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quarta-feira, outubro 20, 2021

Intimidades literárias

 

Os amantes, de René Magritte


Intimidades literárias

 

O homem é mais, muito mais, que um ser semovente, pensante e inquieto. Busca sempre os espaços, muitos espaços, e, com igual frequência, aglomera-se, associa-se, organiza-se, faz o bem e faz o mal. É um ser de dois gêneros – e suas variáveis – que primordialmente vive para a reprodução, ciente de que sua vida tem um começo e uma única determinante – a morte.


Entre o nascer e o desenlace, é-lhe dado todo o direito às escolhas. E o ser humano, em ambos os gêneros, faz tais escolhas todos os dias, a cada instante, motivado por fatos adjacentes ou por suas ideias – ou por ambos, concomitantemente. E, nesse fazimento de novos caminhos, comete feitos lícitos e alguns nem tanto, que ele, esse ser, mulher ou homem, busca preservar sob a pecha de “a minha intimidade”.


Aos escritores, como a outros artistas, é dado o direito à escolha de evidenciar seus ‘bem-feitos”, sem que se lhe cobrem a vida íntima, que, por óbvio, é do interesse exclusivo dos que compartilham dessa tal intimidade.


Ocorre-me um escritor. Um dos muitos que li com avidez, com quem aprendi muito por lê-lo e, para minha felicidade, de cuja companhia me enriqueci e pude considerar amigo; não porque eu tivesse algo a propiciar-lhes, mas por desfrutar de um aprendizado pessoal, com a liberdade de mostrar-lhes meus escritos e colher opiniões.


Goiânia, naqueles 1960 e tantos, era ainda uma cidade pequena. E seu pequenino universo literário, minúsculo. Era comum espalharem-se os escritores – e seus leitores – pelas calçadas que circundam o quarteirão do Grande Hotel. As quatro faces dessa quadra – as avenidas Goiás e Ahanguera e as ruas Três e Sete – eram os pontos mais agitados da cidade sob a luz solar. Além do primeiro hotel da nova cidade, tido ante a História como “uma das cinco primeiras arquiteturas”, ali estavam a companhia telefônica, o Banco do Estado, o Hotel Lord e seu afamado salão de barbeiros, o Café Central – ponto de efervescência pela aglutinação de políticos, comerciantes e fazendeiros, além de uma turba de aspecto duvidoso, tido pela boca-miúda como pessoas contratáveis para serviços escusos e condenáveis – pela moral vigente e pelas autoridades constituídas. Havia ali, também, no trecho da Rua Sete – a dos fundos do Grande Hotel – a sede de uma importante livraria, a Cultura Goiana. Chegou a ter três lojas no mesmo quarteirão – as demais estavam na Rua Três e na Avenida Goiás, ao lado do famoso hotel pioneiro. Por isso, a aglomeração de escritores e leitores naquelas calçadas. Essa massa de intelectuais espalhava-se também para os rumos da esquina da Avenida Anhanguera com a Rua Seis e o lado oposto da avenida Goiás, em frente ao famoso hotel já referido – as duas lojas do Bazer Oió, a única livraria fechada pela ditadura de 1964 a 85 em todo o país.


Pronto! O ambiente está demonstrado – ao menos o ambiente urbano em que praticávamos nossa vida social à luz do dia. Então, é hora de falar da personagem. Usava um boné de pala curta, modelo comum na Europa de ingleses, portugueses e italianos; dificilmente era visto em “mangas de camisa” ou sem dois ou três livros sob o braço. De pouca conversa, ligeiramente gago, não recusava prosa. Nesse modo de ser, acolhia também os moços curiosos, ansiosos da atenção de alguém famoso – e esse autor era, sim, já famoso: os jornais contavam de suas correspondências com grandes vultos do Brasil das Letras, da publicação de um conto seu num jornal alemão, do interesse de uma grande editora do Rio de Janeiro interessada em publicar suas obras.


Contista exímio, capaz de narrativa encantadora, desses que nos prendem desde a primeira frase até o suspense ao final, quando a mente continuava a supor os momentos após o ponto. Uns tempos após a estreia, com alguns livros de contos já por demais divulgados, aqui e além do rio Paranaíba, atreveu-se ele a um romance – e repetiu o sucesso que o marcou na jornada dos contos. Houve uma experiência em versos, mas não foi tão feliz na forma poética: voltou à prosa, tão rica de imagens e construções poéticas que os leitores o perdoaram pela tentativa nas sendas de Bilac, Bandeira e Drummond.


Aos poucos, inteirei-me de sua vida; soube da tentativa de viver na antiga capital federal, entre o mar e o maciço da Tijuca, ou num subúrbio da Zona Norte; importante mesmo seria estar na efervescência dos notáveis das Letras. Não conseguiu viver longe do cerrado, dos rios Corumbá e das Almas, Vermelho e Paranaíba. A escrita, porém, persistiu no seu tempo – afinal, desde sempre era de sua essência, de seu propósito de vida. Fez-se servidor público municipal, depois professor, escreveu para jornais, orientou principiantes, atendeu sempre ao apelo de professores de todos os níveis para falar aos jovens e às crianças.


Gostar dele sempre foi muito fácil. Era gentil com as pessoas, ouvia críticas – uma elogiosas, outras nem tanto – e a elas respondia como quem esclarecesse algo; tinha muito a ensinar, mas preferia conduzir o leitor à descoberta.


Discreto sempre, cuidava de isolar-se para as leituras e as escritas – como fazemos todos os que trabalhamos textos. Nessas ausências e silêncios, nem todo o tempo era consumido no ofício – algo de peraltice (ou de pecado) estava nas preferências do meu herói de causas literárias. O nosso ídolo mantinha, com a possível discrição, um miúdo apartamento num grande edifício ao lado do Mercado Central. Morei ali por cinco anos, e foi por isso que descobri dele algumas peraltices (quase falei “levadices”). Gostava muito, meu velho amigo, de dois tipos de mulheres – as negras e as loiras. Não se interessava pelos tipos indígena, morena ou oriental, mas sim pelas “escandinavas” e as do “navio negreiro”.


– O preconceito de cor foi criado pela mulher branca, quando percebeu que a preta lhe era superior – dizia ele.


Morava eu no mesmo andar da garçonière do velho escriba. Certo dia, sabia eu que ele estava em casa (o tapetinho com a inscrição Bem-vindo estava do lado de fora). Ao sair do elevador, vi uma mulher jovem e bonita, ligeiramente gorda; batia na porta, insistia, teimava... Entrei em casa; a moça continuava batendo na porta e tocando a campainha; saí de novo e decidi “informar”:


– Moça, desculpe-me, devia ter dito antes, ele viajou.


A mulher me olhou com desdém: abaixou a cabeça, empurrou o pequeno capacho com a ponta do pé e desistiu: caminhou para o elevador sem me olhar nem dizer tchau. Mais tarde ele passou por mim, junto à portaria; contei-lhe sobre quem chamava à porta e ele: “Não podia mesmo atender, estava com uma escandinava”.


Este foi um caso que presenciei; e, aos poucos, habituou ele a confidenciar-me algumas histórias. Havia as pitorescas e as complicadas, como a de uma “aventura catalana”, no dizer dele mesmo. Sempre que se via liberto, por dias ou semanas, das amarras do casamento, enviava dinheiro para a namorada que, no decurso de uma noite, tomava o trem para Goiânia. Ele não a esperava na estação, seria arriscado expor-se, mas a moça tinha consigo a chave do “rendez-vous” particular do contista.


Pois bem! Aconteceu, para surpresa do rái soçaite local, a separação, que logo virou divórcio, conforme a evolução das leis. A moça do interior alimentou esperanças, mas o amado decidiu-se por outra alternativa. Foi então que ela, incitada por invejosos e estimulada por um jornalista desses que, à falta de notícia, inventa uma polêmica – ou um escândalo – publicou um livro, contando particularidades de suas vindas secretas a Goiânia. E lá, do meio para o final da obra, em texto sofrível, a traída contou das lembranças:


– Você com seu bonezinho típico, as pontas dos cabelos escapando dos beirais do chapéu, totalmente nu passeava pelo apartamento com minha calcinha dependurada no...

 *   *   *

Este conto integra a coletânea O escritor como
personagem
, idealizada e coordenada pelo
jornalista Euler Belém e pelo escritor Ademir
Luiz, presidente da União Brasileira de Escritores
de Goiás, e foi publicado em 18 de outubro
de 2021 no
JornalOpção, de Goiânia.

Luiz de Aquino