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terça-feira, agosto 05, 2008

Crônica intertextualizada de GISELE BADENES


Amendoeiras


Eu juro!! A foto fiz da minha varanda ontem, segunda-feira. Comprovem pela rua molhada, hoje o dia já amanheceu lindo novamente. Dia de preguiça, início de mês e inúmeras contas a pagar no banco me fizeram adiar o texto sobre as amendoeiras. Ancelmo Góis foi mais rápido no teclado e publicou em sua coluna de hoje fotos lindas da árvore que enfeita a cidade, criando um ar outonal europeu em pleno inverno carioca. Citou Rubem Braga que fez da amendoeira uma de suas musas inspiradoras e dizia que elas são "árvores desentoadas":

“Nunca estão de acordo entre si. Não se vestem nem se despem por igual. A da esquina ainda está frondosa, cheia de viço, mas a sua vizinha parece uma decoração de Copa do Mundo: há tantas folhas verdes quanto amarelas”
E eu, que estava pensando em escrever algo, que pelo menos chegasse perto do poético, inspirada na minha árvore preferida (ao lado do flamboyant), fiquei entre sem graça e intimidada.

Li em algum lugar que hoje é proibido plantar amendoeiras em zonas urbanas. De folhas caducas, são as vilãs dos bueiros e suas raízes podem estragar as calçadas.
Fico feliz que ainda há quem se encante com a árvore que generosamente se desnuda para cobrir o asfalto de vermelho, não de sangue, como estamos habituados a ver nos noticiários, mas de folhas que caem lentamente, riscando o ar num balé que só as folhas sabem fazer.
Quem sou eu pra ser poética depois de ler a crônica de Carlos Drummond de Andrade “Fala, amendoeira”. Hoje o espaço é dele. Fala, Drummond:

«Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza - essa natureza que não presta atenção em nós. Abrindo a janela matinal, o cronista reparou no firmamento, que seria de uma safira impecável se não houvesse a longa barra de névoa a toldar a linha entre o céu e o chão - névoa baixa e seca, hostil aos aviões. Pousou a vista, depois, nas árvores que algum remoto prefeito deu à rua, e que ainda ninguém se lembrou de arrancar, talvez porque haja outras destruições mais urgentes. Estavam todas verdes, menos uma. Uma que, precisamente, lá está plantada em frente à porta, companheira mais chegada de um homem e sua vida, espécie de anjo vegetal proposto ao seu destino.

Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais, alguns fios eléctricos lhe atravessam a fronde, sem que a molestem, e a luz crua do projetor, a dois passos, a impediria talvez de dormir, se ela fosse mais nova. Às terças, pela manhã, o feirante nela encosta sua barraca, e ao entardecer, cada dia, garotos procuram subir-lhe o tronco. Nenhum desses incómodos lhe afeta a placidez de árvore madura e magra, que já viu muita chuva, muito cortejo de casamento, muitos enterros, e serve há longos anos à necessidade de sombra que têm os amantes de rua, e mesmo a outras precisões mais humildes de cãezinhos transeuntes.

Todas estavam ainda verdes, mas essa ostentava algumas folhas amarelas e outras já estriadas de vermelho, gradação fantasista que chegava mesmo até o marrom - cor final de decomposição, depois a qual as folhas caem. Pequenas amêndoas atestavam o seu esforço, e também elas se preparavam para ganhar coloração dourada e, por sua vez, completado o ciclo, tombar sobre o meio-fio, se não as colhe algum moleque apreciador do seu azedinho. E como o cronista lhe perguntasse - fala, amendoeira - por que fugia ao rito de suas irmãs, adotando vestes assim particulares, a árvore pareceu explicar-lhe:

– Não vês? Começo a outonear. É 21 de Março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio do outono.Cumpro meu dever de árvore, embora minhas irmãs não respeitem as estações.

– E vais outoneando sozinha?

– Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e, como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me fustiga pela madrugada, uma suspeita de inverno.

Somos todos assim.

– Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exactamente o que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza.

Não me entristeças.

– Não, querido, sou tua árvore-da-guarda e simbolizo teu outono pessoal. Quero apenas que te outonizes com paciência e doçura. O dardo de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso: parábolas, ritmos, tons suaves... Outoniza-te com dignidade, meu velho.»

Carlos Drummond de Andrade - Fala, amendoeira (1957)

3 comentários:

Unknown disse...

Não há como não se emocionar com esta crônica, mesmo porque nos dias de hoje, agitados e conturbados ainda bem que existem pessoas que param para observar o espetáculo que a natureza tem para nos mostrar todos os dias.
Neusa

Marluzis disse...

Maravilha nossa querida Gisele aqui na sua página. Gosto quando ela mexe com a minha sensibilidade e junto com Drummond tocou-me inteiramente.
Levaram-me a tantos recantos... minha infância, minha rua, praias, cores, sombras, meu momento de vida e principalmente à pensar em renovação. Isso as amendoeiras sabem fazer como ninguém... e rápido.
Lindo demais !

Suaramis disse...

Olá, gostei do seu blog e gostaria de compartilhar minhas poesias com vocês: http://suaramis.blogspot.com/

Tenha um ótimo dia!
Suaramis.