Páginas

sexta-feira, abril 07, 2023

A geração que viu antes

 A geração que viu antes

Nossos pracinhas mobilizados, em 1944, para libertar a Itália.

 

A minha geração estava certa. Ou quase. Ou esteve certa, por um tempo. Em grande parte, suponho que a maioria dos que alcançaram os bancos escolares, os autodidatas que se informaram acendendo as próprias candeias e aqueles que, sem a escola e sem o lume, souberam aprender na conversação, à luz do sol e dos luares e na leitura dos sons das vozes de mães e pais, de avós e avôs, de tios e tias, e vizinhos mais próximos. Somos nascidos no segundo quarto do século XX e pudemos contaminar os que viram a luz primeira ainda nas duas décadas seguintes, ou seja, por quase mais uma geração – considerando de 25 anos tal conceito.


Nascemos sob os sons dos canhões da Segunda Guerra – ou ainda percebendo os ecos das batalhas. As guerras exigem muito das ciências, da medicina, da engenharia etc. As artes seguiram – ou antecederam – as ciências. As mentes de todos os cantos aonde chegaram os gritos de ataque ou os gemidos das vítimas abriram-se para tentar mudar o mundo e seus costumes. Grandes reflexos marcam profundamente os tempos que temos como pós-guerra, desde a moda do que vestimos, como tratamos nossos cabelos, como descobrimos o valor dos cosméticos, como passaram a nos tratar os médicos... Precisávamos ajustar nossos costumes, não bastava adequar a moda.


Do meio literário, lá com os irmãos-do-norte, nasceram os beatniks, os baratas-tontas, que logo contaminaram as artes em geral, dos pincéis às partituras; o comércio pediu novidades e as indústrias também agiram, os arquitetos e os desenhistas (hoje chamados designers) inovaram desde nossas calças e camisas, saias e tailleurs, paletós e agasalhos, além de uma nova arquitetura que inspirou Pampulha e Brasília, novos tipos e modelos de automóveis e aviões; do Japão, a “terra do Sol nascente”, veio a miniaturização que nos ofereceu rádios minúsculos, sem válvulas e dependentes de pequeninas pilhas, em lugar da complexa rede da energia elétrica.


O pequenino e cobiçado rádio a pilha, japonês.

O mundo se preparou para sair de casa: se, no começo do século, o homem aprendeu a voar, o sonho aumentou e a ganância também: “Vamos conquistar o espaço além da atmosfera!”.  


Bandas de rock chegaram rápido, e sem timidez, nos anos 1950.


No meu tempo de criança, os rapazes já usavam “calça faroeste”; o brim mesclado, que chamávamos de “brim curinga” – referência à marca oriunda do Moinho Santista – já era comercializado com facilidade nas lojas de tecidos por todo o país; mas a mesma fabricante do jeans (tradução: brim), citado sempre como “blue jeans”, lançou a calça pronta: a Faroeste, com um W bordado em linhas duplas, de contorno, nos bolsos traseiros da nada original five pockets criada pelo antropólogo Levi Strauss. 


A calça de índigo blue cai no gosto nacional

Nos anos que antecederam o golpe de 1964, os navios da maior armada do mundo, atracados no Rio de Janeiro, eram liberados para visitação; estudantes iam lá, muito mais para obter cigarros americanos em troca dos nacionais – mais fortes e muito ao gosto dos mariners. Era comum, também, desde que se dispusesse ao escambo, obter calças do brim azul fabricadas nos EUA – as famigeradas “calças Lee”. A partir dos meados da década de 1960, o produto entrou no Brasil com muita força e intensidade: as calças, confeccionadas sem os cuidados que normalmente se exigem, tinham um defeito – as pernas eram desalinhadas, ou seja, as costuras não tinham a simetria em cada perna; e como era indispensável fazer ajustes, costureiras e alfaiates nacionais ajustaram-se, com relativa facilidade, àquela coisa torta.




Algo, porém, há que se registrar sempre: somos nós, os nascidos naquele segundo quarto do século XX, os que resistíamos ao peso da infiltração norte-americana. O peso da propaganda das agências de propaganda do irmão-do-norte converteu, sei bem, a maioria dos meus contemporâneos: a música, o cinema e até mesmo a “ajuda humanitária” da USAID, que patrocinou por aqui de leite em pó a rodovias – além, claro, do golpe que nos privou de liberdade por 21 anos – aliciaram a opinião pública. Os remanescentes dos enganados refletem-se, hoje, no eleitorado que diz acreditar que “não houve ditadura” ou que “eles só perseguiram e mataram quem não prestava”. Na realidade, os que os aplaudiam, sim, eram “os que não prestavam”, tanto que doutrinaram filhos e periféricos a acreditar nessa balela.


Estou hoje, portanto, no pedestal de quem nasceu poucos meses após o fim da Guerra, em 1945, consciente de que me alinhei do lado certo. Recusei-me a falar inglês, fui parcimonioso em curtir o cinema e a música vindos de lá; andei muito perto de me imiscuir dentre os fanáticos (ou fundamentalistas), mas consegui permanecer nacionalista sem xenofobia, acreditando que o crescimento dos povos passa, sim, pelo intercâmbio das culturas.


Não fizemos tudo, não; e sei, ainda mais, que não conseguimos proteger nossos povos originários, e os militares doutrinados “por eles” (os alienígenas que refugamos) maculam a dignidade da farda do Marechal Cândido Rondon, ao protegerem os genocidas que envenenam os solos, assassinam as florestas e ferem de morte os rios; que corrompem os povos nativos, seduzem-nos com álcool e drogas, violentam suas mulheres e filhas e contrabandeiam inescrupulosamente nossos minérios.


Mais triste ainda, contudo, é ver que muitos – muitos, sim, maioria prejudicada – se deixaram seduzir pelos cantos-de-sereia do imperialista. São pessoas imediatistas, patrimonialistas, curtidoras do que se tem, hoje, por “zona de conforto” e que pagam qualquer preço por tais benesses. Destroem as matas e o cerrado; comprometem o ar e o clima; envenenam os solos e os rios – que estão morrendo de sede – e se enriquecem ao produzir comodities. E, ainda, torcem para elevar o valor do dólar e comprometem a sobrevivência dos mais carentes, ao impor, no açougue da esquina, a dolarização do quilo de coxão-duro.

 *  *  * 

segunda-feira, abril 03, 2023

Sessenta anos em Goiânia



Aerofoto do Palácio das Esmeraldas; as duas grandes placas claras, na parte baixa, são as primeiras lajes do Centro Administrativo, em construção (1962 ou 63).


Sessenta anos em Goiânia

 

O espelho é parceiro constante, peça mágica de encantamento e autoidolatria (para os narcisistas). Mas é, também, um amigo disponível que, enquanto nos satisfaz o ego com as chances de autoadmiração, aconselha-nos a tomar medidas e decisões, sempre que necessário: “Corte o cabelo; barbeie-se; erga os ombros; cuidado com a alimentação” etc. e tais. O espelho costuma, muitas vezes, sugerir-me uma visita a velhas caixas de fotografias – e, na versão contemporânea, a arquivos digitais.

Gosto da minha idade (sempre gostei); e gosto do passado, esteio do agora e trampolim para o futuro. Divirto-me com as imagens que despertam lembranças, e transformo esses momentos em fabulosos exercícios da memória. Isso me desperta sorrisos e risos, muitas vezes – noutras, surpreende-me com furtivas lágrimas incontidas, valorizando as emoções que tais lembranças cutucam.

Cheguei à fase em que raríssimas são as pessoas da minha vivência a quem consultar; tornei-me, eu próprio, fonte de informações para os mais moços (amigos e familiares), mas as perguntas dos filhos e netos, dos sobrinhos e primos nem sempre encontram respostas em mim. Mas, penso eu, de uns tempos para agora: “Isso não tem mais importância, ficou perdido naquele passado, foi sepultado com os que se esqueceram de me contar”. É um modo de me perdoar por não saber – ou de me poupar de alguma culpa, visto que, em tempo adequado, não me ocorreu de tentar saber.

Bem: não quero bater na tecla insistente de que “os velhos sabem tudo”; sabemos, sim, de muita coisa, mas vejo e ouço o quanto os moços andam desinteressados; pensam que tudo da vida está no gúgol, esse que quebra tantos galhos na internet e que, erroneamente, vem substituindo as enciclopédias, tolhendo-nos das melhores ferramentas tira-dúvidas; em breve, estaremos com muito mais informações, porém muito menos bem informados do que seria possível.


Pelo mesmo ângulo: na década de 1950 e  em 2011.

Para não perder o fio de meada, ou a luzinha no fim da escuridão, estala em minha memória meus primeiros dias em Goiânia (em agosto próximo, festejarei – sozinho, pois sei bem que isso só interessa a mim – 60 anos de minha chegada.

Bom goiano, “de pé rachado”, asseguram-me a goianidade a tradição na família paterna, com raiz na senzala do Engenho de São Joaquim, na vetusta Meia Ponte que se tornou Pirenópolis. A famosa Fazenda Babilônia – nome que recebeu do Padre Simeão, que a adquiriu dos herdeiros do velho engenho – teve o leito em que o comendador Joaquim da Costa Teixeira ‘coabitou’ com a mucama Eufêmia de Gouveia. Sua filha Maria Jesuína da Costa Teixeira casou-se com Luís Tomás de Aquino, bisavós de meu pai. A outra vertente da minha concepção é a mestiçagem de duas raízes italianas com caboclas bem nacionais: minha mãe era filha do Vô Chico (Francisco Borgese) e da minha avó Inês, cuja pai era também italiano (o Vô Donato, que alcancei; faleceu duas semanas após minha chegada a Goiânia, tinha 97 anos). Acredito que essa miscigenação variadíssima me dá a composição genérica do bom brasileiro. 


Dois tempos, pelo mesmo ângulo: 1952 e início dos anos 2000.

Voltando a 1963, mais precisamente ao dia 31 de julho... Era pouco mais de meio-dia quando desembarquei, ao lado de meu primo Rogério Cunha Ríspoli, na rodoviária que, hoje, é um quartel do Corpo de Bombeiros. Estávamos ambos muito corados, ou seja, a pele e a roupa cobertas com o pó vermelho da estrada desde Caldas Novas até alcançar o asfalto da BR-14 (hoje, BR-153), nas proximidades de onde hoje está a praça de pedágio, no povoado Floresta. Na manhã seguinte, inaugurei minha condição de aluno do Liceu de Goiânia – nos papéis, Colégio Estadual de Goiânia, nome esse que a população nunca assimilou; o nome Liceu de Goiânia, extra oficial, constava até mesmo em algumas insígnias do colégio – um braço do Liceu de Goiás, criado na antiga capital em 1846.

Minha alegria só era compreensível para mim mesmo: eu vinha do Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, o mais antigo dentre todos os colégios do país em atividade ininterrupta; e o Liceu de Goiás ocupava, sem que muitos de seus alunos e mesmo professores soubessem, o honroso papel de “o segundo mais antigo” na mesma condição – a de jamais ter fechado suas portas.


O Liceu era assim e nos enchia de orgulho; aí fui aluno e, algum tempo
depois, professor.

Aqueles cinco meses restantes, isto é, o segundo semestre letivo, foi de descobertas valiosas para mim. Eu deixava o Rio em ano pré-vesperal de seu quarto centenário e chegava à novíssima Goiânia, que festejou, em outubro, 30 anos de sua Pedra Fundamental; integrei-me (com alguma rejeição por parte de alguns colegas) ao novo colégio, convivi com jovens poetas na mesma sala de aula (Emilio Vieira e Ciro Palmerston) e descobri-me aprendiz de ator com Otavinho Arantes.

Tempo de adaptação, de descobertas e aprendizados... Coisas que se plantaram na minha memória; na época pareciam de menor valor, mas hoje têm a função de um alicerce no começo da vida adulta.

 


L.deA.

Luiz de Aquino (da AGL, do ICEBE , do IHGG e da UBE). Especial para a Revista Cultural Sicoob Unicentro BR.