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segunda-feira, dezembro 31, 2012

Zerar a conta


Mãos de trabalho e afeto - ou protesto. Linguagem universal, sempre.


Zerar a conta


Acho que fui um bom menino este ano. Até que enfim! Há muitos anos eu sonhava sentir-me assim – desde que nasci, eu acho; ou, ao menos, desde que fui “conscientizado” de que é preciso, ao termo de cada ano, avaliar o que se fez. Nos meus tempos de bancário, cheguei a acreditar, como a quase totalidade dos colegas, que um bom ano era aquele que, ao seu fim, tínhamos todas as contas quitadas. Acho que vem daí o titulo destas linhas.

Enquanto me desdobrava entre vários empregos, em prejuízo do lazer e do aprendizado, tentando alcançar um orçamento compatível, limitei-me ao conceito supra dito acerca de “um bom ano”. Quando me distanciei do ideal dos números para, sem qualquer sentimento de culpa, fixar-me no ideal dos sonhos, tornei-me mais feliz. Não que eu tenha conseguido dar conta de todas as obrigações a tempo, mas aprendi que as contas a pagar são títulos que mesmo nos balanços de grandes empresas e governos são um registro constante.


Sofrer menos, ao menos! Adiar o que for possível, realizar o que puder. Mas para sofrer menos (ao menos), aprendi que os sonhos se completam dia a dia, passo a passo. Um sonho que se realiza de chofre, sem muito empenho e sem as realizações gradativas tende a decepcionar-nos. Benditas sejam, pois, as dificuldades! Vencê-las é a grande vitória!

Foi pensando nos tempos e conceitos de bancário e cidadão comum, empenhado em alcançar um pouco de paz – material, ao menos; de barriga vazia é difícil fazer um pacto com a felicidade – e estar pronto para novas realizações no tal de Ano-Novo, ou “ano que vem”, foi que balanceei minhas principais ações deste 2012 que já se afasta lá perto da esquina, dando adeus, todo sorridente.

Lembrei-me que escrevi pelo menos oito prefácios, este ano, quase todos para escritores novos, estreantes na vida livresca. Fui editado em duas antologias – a primeira, de ex-alunos do Colégio Pedro II, lançada no Rio de Janeiro (não pude comparecer, que pena!); a outra, uma belíssima edição coordenada pelo confrade Hélio Moreira, médico e escriba, que, gentilmente, convidou-me a discorrer sobre meu muito querido e saudoso padrinho literário Anatole Ramos.

Proferi palestras em escolas públicas. Conheci professores que se tornaram amigos queridos, gente capaz de invadir minha alma e eu lhes agradeço por isso. Conheci alunos maravilhosos, alguns ainda no começo da adolescência, produzindo poemas que, a despeito do domínio da técnica, revelam-me novos modos de pensar e de viver, de encarar o mundo.

Conheci novas pessoas que, de repente, começaram a fazer parte do meu quotidiano de leitura, de produção e crítica literária, ou ainda do trivial diário em ambiente de trabalho, de lazer e troca de conhecimentos e experiências.

Bem, se eu falei em balanço, e só coloco aqui meus créditos, quero dizer-lhes que tive, sim, alguns débitos. Poucos, mas talvez pesados o bastante para equilibrar a balança, como convém a um bom balancete. Mas... pensando bem, foram pecadinhos perdoáveis, eu acho. Algumas mentirinhas inevitáveis (quem não as comete é um grande mentiroso!), um avanço de sinal ou um estacionamento atrevido e corrido em área proibida – é possível.

E por saber, com rigorosa certeza, de que está lá fora toda uma humanidade viva e bisbilhoteira para apontar meus erros, fico por aqui. Espalho beijos e sorrisos por todos os quadrantes de uma rosa-dos-ventos em três dimensões, rogando aos céus que as luzes de Jesus se espalhem sobre todos os mortais – humanos, vegetais e animais. E, parafraseando Vinícius de Morais, “Se bênçãos ainda lhe restarem, abençoai-me também a mim”. Amém!



* * *

domingo, dezembro 30, 2012

“E por falar em saudade...”



O autor e Anete Teixeira, em 1984 (ela faleceu em 1996,
aos 45 anos).Foto por Beth Moiana, a comadre.
“E por falar em saudade...”


Era 1982, março; para homenagear Elis Regina, Anete Teixeria estreou sua trajetória de palcos no bar de que era sócio, cujo nome era uma redundância em português de esquina: botteko bar (assim mesmo, em minúsculas, como “academia goiana de letras”, com tt e k; ridículo!). No ano seguinte, Anete convidou duas amigas, ambas Cristina e igualmente excelentes cantoras, e repetiu a homenagem a Elis. O bar era na Beto Galeria – onde é hoje o Banco Safra.

Um vizinho muito próximo, morador de um sobradinho, era avesso à música, especialmente (disse ele) música alta. Esse homem entrou, irascível e incontrolável, seguido da mulher e de filhos (acho que duas moças; a memória falhou) e, aos gritos que suplantavam o som que ele dizia alto, chegou arrancando fios. Imagino-o, hoje, caso ainda viva, a deliciar-se com “bate a mão e bate o pééééé... e bate o péééééé....”, feliz da vida! Sim, porque a música que ele odiou era nada menos que “A Cartomante”, de Ivan Lins e Vítor Martins.

Íris Rezende fora empossado dia 15 de março; o aniversário de Elis Regina, 17 de março. Como mandava a lei, o presidente da Câmara Municipal assumia o Executivo enquanto o governador não nomeava o que seria o último prefeito biônico (Nion Albernaz). E o presidente da Câmara, que foi prefeito por dois ou três dias, era Daniel Borges. O nosso vizinho era primo de Daniel Borges.

O secretário de Ação Urbana era Sebastião Macalé, craque do Goiás Esporte. Acho que a prática nos gramados não lhe permitia raciocinar além dos cerca de 100 metros de extensão do campo. A pedido do vereador (seu colega, pois) que antecedera Nion, Macalé fechou-me o bar. Argumento dele: “Mas o que posso fazer, se foi um pedido de Daniel Borges?”. E Anete, que até então se mantinha em silêncio, perguntou: “Borges por Borges, o Mauro vale alguma coisa?” Ora, ora... Naquele mesmo dia reabrimos o bar. O ex-governador e então senador só veio a saber disso dias depois, pela voz da própria prima cantora; e aprovou-lhe a presença de espírito.

Esse sempre foi o clima dos que chegam com sede ao poder. Que pena, não? O fato veio-me à memória na esteira das saudades suscitadas pela Renata no xou especial do Chope 10, quinta-feira passada (outubro, 2004). Anete era assim, de espírito forte, presença marcante, estopim curtíssimo e uma capacidade de perdão das mais invejáveis; por maior que lhe era a raiva em qualquer momento, um sorriso a desarmava e, coisa raríssima, ela realmente perdoava, porque era capaz do esquecimento. E não adiantava alguém lhe recordar algo que ela havia decidido esquecer: o que passou, realmente era passado, para ela.

Engraçado, isso: Até mesmo um gesto de prepotência e de exacerbação de poder pode, num tempo futuro, tornar-se hilariante (eita! Fui longe...) ou integrar nosso leque de saudades. O importante é que há memória e há sentimento. E há amor, de todas as formas. E a gente apenas pergunta:

Por que Anete não é nome de praça? E respondemos: Porque Goiás não gosta de seus valores artísticos. 

(Esta crônica foi escrita e publicada em outubro de 2004; reli-a e achei que cai bem no espírito da saudade que me invade nestas vésperas de Natal. E por saber que a quase totalidade dos meus leitores atuais não a leu, publico-a nestes dias de emoções à flor da pele. Feliz Natal, amigos e leitores!).

* * *

terça-feira, dezembro 18, 2012

Leandra Felipe, jornalista, estreia em poesia


Leandra Felipe. Antevejo muitas novidades, em prosa e verso - obras que virão para enriquecer o acervo brasileiro do imaginário e das letras.

Leandra Felipe, jornalista,
estreia em poesia


A jornalista Leandra Felipe, goiana de nascimento, criação e formação intelectual e acadêmica, repórter do DM que, em dado momento, mudou-se para Brasília e atualmente é correspondente de importantes veículos brasileiros em Bogotá (Rádio CBM e Globo News), tirou de seus segredos de menina o talento para os versos. E marca este dezembro já com duas noites de autógrafos – uma em São Paulo, na primeira semana, e outra em  Goiânia, na segunda-feira, 17, na FNAC (Flamboyant Shopping Center).
Tive o privilégio de ler os poemas de Avesso antes que se tornasse livro; e o privilégio maior de prefaciá-lo, com o pecado a minha emoção.
Um autógrafo para eu me orgulhar dele...

A seguir, o meu texto, antecipando a delícia da leitura de alguns poemas do livro:



O livro: a peça escrita é criação; a obra em forma, papel e tinta, é produto e excelente presente natalino...



 

Traços de afeto ao livro feito feto



A autora deste livro, minha amiga e colega Leandra Felipe, desenhou o seu próprio prefácio ao conceber essa bela prosa poética:
Carta de um poema ao seu poeta

                  Caro poeta,

Peço-te que não me guardes em refratário. Não me deixes ficar presa no vácuo entre seu desejo e sua mania de ficar contido. Libere-me, por favor. Não quero ficar guardado no vasilhame dos seus pensamentos soltos e das suas palavras solitárias.

Por favor, querido poeta, não prendas este dom que tens, que bens sabes ser eu mesmo. Não me prenda em lugares isolados, ou pior, não deixes de pensar em mim. Não me evite em seus momentos de conflito. Lembre-se: Sou poderoso nos conflitos, criativo nos amores, reflexivo em tempos de inércia.

Meu querido poeta, não me sufoques, antes disso, produza-me. Escreva-me. Dê-me asas para voar. Deixa-me ter a chance de ser lido, deixa-me mostrar aos outros quem tu és. Deixa-me colocar encantamento nos olhos daqueles que me lerem. É claro, querido, que irão me julgar, irão me classificar. Mas estou pronto para julgamentos. Os louros e as críticas serão colhidos por nós dois.

         Não te detenhas mais. Escreve-me. Estou pronto.

         Com amor,
         Teu poema
 . . . . . . . 

Continuei a leitura com o espírito ativo de quem sabia que as surpresas continuariam a chegar, e chegam a cada página que se vira. Em O chamado do ventoencantei-me dessa estrofe:

                  Já era tarde quando o vento soprou
                  Antes do tempo de sua chegada
                  Mas lá fora ele dizia que ficaria
                  Como um outono fora de hora

Tempo, vento e horários; lugar e estação – marcas geográficas na poesia de Leandra. E chegam também marcas da história, tal como em Virtual:

                  Inauguram já faz um tempo 
                  A categoria do virtual
                  Amor virtual, amigo virtual
                  Gente virtual, paixão virtual
                  Sexo virtual, crime virtual
                  Tudo isso levanta a intriga
                  Se uma coisa ocupa tanto espaço
                  Se toma tanto tempo
                  Ela já não é real?


E meandros de sabedoria ponteiam nas pautas de poemas outros, assim:

Obtuso
(...)
                  No universo da língua
                  Sou adjetivo do incapaz,
                  do inadequado, do ineficaz
                  Com frequência qualifico
                  o rude, o confuso, o grotesco

Mulher de seu tempo, Leandra estende sentimento e talento, erudição e informação profissional ao conceituar-se e, no mesmo empenho, louvar suas iguais lutadoras de modo autêntico, sem pieguice nem radicalismo inútil e estéril:

Mulheres poetas

                  Não tenho o retrato de Clarice
                  Nem seu olhar distante
                  […]

                  Não tenho o mistério de Cecília
                  Nem sua tristeza doce 
                  […]
 
                  Não tenho a sabedoria de Cora
                  Nem sua simplicidade complexa 
                  […]

                  Eu tenho minhas vontades
                  Minha ânsia por saber expressar
                  O que falando não sei dizer

                   […]
E tempo há de se posar em casa, no íntimo do lar e na nobreza da procriação. Quem, poeta, não terá feito versos aos filhos? Louvamos amados e amadas, pais e mães, reverenciamos irmãos e amigos. Mas filhos, estes fermentam da criatividade e os sentidos, frutos que são dos sentimentos e da essência que se estende do sacro ao animal. A nossa poetisa não seria diferente!

Luísa em seu ensaio de cores. 

Luísa

De que planeta veio 

esse sorriso arteiro 
De onde veio?


De onde vem 

o olhar inquieto 
que explora o mundo?


Como pode 

em tão pouco tempo 
Ocupar todo esse espaço 
            dentro da gente?



Ora: Leandra Felipe é fruto de Goiás – o Planalto Central revestido de cerrado, chão vermelho coberto de mangaba, pequi e jabuticaba, frutos aromáticos da flora incomparável que dá à nossa pele o cheiro da roça. E Goiânia, berço de sua formação, tem forma e cheiro de poesia e os poetas atropelam-se nas esquinas e nas noites – em comunidade ou na solidão do ofício das leituras e escritas. Ser poeta em Goiânia não é razão de surpresa. Antes, de felicidade coletiva!

Faz um tempo, já, que o silêncio entremeia nossos meses e anos. Vez por outra, alguma notícia ágil como quem apenas quer contar que sobrevive. Há que se viver e a luta é contínua, horária! Crescemos a cada frase nova, a cada informação colhida, a cada notícia feita e divulgada. Renovamo-nos em novas edições nos noticiosos impressos ou eletrônicos. Nascemos todos os dias como um novo profissional que se arquiva ao adormecer para renascer aos novos albores. É o ofício!

E aí, vem para nós o desenho do futuro: o jornalista quer ir além de cada amanhã; e o jornalista é fruto do poeta, eu sei. Não basta, pois, fazer jornais e noticiários falados, é preciso alongar a existência de cada frase, de cada verso. É preciso virar livro – talvez seja esse o sonho de cada jornal.

É assim, com este sentir, que acolho a gestação deste Avesso, da Leandra Felipe. E espero-o formatado entre capa e contracapa, enfeitado de desenho e cores, peça de boa leitura para já, adorno íntimo em minha estante logo após. Espero com a ansiedade dos familiares em torno da grávida. O tempo de maturação se abrevia, expira-se breve.

E seja bem-vindo, pois! O mundo é seu!

Luiz de Aquino Alves Neto, poeta e jornalista 

(membro da Academia Goiana 

de Letras). Em 31/10/2012.

segunda-feira, dezembro 17, 2012

“Poetas muito ruins?...”


Um tema recorrente: qualidade do que se escreve e do que se lê, as preferências de leitores e de críticos, o que fazer para se formar leitores… Bem, pensando nisso e discutindo isso com uma jovem professora de Letras, ocorreu-me visitar meus guardados. Achei esta crônica, de fevereiro de 2005.



“Poetas muito ruins?...”



Há poucos anos, num filme, o personagem do ator Robin Williams era professor numa escola rural norte-americana. Ele põe no quadro um poema e diz: “A maioria das pessoas não gosta de poesia, acha a poesia uma coisa chata”. Um aluno confirma: “Mas poesia é coisa chata, sim”. E o professor, para espanto da classe e das platéias: “Você tem razão. E sabe por quê? Porque a maioria dos poetas é muito ruim”.

Existe poeta ruim? Dizem que não, que existem poetas e não-poetas: cantor ruim não é cantor, bailarino ruim não é bailarino e jogador ruim é perna-de-pau. O fio de um talento pode ser percebido desde cedo, mas desenvolver o talento implica muita dedicação, estudos, treinos ou práticas – enfim, os muitos nomes que damos ao exercício da persistência. As escolas facilitam, porque as escolas “metodificam” o aprendizado. Se não há escolas para a prática, o jeito é se tornar autodidata e criar, então, o método. Quem imaginaria, ante a Seleção campeã de 1958, que um dia teríamos escolinhas de futebol? Engraçado: já existiam as escolas de samba.
Escolas de poesia não existem – mas existem as oficinas. O poeta Aidenor Aires, bacharel de direito e procurador de Justiça, além de professor de Letras (Português e Literatura), não pôde ser pago por ministrar oficina de Poesia em órgão de Estado porque o Tribunal de Contas entendeu que ele não tinha título de “professor de poesia”. Ele riu – achou melhor que acionar judicialmente para receber uma migalha, que paga de professor, ainda mais em oficina de poesia, é mais ridículo que esmola de rua. Eu, que sou tido como precipitado em emitir alguns conceitos, perguntei: “Mas o Tribunal de Contas é um órgão esdrúxulo: é tribunal, mas seus membros não têm formação acadêmica para a magistratura (não necessariamente).

“A maioria dos poetas é muito ruim”. Recordei meus professores de Português nos extintos Ginasial e Clássico, todos estimuladores de nossos talentos embrionários. Jamais vi uma Maria Helena Silveira, no Colégio Pedro II, ou um Aldair Aires e Ecléa Campos Ferreira a desestimular a índole de redação dos alunos. Mas sei de professores por aí que anulam tanto seus alunos que alguns deixaram até de ser leitores. E tais professores – pasmem – são engrandecidos por uns poucos ex-alunos que lhes perdoam esse crime em troca de um silêncio cúmplice, sabe-se (ou se sabe muito bem) por que motivos.

Já curtia o Clássico quando senti – ninguém ensinava – que a linguagem da poesia tinha nova roupagem nas últimas décadas. Havia a bossa-nova na música brasileira, a Semana de Arte Moderna de 40 anos atrás ainda ecoava forte e o CPC da UNE estava aí, acontecendo (antes que o golpe de 1º de Abril de 64 o fechasse). A arte não se limitava a campos em flor nem ao “beletrismo” – a arte se vestia de sangue, de sexo, de dor e de fome, se necessário, também. Foi meu amigo José Pinto Neto quem me deu a primeira bronca: “Rapaz, pára com isso de tantas reticências. Que poeta é esse que não sabe o que diz?”. Foi o bastante para que eu fugisse, também, das interrogações. Escrever sobre as dúvidas é fazer coro com a platéia, quando é esta quem deve fazer coro com o poeta. Claro!

Aos poucos, e à falta das escolas específicas, vamos aprendendo, com muita leitura e participação, perguntas e respostas, viagens e contatos por carta, telefone, Internet e quaisquer outros modos de troca literária.

Mas persistem os que se vestem do antiquado conceito de que “poesia é terapia, é catarse” e outros que-tais. Muito se queixa das comissões julgadoras em concursos, mas julgadores, muitas vezes, param na primeira página, no primeiro parágrafo, na primeira linha. No último sábado, um jovem poeta me mostrou excertos de um poema que se dispensa a partir do título. O (a) autor (a) já mostrava, no título, a “pérola” que qualquer leitor de bom gosto deixaria correr pelo ralo do descaso: “Será que sou um ser?”. O olhar sem leitura, sobre o papel, vislumbrava um infindável pontilhar de reticências.

* * *

sexta-feira, dezembro 07, 2012

Enfim, o Século XX acabou.



Em Goiânia, obra do imortal Oscar Niemeyer . pólo de grandes eventos culturais e artísticos da cidade.


Enfim, o Século XX acabou.


Quarta-feira, 5 de dezembro de 2012, dez dias antes de fechar um todo de 105 anos.

Séculos são assim mesmo, incompletos ou sobejos. Os anos também: quando nos pedem a idade, recitamos o ano completado e omitimos o tempo excedente. Neste caso particular, e para o nosso conceito – de nós, que vimos nascer Brasília com sua arquitetura arrojada, e aquilo nos remeteu a Pampulha e outras referências –, o conceito hodierno, o Século XX tem muitos nomes. Nenhum deles, porém, com a força de Oscar. E tivemos muitos nomes para o século que se finda... Poderia se chamar Braguinha, que também adentrou os três dígitos de idade, e a ele unir um sem-número de artistas vários, das letras e dos sons, dos pincéis e dos cinzéis, das cenas e dos recursos midiáticos.

De minha parte, faço eco aos que têm em Oscar Niemeyer o ícone de um Brasil primitivo naquele dezembro de 1907 (nove meses da passagem de Machado de Assis – a chave que fechou o Século XIX para nós) para a realidade atual, drasticamente reformulada no transcurso destas quase onze décadas. Há uns poucos anos, muito poucos, articulistas da extrema direita (ainda existe, sim; saudosista e burra, como todos os extremos ideológicos) escreveram tentando execrá-lo. Perderam tempo; nem se tornaram notáveis.

Oscar foi um eixo de grandes transformações. Nasceu num Rio de Janeiro que era o rosto de uma nação – a parte quase única visível, num tempo em que homens e mulheres não mostravam quase nada além do próprio rosto. Era um tempo em que São Paulo, a cidade, despontava-se como mãos – mãos operárias e atrevidas, mexendo-se sem pedir licença, invadindo e bolinando o delicioso corpo da Pátria, para despontar-se de vez. Mas o Rio era, e assim o seria até hoje e promete ser para sempre, o referencial de nossas artes. Um referencial que se expandiu também neste século que se encerrará ao término das exéquias de Oscar. Capital de uma nova república, insegura e indecisa; vitrina dos artistas brasileiros de todas as lonjuras; a cidade mais natural do mundo, muito apropriadamente alcunhada, pelo talento do poeta Coelho Neto, como Cidade Maravilhosa. Oscar teve, sempre, motivação bastante e a mente aberta para a linha divisória mar-e-céu, escorado confortavelmente nas encostas do Maciço da Tijuca. Encheu seus olhos de paisagens, transformou-as ao finíssimo bico do lápis, povoou papéis e locais (como fazer paisagens surpreendentes na monotonia do cerrado no Planalto Central).
A marca do Mestre no nosso horizonte: o Centro Cultural Oscar  Niemeyer (trevo da Av. Jamel Cecílio com a BR-153).
E agora, fecha os olhos de vez; apaga-se o cigarro, o charuto; despede-se da mulher companheira, a segunda; enriquece ainda mais um sobrenome ilustre. E deixa ao Brasil a herança de seu talento e suas realizações, com suas obras espalhadas mundo afora como se o brasão da Pátria acompanhasse sua assinatura.

Sim... como não? Oscar, desde já, torna-se o mais importante de todos os brasileiros nascidos até hoje; Niemeyer, agora, é sobrenome de todos nós.


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sexta-feira, novembro 30, 2012

A mão que estendo

Bariani entregou-me a Medalha  Jaime Câmara, do Conselho
Estadual de Cultura (1999); Lucas, com 4 anos, toou-a para si.




A mão que estendo


De alguns meses até este alvorecer de dezembro – crepúsculo dos anos – venho realizando entrevistas com os membros da Academia Goiana de Letras, meus confrades escribas e amantes das letras, para a memória do Centro Cultural Oscar Niemeyer. São poetas, cronistas e contistas, romancistas e ensaístas de Letras, Filosofia, dos meandros jurídicos e até mesmo das Ciências médicas. Somos um grupo limitado, apenas 40 membros, quase todos provectos e uns raros que ainda ostentam peles jovens e cabeças aptas a incontáveis mudanças.

Há um texto belíssimo de Vinícius de Morais em que o Poetinha discorre ante as possibilidades de perder todos os amores ou perder todos os amigos – e conclui que pior seria perder amigos. De meses para cá, tenho dito que tão importante e prazeroso é fazer novos amigos quanto descartarmo-nos dos que não correspondem…  Sim: não se trata de criar expectativas ideais, mas de aceitar os amigos tal como são, e descobrir que entregamos amor sem receber em troca:  amizade é uma avenida com mão e contramão.

Essa via de ida e volta tem sido, para tantos ou todos de nós, como o mais valioso dos caminhos. Sempre me regozijei pelas amizades conquistadas e sofria muito ao sentir que perdia alguém; até descobrir – e foi na via do amor romântico que descobri – que perder é tão importante quanto ganhar. Perdas múltiplas, numa vida inteira, não conseguem, porém, esvaziar o balde da nossa colheita; sempre teremos mais amigos do que os rostos que vimos primeiro, sejam os da parteira e o da mãe, associados aos dos familiares e pessoas visitantes, sejam os das relações que cultivamos ao longo da vida.

De 1996 a 98, presidi a União  Brasileira de Escritores em Goiás. Tempo de muito trabalho, num esforço ora hercúleo, ora dantesco, sempre no empenho de preservar a união e pugnar pela valorização dos fazedores de literatura em nosso torrão. Contei, naquele tempo, com valiosos companheiros na Diretoria, destacando as novas amigas Placidina Lemes de Siqueira e Ana Cárita, o saudoso professor (fui aluno dele no Liceu) Aldair Aires, o dinâmico e inesquecível Getúlio Araújo e, de especial realce, a vice-presidente Maria Luísa (então, apenas Malu) Ribeiro, parceira inseparável em todos os momentos.

Importantes também eram Marcos Caiado e os ex-presidentes Ubirajara Galli, Brasigóis Felício e Iuri Rincon Godinho.

Houve um tempo, na quadra final do meu mandato – eu sempre disposto a entregar o cargo sem o sonho da reeleição – em que as coisas se complicaram. Entidade pobre, a sobreviver de contribuições pequenas dos associados num ofício nada rentável, a UBE deixou de ser agraciada com doações financeiras advindas do Banco do Estado de Goiás e da Fundação Pedro Ludovico. 

Vínhamos de alguns momentos de ênfase, como o encontro de escritores do Distrito Federal e Goiás, provocado pelos colegas brasilienses, capitaneados por Gustavo Dourado, e prontamente aceito pelos ubeanos de Goiás. Conseguimos o apoio nobre do Castro’s Hotel, em cujos espaços aconteceu o ápice de nossa festa, após um “tour” por Goiânia, incluindo a visita dos brasilienses, ciceroneados por nós, à casa e à família de Carmo Bernardes, falecido no abril  daquele 1996.

Vivi tempos de intensa atividade, com viagens incontáveis... Muitas a Brasília, tentando viabilizar projetos no Ministério da Cultura, mantendo contato com os escritores vizinhos; muitas pelas cidades de  Goiás onde ocorriam eventos literários; duas, ao menos, ao Rio Grande do Sul para os congressos de poesia liderados por Ademir Bacca; e uma internacional, a Israel, a convite do embaixador daquele pais; lá, tivemos um encontro de escritores ibero-americanos – cada país enviou um escritor; o Brasil tinha três, sendo o carioca Antônio Carlos Secchin (hoje, imortal da Academia Brasileira de Letras) e dois goianos, José Mendonça Teles e eu.

As contribuições dos associados eram praticamente simbólicas; grande parte das despesas eram cobertas com auxílios dos órgãos estaduais citados ou com eventual ajuda de algum associado. O secretário municipal de Cultura, Padre Cesar Garcia, teve importante papel como provedor, fornecendo-nos recursos de sua própria economia para a solução de problemas nossos.

Coisas de amigos, como se vê...

As entidades culturais sem dinheiro em Goiás, em quase sua totalidade, costumam eleger como tesoureiro o escritor Bariani Ortencio. Já vimos casos em que, havendo duas chapas concorrentes, ele figurava nas duas chapas. Esse cargo era e é, sempre, destinado a homenageá-lo por sua luta incansável pela literatura e pelo folclore de Goiás. Bariani, sabendo das complicadas histórias financeiras de tais entidades, costumava deixar os cheques assinados, confiando no discernimento dos presidentes.

Comigo o balde transbordou. Como disse, não pudemos contar com a providencial ajuda do BEG; a Caixego tivera fim anos antes, numa decisão política nociva a Goiás (não me compete contar isso agora) e a Funpel decidiu-se por fechar os cofres “àquela corja de poetas”, que é como a então presidente se referia a mim e aos poetas que predominavam na direção da UBE.

Tivemos, por uns quatro meses, uma secretária cedida pela Prefeitura de Goiânia; a moça não quis continuar conosco e o jeito foi contratar uma secretária e um contínuo, ao custo de um salário mínimo cada, nos restantes vinte meses de gestão.

Resumo: esses funcionários, as contas de luz e condomínio, bem como a de telefone, eram pagos com dinheiro do  presidente em sua quase totalidade, bem como os custos de viagem – combustível e hotel; às vezes, comida também – pelo interior. Nos últimos meses, o presidente estava falido – e sua família também.

Nesse entrevero final, tive problemas com a conta, como não pude evitar. Alguns cheques foram devolvidos pelo banco. Um desses cheques, descontados com um agiota disfarçado de “factory”, de valor maior que o trivial, foi informado ao tesoureiro Bariani que, indignado, desabafou com dois colegas que o visitavam no momento; o resultado foi a imediata montagem de uma rede de telefonemas e fuxico na calçada diante do prédio da UBE, na Avenida Goiás com a Rua Dois.

Segurei as pontas. Se o tesoureiro não me procurou para esclarecer as coisas, eu também – tão cabeça dura quanto ele – não o procurei para dizer nada. Espalhava-se pela cidade que o presidente estava roubando da UBE.

Muitos companheiros, conhecendo a realidade dos fatos, alinharam-se ao meu lado e defendiam-me das injúrias cometidas pelos “ouvintes” do desabafo do tesoureiro.

Se eu tivesse tido um minuto de bom senso, teria ido até ele buscar conselhos; certamente, teria recebido orientação sábia sobre as medidas a tomar, em lugar de ser alvo da boca venenosa de apenas dois escritores amantes da maledicência e, àquela altura, apenas ávidos por difamar um companheiro.

Eu acabara de assinar um convênio com a Universidade Salgado de Oliveira do qual não desfrutaria no meu mandato já próximo do fim; por ele, realizaríamos um concurso de ensaios, com um prêmio financeiro simbólico ao vencedor, remuneração à comissão julgadora, publicação de mil exemplares do trabalho vencedor e a UBE teria uma sobra capaz de custear condomínio, luz e telefones pelo ano todo e possivelmente uma pequena reserva para eventuais despesas de viagens – sempre realizadas em carro do presidente (eu e os meus antecessores e sucessores).

Depois desse entrevero, realizei ainda a entrega do Troféu Tiokô, que estava esquecido há pelo menos cinco anos; nessa cerimônia, instituí, com apoio da Diretoria, diplomas de mérito, de modo a aliviar os custos com a confecção das estatuetas; e também, de minha iniciativa, com apoio da diretoria, concedemos diplomas de mérito a um médico que teve coragem de denunciar, em Boletim de Ocorrência na Polícia, a falta de importante equipamento capaz de salvar vidas no Hospital de Urgências de Goiânia, bem como a um jovem funcionário público que, idealista, instituiu em Goiás a luta de prevenção e combate à AIDS. É bom lembrar que tanto esse médico quanto o funcionário vinham sendo perseguidos pela cúpula do Executivo goiano. Nossa atitude emprestou-lhes um reforço de dignidade.

Concluí minha gestão com a sensação do dever cumprido e com a questão financeira sob duas análises: um cheque de valor próximo a dois mil reais a ser pago, e um saldo em dinheiro e contribuições a receber (de solução fácil, pois que equivalia a débitos de diretores eleitos) capaz de cobrir o valor questionado. O presidente que me sucedeu, o poeta Coelho Vaz, solucionou a pendência, ao seu modo eficiente e sóbrio.

O lamentável, para mim, que sou um ideólogo do amor e da amizade, foi o estremecimento entre mim e Bariani Ortencio. Sei que nos admiramos à distância, e sei também que não concordamos, mutuamente, com as nossas atitudes muitas vezes diferenciadas, mas respeitávamo-nos nas diferenças e admirávamo-nos por nossas competências.

Há poucos dias, como que envernizando um passado alongado por diferenças, tive chance de me aproximar dele além do formalismo de nossos encontros na Academia Goiana de Letras. Estive em sua casa para entrevistá-lo para o citado projeto de memória da Academia e do Centro Cultural Oscar Niemeyer.

Lembrei-me que em 1982, num programa chamado “Boa Tarde, Goiás”, da TV Brasil Central, entrevistei-o ao vivo, diante das câmeras, para todo o Estado de Goiás. Data dessa época nossas primeiras conversas e discussões inevitáveis.

Sempre achei fácil entrevistá-lo; conheço bem sua vida e sua obra, tanto em livros quanto na tevê, em literatura e no folclore. Sei de sua prosa rica e de seu amor pelo folclore, especialmente pelas comidas e mezinhas (é com Z) que enriquecem seus trabalhos. E se somos confrades acadêmicos, sendo a Academia um clube vitalício, por que mantermos aquele afastamento que em nada me agrada? Acho também, sem falsa modéstia, que posso lhe fazer bem, ao meu modo.

Não sei o que pensa o Bariani, mas seu coração descende também dos similares apaixonados da formosa Itália; acredito que ele aceita, com  cordialidade, a amizade que lhe proponho, renovada e sem máculas.

Pode ser, meu velho?

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