Crônica publicada no DM (Diário da Manhã, de Goiânia) em janeiro de
2001. A velha cantilena das enchentes e dos dramas que elas nos
trazem – em contraponto com a seca que ameaçou impor a sede
à nossa maior metrópole. Republico-a em nome da memória,
nesta semana em que Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo
fecharam um acordo sobre o Rio Paraíba do Sul (L.deA.).
2001. A velha cantilena das enchentes e dos dramas que elas nos
trazem – em contraponto com a seca que ameaçou impor a sede
à nossa maior metrópole. Republico-a em nome da memória,
nesta semana em que Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo
fecharam um acordo sobre o Rio Paraíba do Sul (L.deA.).
A rua virou um rio
Há
horas, o céu era de um azul forte, bonito, permeado de nuvens alvas como
uniforme de antigas normalistas. Alguém se lembra das normalistas? Aquelas
moças que, após o ginasial, escolhiam fazer a chamada Escola Normal, que tinha
aqui em Goiânia sua maior referência no Instituto de Educação.
Ah,
no Rio de Janeiro também! Existe ainda um belo casarão, em arquitetura de
estilo, na Rua Mariz e Barros, na Tijuca, que, até os anos 70, era referencial
obrigatório na saudade carioca. Da infância, ficaram os versos de David Nasser
(música de Benedito Lacerda) que Nelson Gonçalves imortalizou:
Vestida de azul
e branco
trazendo um sorriso franco
num rostinho encantador
minha linda normalista
rapidamente conquista
trazendo um sorriso franco
num rostinho encantador
minha linda normalista
rapidamente conquista
meu coração sofredor”.
O
garoto de cinco anos delicia-se com o que vê – a rua virou um rio, diz ele,
sugerindo um poema moderno, três versos apenas, mas não é haikai, que não tem a
métrica:
Rio
porque a rua
virou rio.
porque a rua
virou rio.
Bem podia ser haikai, sim:
Foi-se a
rua.
Sob célere torrente
virou rio.
A
noite já vem, e com ela o telejornal ao pôr do sol, pois que há horário de
verão. O modesto rio da torrente aqui em frente apenas sugere o lamaçal que
obstruiu avenidas, fez escuro, apagou sinais de luz dos cruzamentos, enfureceu córregos
e transformou vidas. Há entrevistas de bombeiros militares, esses que chamamos
defesa civil. Famílias em desabrigo, funcionários barnabés a buscar guarida
para tantos. Existem casas desocupadas, a prefeitura as oferece – mas eis que
foram invadidas por sem-tetos desde ontem, diz o locutor. Um pai chora ante a
câmara, e a casa acaba de cair: só resta a parede de fachada.
Agora,
fala o coronel-bombeiro-militar-defesa-civil. Sua entrevista também é
interrompida, a água furiosa arranca mais barranco. No peito da gente, dói uma
dor feito verruma: sensação de impotência, vontade de fazer alguma coisa,
ajudar, sei lá!
O
locutor volta à tela e conta: outra margem de córrego também acumula
desabrigados e, entre estes, gente que nas enchentes do ano passado ganharam
casas, casas próximas às casas que os sem-tetos invadiram ontem. E não estão lá
porque, assim que as chuvas passaram, venderam suas casas e voltaram para a
margem do córrego.
* * *