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domingo, julho 29, 2018

O tempora! O mores!


Em tempo de valores morais



Conversava com o escritor Edival Lourenço sobre coisas deste quotidiano – isso que entendemos ser o nosso tempo. Mas, claro, uma vida já vivida não se faz, nos conturbados anos desencadeados pela Revolução Industrial, de um só tempo. Nós, que nascemos nos anos 40 e 50 do século passado, sabemos bem das incríveis transformações da nossa curta existência terrena.

Fomos criados (ou seja, o tempo da nossa infância) sob a batuta de indiscutíveis e fortes valores morais. Coisas como lealdade, respeito, confiança e compromisso eram quase que sólidas, palpáveis – e tinham peso! Tínhamos sonhos de realizações materiais, porém as de cunho axiológico eram-nos mais importantes.

Num tempo mais adiante, fizemo-nos jovens. Não crescemos mais, os pelos no rosto exigiam um cuidado diário para “preservar a boa aparência” e cuidávamos de ter roupas adequadas para o trabalho e para o lazer – cada coisa a seu momento. Cuidávamos também das palavras a usar – afinal, temos um riquíssimo vocabulário à disposição e saber usá-lo fazia (naquele tempo) de cada qual um tipo bem definido.

Éramos cheios de ideais. A origem humilde no campo ou nas pequeninas cidades fazia de nós-moços pessoas crentes naquilo que nossos chefes ou patrões nos diziam. Edival e eu fomos bancários – e éramos convictos de que trabalhávamos em favor da sociedade, iludidos na cantilena doutrinária dos manuais e da “cultura” de nossas empresas.

Ao nos despedirmos do emprego, uns 30 anos após a alegria do primeiro dia, já sabíamos que não era bem assim. A experiência nos demonstrou que servíamos para explorar a sociedade que pensávamos beneficiar.

Sim, somos do tempo em que era dever da criança e do jovem, quando estudantes, respeitar os professores. Não se tratava de uma postura de vã disciplina, mas de procederes que deviam se multiplicar em sociedade pelo restante da vida. Aos pais e avós pedíamos bênçãos – e aos tios também. Aos vizinhos, oferecíamos bons-dias e sorrisos amigos, aos amigos oferecíamos fraternidade.

Contudo, as sementes do mal já existiam, é claro! Só não sabíamos que se multiplicariam de modo tão rápido e insidioso. Os tempos de agora abrigam pessoas da nossa mesma “safra”, mulheres e homens de muitas vivências e, acredito com segurança, formados na mesma doutrina que concebemos. Mas os sóis que raiaram para nós, nestas décadas de grandes transformações parecem diferentes. Ou não teríamos notícias tão decepcionantes nos noticiários de todos os dias, com trapalhadas e mazelas muito bem tramadas na calada da noite ou entre as paredes sólidas (e nem sempre mudas e surdas) dos gabinetes.

A conversa com o confrade Edival deixou-me pensativo: a nação brasileira espera, com ansiedade e confiança, atos de nobreza dos gabinetes do Judiciário, na antítese dos atos escandalosos que advêm dos palácios do Executivo e do Legislativo. Mas a cada novo habeas-corpus a fé nas togas cai alguns pontos.

A confiança se torna menor ante as “tratativas” dos três poderes, em Goiás, na arquitetura de mais um penduricalho judiciário, esse que presenteia os magistrados goianos com licença-prêmio – prêmio estranho para uma classe que já desfruta de dois meses de férias e oportunos recessos, sem considerar os salários nababescos e outros arranjos (como o tal auxílio-moradia, o auxílio-livros e a bolsa de estudos dos filhos).

Quando ainda esperávamos respostas a esse pacto harmonioso, a tevê e as rádios, secundadas pelos jornais e revistas, contam-nos da sanha despudorada, inescrupulosa, do tal Doutor Bumbum, que cobra cerca de 20 mil reais para aplicar silicone nas bundinhas magras de vaidosas insatisfeitas.

Tentei não comentar esses casos. Vivi a vida driblando dificuldades, superei problemas de várias naturezas e algumas vezes perdi o equilíbrio. Pensei que virava as páginas desses fatos e atos, imaginei que para cada mau médico dispomos de centenas de bons doutores. Mas... E a cúpula do Judiciário? Ficou claro, nas matérias jornalísticas, que a proposta fora aprovada, lá entre eles, por unanimidade. Contudo, para ser viabilizada, há que se tornar lei – e vamos ver se a Assembleia Legislativa será unânime. A sabedoria popular afirma que os deputados aprovarão, sim, por maioria.

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Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras.

Mundos Paralelos







Memórias de dois mundos


(Texto de apresentação para o livro
Mundos Paralelos
que saiu do prelo na últim
quinta-feira, 19/07/18, pela Kelps Editora).



Sei de mim, ou por mim, como a vida nos é servida em ciclos, em fases que atravessamos em seu próprio tempo. Minha infância foi povoada de feitos mil, aliás, os feitos possíveis numa minúscula cidade do interior de Goiás. Minhas lembranças remontam ao final da década de 1940, a época em que me tornei estudante para ser alfabetizado no colo da professora. E nunca me esqueci de muitos fatos – mas as contações orais de histórias nas noites, na rabeira dos borralhos, esses saraus marcam fortemente minha memória.

Vem de longe o meu gosto pela leitura e pelas canções. Esses gostares, aliados aos saraus a que me referi, são as bases do homem maduro que me tornei e acredito mesmo que posso ser, num futuro mediano, um velho contador de causos. Sim, um velho (daqui a alguns anos), porque contador de causos já o sou e isso se arrasta por um bom tempo.


Pois foi esta minha faceta que me prendeu a uma das histórias contadas, nas páginas das mídias sociais da Internet, por Bete França Jufer. Ela narra com candidez e ternura histórias de suas lembranças, coisas de uma jovem capital bucólica, uma Goiânia que, no decurso de sua infância e adolescência, marcava pouco mais de 20 anos desde a escolha do sítio onde se concretizou.

Bete França, feito moça, casou-se com Hanz e se tornou cidadã suíça. Gerou três filhos e, já iniciada no requintado ciclo do avonato, associou predicados ao aprendizado em casa e na escola, os bons exemplos dos pais professores, a experiência de mãe e mestra em terra nova-pátria para desaguar toda essa afluência num novo ofício – o da escrita em narrativas adoráveis!

Costumo dizer que só se é bom cronista quem tem a competência de “temperar” a narrativa com pitadas de poesia. E poesia, no caso, não se resume à forma, mas sim à essência do texto. Poesia, num conceito melhor elaborado, é a alma das artes – e dos feitos humanos. Bete Jufer é escritora de bom fôlego e refinado talento – isso o leitor descobrirá em pouco, mal inicie a leitura deste Mundos Paralelos. Ela sabe bem dar ao texto de suas narrativas os toques suaves da essência, como o alecrim nos assados ou o ponto ideal das ervas finas no bom molho.

As lembranças da vida nos anos de 50 e 60 (essas referências, em todo o livro, remontam, obviamente, ao século passado) unem-se às vivências e observações da autora ao ambiente de sua vida nos últimos 30 e poucos anos – as montanhas e bosques da Suíça, inevitavelmente pontilhados de gente: um povo de muitas marcas admiráveis por sua história, sua cultura variada e bela, seus costumes saudavelmente amadurecidos e que hão de nos servir de exemplos.

Estes aspectos, que me encantaram, hão de agradar também os leitores – entre os quais, eu sei, estarão amigos de infância e de juventude da autora, bem como os familiares... Enfim, os goianienses, nativos ou adventícios, que viveram a nossa cidade daqueles tempos de Cine Goiânia, Jóquei Clube, Rua 8, Ateneu e Liceu, Campinas e Setor Oeste, Instituto França e IEG... Ora, um emaranhado de locais e fatos que constituem a nossa saudade.

Da saudade, aprendi ainda moço, devemos extrair o que é bom – o que dói, há de permanecer nos umbrais dos arquivos a serem esquecidos.

Orgulha-me ter sido dos primeiros entre os privilegiados, isto é, os que puderam conhecer antecipadamente estas narrativas de Bete França Jufer. Obrigado, Bete! Você é bem-vinda a este mundo de escribas sonhadores, de saudosistas conscientes – e felizes!


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Luiz de Aquino, da Academia Goiana de Letras.

domingo, julho 01, 2018

Questão de valores







Meu tio e o relógio 



Corria o ano da graça de mil novecentos e sessenta e não-me-lembro. Amigos leitores, esse introito aí foi feito para provocar o Ranulfo Borges, ele que me qualificou de saudosista, no melhor estilo do meu amigo José Mendonça Teles, hábil nas crônicas sobre a Campininha das Flores, que de cidade aceitou tornar-se o primeiro bairro de Goiânia; e eu exercitei a saudade ao recordar o Rio de eu-menino, antes do Estado da Guanabara, da fusão e do tráfico.

Mas era mil novecentos e sessenta e tantos e – lá vai mais saudade, Ranulfo! – e era Caldas Novas. 

Gente! Caldas Novas era muito mais bonitinha com as ruas de cascalho e as casas com fachadas personalizadas. Eu juro que era! Hoje, cada jardim virou um conjunto de três ou cinco lojinhas. A vida acontecia: os namoros, os fuxicos, os... Claro: acontecia o que a gente via e o que a gente sabia. Os fatos se davam na calada da noite. E a noite, então, era muito mais calada: os namorados não se beijavam diante dos outros e os moços não contavam ter beijado as namoradas; pais, mães, tios e avós vigiavam-nos todo o tempo e a falta de vigilância resultava, sempre, em desvirginamento precoce, o que só se sabia na hipótese de uma gravidez indisfarçável ou diante de um inefável flagrante.

Mesmo naquela época, o sexo proibido não era exclusividade dos moços e solteiros, não. O sexo doméstico – ou familiar – era tido como monótono, daí o nome “papai-mamãe”, que dispensa explicações. Havia os homens sem-vergonha, os que cometiam seus pecados com... com... Com moças pudicas ou recatadas senhoras da mais fina sociedade. Sim, que ninguém é besta de titular uma aparente donzela de galinha, ou uma mãe de família de vagabunda. Então, esses homens ímprobos, esses maridos infiéis, cometiam seus desatinos, dando vazão aos seus “instintos bestiais” com respeitáveis donzelas ou mães de família cujos maridos e filhos, obviamente, estavam na lida, na fazenda.

Um desses desavergonhados era meu tio. E, exercendo sem o saber o pecaminoso tráfico de influência, invadia o quintal da delegacia de polícia para saltar o muro e amancebar-se, furtivamente, às primeiras horas da noite, com uma senhora impecável e piedosa. 

Um dia, muito afoito (era a chegada), deixou cair o relógio de pulso e não notou. Mas gostava do relógio; tanto que pregou em sua loja um cartaz: “Perdi um relógio Mido, de pulso. Gratifico com mil cruzeiros” etc. Pouco depois, chega ao comércio do titio ninguém menos que Romano Crisóstomo, o delegado. Em silêncio, pôs o relógio sobre o balcão; olhava os olhos do meu tio e o cartaz na parede. Alguns dos presentes, mais amigos que fregueses, assistiam e teciam breves comentários. 

Era conhecida também como "abobrinha"...

O tio foi à gaveta, pegou uma nota com a cara de Cabral e indagou:

– Onde estava o relógio?

E Romano:

– Junto ao muro da casa da Dona...

Nem concluiu a frase! Meu tio devolveu-lhe o objeto e pronunciou, solenemente:

Não é o meu! – E guardou os mil cruzeiros. 

Preferiu perder o que lhe era um mimo para não expor a amada clandestina.

 (Fotos colhidas na Internet)


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Luiz de Aquino é escritor e jornalista, membro da Academia Goiana de Letras