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quinta-feira, abril 26, 2007

Secretárias e “telecol”


Secretárias e “telecol”


Ah, se não bastasse tudo o que já se viu... E se viveu! Dores, misérias, guerras, acinte, cinismo, arbítrio, vilipêndio, violência... Não bastasse o lado ilusório e cínico, mentiroso e sedutor da publicidade (seja ela comercial ou política), não bastasse o temor que nos impingiam os religiosos (é passado? Parece-me que há algo de passado neste presente, ainda), não bastassem os castigos domésticos e o medo do ridículo...

Agora somos alvos de outras formas de tortura. Como o som agressivo da propaganda aos gritos, nas tevês e nos rádios; e o som dos automóveis que se deslocam a 20 km/h pelas ruas, anunciando verduras, lingüiça (logo, logo não terá trema) e rapadura; jornais, remédios e enxovais... Ano que vem, gritarão aos nossos ouvidos qualidades contestadas de candidatos municipais: uns desconhecidos, outros conhecidos até demais.

Mas existe ainda a agressão sonora individual. Esta vem por conta de profissionais de “telecol” e secretárias, sejam elas executivas ou recepcionistas. São os campeões do gerúndio e do presente-contínuo, tempo de verbo inglês que alguns executivos egressos (e sobreviventes) de “intercâmbios culturais” impingem sobre o incauto brasileiro. Algo assim:

“Boa tarde, em que posso estar ajudando? Ah, sim, mas o doutor Albuquerque não pode atender, ele está em reunião com o supervisor; o senhor pode estar retornando às dezessete horas? Ou, se quiser, eu posso estar ligando para o senhor e vamos estar marcando um novo horário”...

Famigerada é também a voz e a fraseologia de robô: “A nossa empresa agradece a sua ligação, senhor” (essa é de somenos...). Mas há o incômodo e sempre inacreditável “Vamos estar providenciando, o senhor pode estar aguardando que em 72 horas vamos estar encaminhando sua reclamação ao Departamento de Postergação”. E quando apelamos pelo sagrado, pela mãe ou pela piedade: “É tudo o que estamos podendo fazer, senhor. Estamos compreendendo, senhor”. “A nossa empresa agradece a sua ligação; tenha uma boa tarde, senhor”... Como se fosse possível ter-se uma boa tarde depois de um atendimento desses.

Mas o suplício é interminável... Já viram o quanto uma secretária-recepcionista, pessoalmente ou ao telefone, nos incomoda com a frase matemática “O senhor pode adiantar o assunto?”. Claro, isso acontece em gabinetes de políticos; com os executivos da atividade privada é ligeiramente diferente:

– Qual o seu nome? Luiz... Luiz... (ela quer o sobrenome; eu digo). Ah, sim” Aquino. De onde, senhor José de Aquino (puxa vida! Ela até repetiu Luiz; agora sou José)

Mas há também quem se lembra que sou Luiz; mas transforma meu sobrenome:

– Doutor Sílvio, está aqui o senhor Luiz “Joaquino”, ele quer falar com o senhor.

E Leda(ê) Selma ainda briga comigo por causa de um circunflexo... Não se melindre, poeta Leda(ê), vem aí a reforma ortográfica; e assim como os de São Paulo e do Sul transformam o som da letra E em Ê, mas falam “éstra” onde se escreve “extra” e “controle” onde deveria ser “controle”(ô).

Ah, existe também a indagação irritante, quando nos entendem o nome: “De onde?”. Eu respondia “De Caldas Novas, 15/09/45”. Mas não é isso, querem que eu cite uma empresa, como se esse fosse o meu sobrenome. “Luiz da Petrobrás” (isso dá “status”, não é?). Recuso-me a enquadrar-me nessa inutilidade e dou meus dribles. Dia destes, por telefone, a secretária insistiu para eu dizer “de onde”; arrematei sem dizer sobrenome:

– Dom Luiz. Sou bispo auxiliar da Diocese de...

Pronto! A partir daí, tornei-me Dom Luiz. E não mais precisei dizer “de onde” era; nem qual é o meu sobrenome.

terça-feira, abril 24, 2007

Um poema de Lílian Maial


O SEIO ESQUERDO
Lílian Maial



Aconteceu.
Ninguém espera
E, na primavera,
Foi-se o seio esquerdo.

Foi-se o toque,
Ficou a sensação fantasma
Foi-se o alimento,
Ficou o vazio no peito.

Como ser mulher, sem o seio esquerdo?
Como ser mãe, sem a mama esquerda?
Como ser profissional, sem o outro par?
Como se olhar no espelho, nua?

O seio direito, encabulado,
Só e pendurado,
Emoldurando o luto
Do parceiro canhoto.

Está faltando o outro.
São dois,
Originalmente dois.
Há que ser dois.

Nunca mais seus dedos
Apertando a carne macia e rosada
Nunca mais sua boca
A brincar de trincar e arrepiar
Nunca mais a dança sensual
Dos pares no banho
E entre lençõis de cetim.

Há um imenso vazio
Bem maior que a mama
Que atinge camadas profundas
Da própria natureza fêmea.

Há a ausência constante
Lembrada todo o tempo
Pelo traço da cicatriz
Dessa ferida que não fecha.

Há a dor, os ductos, os lutos
Mágoa infiltrante, ingrata, infeliz
Dias vividos sem perceber
E para quê viver?

Olhos que nunca repararam
Agora recusam-se a olhar
Não tem remédio
Não tem escolha

Tem alopécia, náusea e dor
Tem quimioterapia
Tem agonia
Solidão de espinho e flor

Tão falso o enchimento
Disfarça a roupa
Como peruca da alma
Que dribla olhares piedosos
De mulher barbada de circo
Que extirpa seus próprios caroços.

Os dias arrastados, as horas contadas
Quando volta ao normal?
Quando se acorda do pesadelo?
Ou tentar esquecê-lo...

É tão desigual, tão caolha
Fica sem sentido, tão velha
Um robusto, imponente, desejável
Outro, um traço doente, indelével, lamentável.

Luta diária e desanimada
Para sobreviver – corpo sem jeito
Mulher sem peito, que cala o grito
Tempo finito, seio bonito
Que se foi.



*************

Do livro: "Enfim, renasci!"
Ed Impetus - 2000



Eu e Lílian Maial: sarau no Rio, 27 de agosto de 2006

sábado, abril 21, 2007

Prêmios de tempo e trabalho

Prêmios de tempo e trabalho


Vetusto e solene, aquele Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. E conservador, por que lidar com História e Geografia implica compreender que a vida é dinâmica, mas não há como mudar o passado. Pois o venerável IHGG fez festa esta semana para a posse da diretoria. O presidente Aidenor Aires foi reeleito. Mas a festa foi além da posse: o presidente da Academia Mato-grossense de Letras, Carlos Gomes de Carvalho, foi empossado como Membro Correspondente; e o homem de comunicação Salvador Farina, tornou-se Sócio Honorário.

Teve mais: representando a Câmara Municipal de Goiânia, o vereador Hélio de Brito, com seus colegas Virmondes Cruvinel e Otaviano Nascimento (este, de Inhumas), entregou a Aidenor o título honorífico de Cidadão Goianiense. A noite de formalidades teve lado emocionante nos discursos dos três homenageados: algo para nos lembrar sempre que o homem das atitudes de selvageria traduzidas em assaltos e tiroteios ainda se mostra capaz de dar novos rumos à humanidade.

Registrei, com particular alegria, a declaração de Salvador Farina de que todo o seu acervo de gravações do programa “Nossa gente, nossas coisas” será doado ao IHGG. São muitas dezenas, já na casa de centenas, os discos DVD com entrevistas demoradas de personalidades variadas goianas desde políticos e empresários até artistas de todos os setores, educadores e cientistas. Por gentileza de Farina, estou nesse elenco.

Outro ato de prêmio pelo trabalho e que se faz marcar pelo tempo envolve o músico Fernando Perillo, que festeja jubileu de prata na fonografia. Fernando, pioneiro na prática do som de boteco em Goiás, deixou as boates para tocar num palco improvisado num bar da Praça Tamandaré, o Sirius. Era 1976. Até então, as casas que ofereciam som ambiente valiam-se das vitrolas. Os bares da Tamandaré desapareceram, dando lugar a bancos, farmácias e até hipermercado. No lugar do Sirius funciona, hoje, o Cateretê...

Fernando Perillo é, para a minha geração, o ícone do “banquinho e violão” nos botecos, o que deixou tanta saudade. Repertório variado, centrado na Música Popular Brasileira que, naquela época, vivia seu apogeu, com jovens talentosos e profícuos, a moda se espalhou: do Sirius ao Zero Bar e ao Tot’s, ao Botteko, Saloon, Papillon, Calvert (que virou Beb’s) etc, etc... Chegou, então, a hora de Fernando mostrar suas composições.

Parcerias importantes na vida artística de Fernando já eram notótias: Bororó, o baixista virtuoso e companheiro nas apresentações, e Nasr Chaul, o das letras poéticas. Estava aberta a trilha para o disco, e o elepê “Sinal de Vida” surgiu em 1982. O segundo “longueplêi” saiu em 1987: “Do outro lado da Lua”. E Fernando festeja seu jubileu de prata com um novo cedê, reunindo os dois elepês dos anos oitenta. Ele não me falou em festa, xou ou coquetel, mas algum evento haverá para marcar estes 25 anos de discografia, certamente. Por enquanto, a agenda cheia: ele canta dia 4 de maio em Itumbiara, dia 6 no festival gastronômico de Nova Veneza, dia 14 na Fasam (Goiânia)...

E assim, fechando estas linhas, regozijo-me com estes bons amigos, presente de Deus para enfeitar nossas vidas. Egoísta, sinto-me importante como Farina, que entrevistou tanta gente importante; sou meio artista, na pele de Fernando Perillo, ansioso pelo novo cedê; revisito Carlos Gomes de Carvalho na memória de seu livro de estréia, patrocinado pelo BEG, e fui a pessoa de contato com ele, naquele meado dos anos setenta; e fico meio que cidadão goianiense, na “camisa que faltava” ao Aidenor.

sexta-feira, abril 13, 2007

Beijo (*)



Beijo



Tocar de lábios, roçar de línguas mornas:

soma de salivas doces, acender de hormônios,


ápice de êxtases.


Tatear de peles eriçadas: sonhar o sonho

de meses e luas cheias, a esperança do encanto,


o tremor no encontro.


Algo se move em nós:

sentimos arder no peito


a chama indescritível.


No ventre, em baixo, arde feito calda

alguma coisa boa.


E nos damos de nós por inteiro.


( *) Pelo Dia Inernacional do Beijo. Poema do meu livro "Sarau" (Goiânia, 2003).

domingo, abril 08, 2007

Uma crônica de Fernando Quintella(*)


Afinando o discurso

Fernando Quintella

Corria o ano de 1965. Aos sábados, tínhamos aulas de Canto Orfeônico. O professor, Homero Dornellas, grandalhão, simpático, muito falante, pessoa especial, selecionava discos de música popular para mostrar-nos as tendências musicais, arranjos diferentes e outras peculiaridades musicais. Comparadas com as outras matérias, Canto dava-nos o refresco de nem precisar fazer dever de casa, muito menos submeter-nos a provas complicadas, cujos resultados nem sempre podíamos comemorar. Enfim, era a aula relax.

Durante as aulas, o professor comentava sobre os compositores, músicos ou cantores envolvidos nas gravações dos discos. Falava sobre a Rádio Nacional, seus artistas, os sucessos musicais. Falava de um mundo que conhecíamos à distância, mas que a ele parecia próximo demais. Para nós, Dornellas era amigo de toda aquela gente famosa. Amigo do peito, tanta a intimidade com que se referia a cada um.

A idéia foi do José Medeiros. Sempre ele. Pequeno, agitado, sorriso constante –mesmo nas situações mais difíceis –, Medeiros já mostrava naquela época o excelente advogado que se tornaria anos mais tarde. Ninguém escapava do papo do cara. Se bobeássemos, ele emplacava novas idéias, nem sempre de bom senso. E aquela era uma idéia muito louca. Descobrir se o professor Homero Dornellas curtia com a nossa cara ou era mesmo amigo dos artistas de quem falava em sala de aula.

Escolheram-me para repórter. Eu não vivia pelos corredores alardeando que um dia seria repórter? Pois era a oportunidade de mostrar o quanto eu era bom para o trabalho. Deveria pesquisar sobre o mestre. Sua vida, seus amigos, enfim, a história completa. O problema de conseguir fazê-lo era meu. Repórter é repórter, encontra as respostas para todas as perguntas e ponto final.

Caí em campo na mesma semana. Peguei um ônibus para a Praça 15 e lá fui conversar com Henrique Foreis – o Almirante, “a maior patente do rádio brasileiro”. Compositor, cantor, radialista, escritor, uma penca de atividades, Almirante dirigia o recém-criado Museu da Imagem e do Som, onde havia registros impecáveis sobre o meio artístico nacional. Entrei com o pé atrás. Como explicar a pesquisa? Só podia ser homenagem. Ao me receber, Almirante papeava com o professor Ipanema, conhecido historiador carioca. Grandalhão, vozeirão de radialista (como diz um amigo meu, de barítono atenorado ou de tenor abaritonado), Almirante impressionava pela amabilidade e organização. Mesmo assim, tratei logo de explicar a idéia dos alunos do Colégio Pedro II – Seção Norte. A homenagem, essas coisas. Ele sorriu, mas o professor Ipanema deu-me o manjado olhar de quem sabia onde queríamos chegar.

Na sala ao lado, encontramos inúmeros arquivos kardex, com suas pequenas gavetinhas, onde Almirante arquivava os dados de cada item. Foi na letra H. Puxou a gaveta certa e – Shazam! – apareceram os dados do nosso professor. Violoncelista de orquestra sinfônica, dedicado à música clássica, transitava também pelo popular, com o pseudônimo... Candoca da Anunciação! Lá estava a foto denunciadora. O professor, em pleno carnaval, com roupas de Jeca Tatu, o rosto pintado com rolha queimada, segurando estranho instrumento por ele batizado “arranholino” (caixa de charutos, braço de madeira tosca e uma solitária corda de violão ou violoncelo de cima a baixo).

Almirante vibrava com a oportunidade em falar do amigo. Naqueles tempos, quem era instrumentista clássico estava proibido de se meter no popular. Por isso o pseudônimo, forma inteligente de proteger a identidade. Sim, Homero Dornellas era amigo daquela turma toda. E não apenas amigo: parceiro. Tinha 25 músicas registradas, todas em nome de Candoca da Anunciação. Na Pavuna, de 1929, entre outros sucessos dos anos 1930 e 1940, são de sua autoria. Compositores como Noel Rosa, Lamartine Babo e Francisco Alves – o Rei da Voz – recorriam a ele para escrever as pautas das músicas que compunham, antes de registrá-las. Excelentes compositores, ele desconheciam cifragem de pautas musicais. Sem isso, nada de registro.

Minha cabeça estava a mil. Anotava tudo com a maior fidelidade, por justiça ao mestre e raiva do Medeiros. Como eu me deixara levar por idéia tão doida? Estava na cara. Disputa entre aluno e professor pendia sempre para o lado mais forte, ou seja, o professor. Só podia dar zebra. Antes de sair, envergonhado, o professor Ipanema acaba de estragar minha manhã. Com o mesmo olhar de reprovação da entrada, longa cabeleira branca de intelectual, sugere a Almirante: “Se eu fosse você denunciava esse garoto ao seu amigo. Ele veio saber se o professor é mentiroso. Agora está com essa cara de espanto com o que você mostrou. Denuncia mesmo, Almirante!”.

Meto uma desculpa esfarrapada, despeço-me rapidamente e saio rapidinho do Museu da Imagem e do Som com a certeza de que me estrepei todo. Almirante telefonará para o professor Dornellas. Falará sobre a observação do professor Ipanema. Na hora do sufoco, sobrou pra mim, porque ninguém segurará o rabo de foguete. Quem mandou querer ser repórter?

Na mesma tarde, chego à sala de aula esbaforido. Demorei demais no Centro da cidade. Estou atrasado e furioso. Conto toda a via crucis da manhã. Medeiros ouve com cara de inventor de invento que não funciona. Pela fisionomia, vejo que minha teoria estava certa. Sobrou pra mim. Só resta uma alternativa: homenagear o professor.

Sábado, na mesma semana. O professor Homero Dornellas entra em sala, certo de que os alunos participarão de mais um bom momento de música popular. Disco debaixo do braço, sorriso aberto, terno bem cortado, ele estranha a movimentação dos alunos. Levanto-me, peço a palavra e começo um dos mais emocionantes relatos de minha vida. Conto o meu contato com o lendário Almirante. Falo das músicas. Comento sobre o seu pseudônimo. A amizade estreita com artistas. Faço justiça ao mestre e artista. Todos aplaudem o mestre. Ele se emociona. Conta como era difícil transitar entre o clássico e o popular sem se queimar em qualquer dos ambientes. Agradece a homenagem. Toca a campainha, hora do recreio. Saímos todos da sala de aula muito mais leves. Ficou muito melhor assim. Mas eu passei muito tempo com medo de o Almirante telefonar...

(*) Fernando Quintela, economista e jornalista, ex-aluno do glorioso Colégio Pedro II, Seção Norte (Engenho Novo), anos 60 do Século XX. Seu texto fala por si e bem o recomenda. L.deA.

Um poema bem humorado de Fausto Rodrigues Valle


SEXAGENÁRIO

“Aos que, garbosamente, adentram os penetrais

da madurez absoluta”.

Fausto Rodrigues Vale (*)

Mais um sexagenário na praça!

Difícil ser sexagenário.

Aos cinqüenta, é chamado de maduro, conservado

– e agüenta o tranco.

Aos setenta, dirão: como está bem nessa idade,

sem esconderem a alegria de não estarem lá.

Aos oitenta, com certa compaixão,

admirados de que ainda estejam por aqui,

exclamarão:

que bela idade, quem me dera! Sem, contudo,

aprofundarem o pensamento

na real possibilidade de se verem provectos varões,

como se a juventude ou mesmo a madurez

fossem eternas.

Difícil ser sexagenário. Não está lá nem cá.

Pensa que está no contexto das coisas,

mas verifica por um ou outro detalhe

que já o empurraram para o lado.

Sexagenário é o que já foi e não será mais.

Não tendo a desenvoltura do cinqüentão

nem o charme do ancião,

sexagenário é apenas... sexagenário.





(*) Fausto Rodrigues Valle é, para nosso gáudio, um homem septuagenário, médico (pediatra) aposentado, ex-diretor da Faculdade de Medicina e ex-pró-reitior da Federal de Goiás. Poeta e contista de finíssima sensibilidade e domínio da Língua de Camões, Drummond e José J. Veiga, mineiro de Araxá, goiano desde o primeiro ano de vida... E meu amigo, uai! L.deA.

Autógrafos no sebo


Autógrafos no sebo

Devolva o Neruda que você me tomou / E nunca leu”.
Chico Buarque, in “Trocando em miúdos”.

Presentear meu pai sempre foi muito complicado. É que não vale, no caso dele, imaginarmos o que lhe seja útil, pois o que ganha por carinho é guardado com a mesma embalagem. Por isso, as “sete chaves” do zelo. Aprendi isso com meu velho e costumo preservar os presentes que ganho, exceto aqueles que devem mesmo ser usados. Livros, por exemplo, sempre foram objetos de minha guarda zelosa, mas nem por isso deixei de ser roubado, há mais de trinta anos, e perdi, então, minha pequena biblioteca de Literatura e compêndios de boa Geografia (as maiúsculas são apenas para enfatizar).

Tenho carinho especial para com os livros autografados. Eles, além do valor que lhes é inerente, significam um momento importante: o meu encontro com o autor, seja um encontro real ou o pensamento voltado a mim por quem o postou numa agência de correio, lá longe... Com isso, e após a perda, em 1972, daqueles livros da infância, adolescência e mocidade, fui reconstruindo minha estante; o que se foi naquela primeira, ocupa hoje vários espaços no meu pequeno apartamento e ainda na casa de meu pai, em Caldas Novas, pois aos livros costumo juntar também meus recortes de jornais.

Imagino, desde sempre, que todo escritor, sendo bibliófilo por derivação de ofício, não se desfaz de livros. Conservo comigo até mesmo aqueles que não consigo ler por qualquer razão, como os dois volumes que um judeu ortodoxo me pôs nas mãos quando chegamos (escribas latino-americanos e eu) ao Muro das Lamentações. São livros de cânticos festivos hebraicos, naturalmente em caracteres da escrita judaica, ininteligíveis para mim, segundo nosso guia Yousef Arad: “Para que levar esse peso? Largue-os por aí”, aconselhou-me ele. Respondi que não: afinal o estranho judeu me presenteou com eles, e eles estão aqui, na estante.

Um poeta desta terrinha do pequi, porém, despoja-se facilmente dos livros que recebe de autores locais; vai ver, ele vislumbra em cada um de nós um poeta menor (que ele), e desova nossas obras, ainda que autografadas, nas livrarias de sebo. Lembro-me de ter adquirido vários livros de autores locais dedicados a ele; via-os nos sebos, comprava-os e presenteava os autores. Num dado momento de sua vida, e suponho que após duas crônicas (uma de Leda Selma; a outra, minha) sobre o assunto, o poeta passou a cortar a página de autógrafo antes de remeter às lojas de revenda os livros... indesejáveis.

Há poucos dias, o escritor e acadêmico Luiz Augusto Sampaio presenteou-me com a notícia: comprou, num sebo, livro meu já esgotado; já em casa, ao abrir a peça, deu-se com o autógrafo ao poeta. Luiz Sampaio contou-me o fato, mas omitiu, cavalheirescamente, o nome do poeta. Não precisava; adivinhei-o sem esforço e lhe contei histórias iguais, com outros personagens. Detalhei: a biblioteca do poetinha tem, ainda, o mesmo tamanho de 1977; ou tinha, até os idos de 1990, pois desde então nunca mais o visitei.

Falávamos disso quando nos chega uma colega, poetisa; ouvindo-nos, e sem saber que falávamos do mesmo poeta, ela ilustrou com sua história: havia enviado seu novo livro ao poeta X, devidamente autografado e, dentro, uma cartinha em que exaltava sua admiração ao destinatário e lhe pedia conselhos sobre o ofício do verso. O desfecho não foi diferente: ela própria encontrou seu livro, com o autógrafo recortado rente à lombada; mas a cartinha estava lá, sem ter sido encontrada.

quinta-feira, abril 05, 2007

Um poema (meu) e uma crônica (de Urda Alice Klueger )

Informal

(do meu livro "Canto de Amar"; Goiânia, 1986)


Viaja comigo em Abril.
A gente experimenta novas vistas,
velas vistas do sul.
Carinhos, nós os teremos
de sobra
sem as querelas do cotidiano
e estaremos em férias
até de nós mesmos.

Viaja comigo em Abril,
em dias de sol mais intenso
e prenúncio de inverno.

Depois, é só retornar
à distância dos dias
como escolheste
e como te aceito
sentindo-te minha.




Praia do Campeche - Santa Caratina

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Praia do Campeche – Anoitecer

Urda Alice Klueger -Escritora

(Para Ilze Zirbel – se não fosse por ela, não teria ido àquela praia naquela noite)


Água daquela consistência e daquela cor eu nunca vira sequer no Caribe, e eu sempre digo que o Caribe é o lugar mais bonito do mundo no seu mar! Não sei se ali é sempre assim, ou se eu dera sorte de pegar um momento mágico em pleno andamento, ou se coisas acontecidas há mais de meio século ainda andam pairando por ali e criando aquele encantamento ... O que sei é que água daquela consistência e cor eu jamais vira, nem mesmo no Caribe, pois nem água era, mas um mar de líquido cristal de cor verde-azulada, manso, molengo e cintilante, a se desdobrar em mansas e pequenas ondas que viravam espuma branca com lentidão, e aquele verde-azulado do mar que era cristal contrastava com a luminescência do sol que já mergulhara por detrás da terra, mas deixara no céu aquela luminosidade de ouro que mais parecia coisa descrita em romance medieval – como, nos dias considerados de progresso, que são os dias de hoje, alguém pode se dar ‘a liberdade de dizer que o céu estava cor de ouro? O fato é que estava, assim naquela região por detrás das dunas, e era difícil decidir para onde olhar mais: para o cristal das ondas que se espraiavam em espuma ou para o dourado do céu do outro lado – e havia mais alternativas: lá adiante do meu caminhar o morro mais alto da Armação do Sul, numa cor também entre o verde e o azul, portava saborosa e fofa nuvem de glacê branco à guisa de chapéu – e havia a areia branca da praia, e os muitos surfistas parados, sem coragem de largar aquela beleza toda, pois onda mesmo não viria naquele dia, de jeito nenhum – e os cachorros enormes, mansos e como que cheios de ternura pelo mundo – e quase que ao alcance da mão, do lado do mar, como se fosse só um morro cheio de árvores, a Ilha que decerto fora muito sagrada para muita gente do passado – era o anoitecer de 29 de março na Praia do Campeche, Brasil, e a beleza era tamanha que a própria atmosfera era puro encanto, e eu própria virara um ser encantado que seguia pela praia com o dourado do céu à minha direita e os olhos pregados de fascínio naquela cor verde-azulada do mar de cristal líquido!

Lentamente, aquela cor da água foi-se transformando de verde-azulada em azul-azulada, e como que o céu, e o morro da Armação, lá adiante, e a atmosfera, tudo foi ficando da mesma cor – e por detrás das dunas a cor de ouro diminuía, ficava apenas sugerida, pois já fazia muito que o sol estava a se afastar do dia, e o andar descalça dentro da água de cristal líquido que molhava a barra do meu vestido era como que flutuar numa irrealidade.

Em algum momento, porém, tive que começar a voltar, pois a chegada da noite era iminente. E então o espanto, ao fazer a volta: bati de cara num céu todo róseo naquele lado, coisa de doido, de não se crer, portando imenso disco de prata no meio. O encantamento era tanto que fiquei meio perdida: seria a Lua? Seria, talvez, um Asteróide? Não seria coisa de duvidar, tendo em vista o tanto que Antoine de Saint-Exupéry freqüentara aquela praia na década de 1930. Titubeei, imersa naquele encantamento todo que me fazia como que flutuar na praia, tentando entender direito o que estava vendo. Se fosse um Asteróide, aquele lá seria um Príncipe? Mas seria aquele o Príncipe do Asteróide? No grande disco de prata, quem me olhava não era um menino de cabelos cor de trigal maduro, e nem era alguém que usava um comprido cachecol. Talvez não fosse um Asteróide, afinal. Seria a Lua, a minha própria Lua, a Lua deste meu Planeta? Só podia ser, mas como se fosse um Asteróide, lá na Lua também havia um Príncipe. Era encantado e muito cheio de prata, também, tanto que se confundia com o grande disco luminoso, mas era um Príncipe tão encantado quanto o do Asteróide. No meio daquele brilho todo que flutuava no róseo do céu, podia eu vislumbrar os seus olhos doces e cálidos, macios como avelãs que se comem em noite de Natal, e tão cheios de ternura pela Humanidade que até parecia impossível! Sim, aquele era o Príncipe da Lua, e tudo estava tão luminoso que custei um pouco a reconhecer os detalhes: o sorriso bom, o gorjeio de Passarinho na alma, a maciez da barba, a camisa de xadrezinho azul aberta no peito macio... Ai, a vida era boa demais! Lá naquele lugar encantado, quando menos esperava, o Príncipe da Lua estava ali tão próximo e tão lindo como estava todo o tempo dentro do meu coração!

Não há outra coisa a se fazer com um Príncipe assim além de amá-lo!


Blumenau, 03 de Abril de 2007.


Urda Alice Klueger Escritora