surpreendente revoada de versos livres por um bando de jovens impertinentes que se identificavam como Grupo de Escritores Novos.


Leo Lynce em livros, ad imortalitatem!

Ainda assim, e ainda desde 1963, não são raros os prosadores que insistem num linguajar anacrônico, com palavras em desuso desde os antecessores de Machado e Lima Barreto. Também ainda surgem poetas que elaboram uma narrativa curta o bastante para não passar de cinco linhas de prosa que, a esmo, são cortadas em supostos versos e espalhados na página – muitos deles, em nome de uma modernidade personalíssima que nada tem a ver com modernismo, sem pontuação e sequer com o uso de maiúsculas.

E a estes, surpreendentemente, retornam comentários e críticas feito alvíssaras em tons de retardos, expondo críticos sem lastro intelectual nem apego à arte das letras. Menos ainda a princípios os mais comezinhos da Última Flor do Lácio, conceito que tais beletristas podem bem atribuir a Bandeira – ou a Neruda, sabe-se lá!

 

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Retrato por Rosy Cardoso, 2021


Luiz de Aquinoda Academia Goiana de Letras.