“Dia que segue pacato, preguiçoso... Que bobagem! A preguiça é minha, porque o dia é sábado, as horas têm métrica rígida e o sol, seu maestro, é intransigente.
Melhor, pois, recomeçar.
Sábado, agosto, 16, e o ano é 2008. Ora, se o mês é oito, e o dia me dá o duplo, o ano contém dois e oito... Que os numerólogos decifrem! Não há de ser este um dia aziago, pois! Mas foi neste sábado, quando o dia nascia em Copacabana, que Dorival Caymmi saudou os orixás que fizeram corte para recebê-lo do lado de lá da alvorada.
Era infante, eu, quando ouvi pela primeira vez suas canções, e hoje sou um homem recém chegado à faixa dos velhos homens. Deliciei-me a infância, a adolescência, a juventude e os anos ditos da razão com suas canções de amor e Bahia, de mar e alegria.
A preguiça minha neste sábado prendeu-me a curtir as horas. E curti-as vendo os jogos de Pequim, em regozijo com os resultados brasileiros. É, sou desses que se empolgam com as coisas brasis, sejam elas do espírito ou da carne. É que o que faz bem à carne alegra o espírito, e penso também que o caminho de volta é verdadeiro. Por isso, já morria a tarde quando vi a notícia. Preferi me aquietar em mim, agradecendo a Deus por nos ter dado um artista de tanto poder! Sim... Deus é brasileiro e deve ter nascido na Bahia. Ou beijou as terras de São Salvador para acolher gente como Dorival.
Escalei meu domingo, então: vou ouvir tudo o que tenho em casa, em CD ou em vinil, da lavra de Caymmi. É que músicas dele têm poesia-de-lei e melodia dos deuses. Ou dos santos daquela boa Bahia. E se vier na voz encorpada dele próprio, melhor ainda!
Assim, será esse o meu domingo, dia em que Dorival Caymmi, que já se mudou para o céu dos bons, muda também de endereço na terra. Ele deixa o Posto Seis de Copacabana e vai morar em Botafogo, no imenso quadrante de São João Batista.
Do lado de lá do mundo, onde o sol nasce primeiro, os moços atletas continuam seus jogos. Há brasileiros a disputar medalhas, e muito especialmente os que correm no mar. Certamente, Caymmi torce por eles.
Eles, pois, que reverenciem também o nosso poeta das canções praieiras. Afinal, ele fez o mar ficar mais bonito”.
Por ser sábado, a crônica de domingo (17 de agosto), o DMRevista já estaria impresso àquela hora. Por isso a publicação ficou restrita ao blog em que divulgo escritos para amigos leitores eletrônicos. Mas eis que vem a notícia: faleceu a mulher de Dorival Caymmi, Adelaide Tostes... Melhor dizendo, Stella Maris Caymmi. Sim: a mocinha cantora que o baiano genial conheceu num programa de calouros da Rádio Nacional, no final da década de 1930, tinha esse nome artístico: Stella Maris (que, em latim, que dizer “Estrela do Mar”). Só podia ser! Não dá para imaginar Dorival Caymmi, o autor das incomparáveis canções praieiras, casado com alguém cujo nome não o ligasse ao mar. Afinal, “Marina” é uma de suas músicas mais cantadas e decantadas.
Pois bem, amigos meus! Dona Stella estava hospitalizada desde abril. E os dois se casaram em 1940! A morte do baiano mais carioca do Brasil (ou do carioca mais baiano; aqui, a ordem não altera o resultado) marcou-se pelo regozijo: Deus nos deu um homem daquela envergadura e permitiu que dele desfrutássemos por mais de noventa anos. O lado triste, porém, ficava dentro da família, mais precisamente na solidão que condenaria sua companheira à tristeza. Pensando assim, visualizei o velho cantor não com seus 94 anos completos, mas moço quarentão, tal como o vi, pela primeira vez, em programa de tevê de 1956: cabelos brancos e bigode preto, a declamar musicalmente, com voz densa e doce: “O mar / quando quebra na praia / é bonito, é bonito...”. Na minha imagem, lá vinha ele, de calça clara e camiseta de listras horizontais, violão na mão; invadia o quarto onde Dona Stella era assistida, tomava-a pela mão e dizia, do seu jeito: “Tá na hora, minha velha moça! Fizemos o tínhamos de fazer... Vem!”. E, de mãos dadas, estiraram uma caminhada sem pressa pela areia de Copacabana, estranhamente vazia neste teórico inverno tropical.