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segunda-feira, abril 03, 2023

Sessenta anos em Goiânia



Aerofoto do Palácio das Esmeraldas; as duas grandes placas claras, na parte baixa, são as primeiras lajes do Centro Administrativo, em construção (1962 ou 63).


Sessenta anos em Goiânia

 

O espelho é parceiro constante, peça mágica de encantamento e autoidolatria (para os narcisistas). Mas é, também, um amigo disponível que, enquanto nos satisfaz o ego com as chances de autoadmiração, aconselha-nos a tomar medidas e decisões, sempre que necessário: “Corte o cabelo; barbeie-se; erga os ombros; cuidado com a alimentação” etc. e tais. O espelho costuma, muitas vezes, sugerir-me uma visita a velhas caixas de fotografias – e, na versão contemporânea, a arquivos digitais.

Gosto da minha idade (sempre gostei); e gosto do passado, esteio do agora e trampolim para o futuro. Divirto-me com as imagens que despertam lembranças, e transformo esses momentos em fabulosos exercícios da memória. Isso me desperta sorrisos e risos, muitas vezes – noutras, surpreende-me com furtivas lágrimas incontidas, valorizando as emoções que tais lembranças cutucam.

Cheguei à fase em que raríssimas são as pessoas da minha vivência a quem consultar; tornei-me, eu próprio, fonte de informações para os mais moços (amigos e familiares), mas as perguntas dos filhos e netos, dos sobrinhos e primos nem sempre encontram respostas em mim. Mas, penso eu, de uns tempos para agora: “Isso não tem mais importância, ficou perdido naquele passado, foi sepultado com os que se esqueceram de me contar”. É um modo de me perdoar por não saber – ou de me poupar de alguma culpa, visto que, em tempo adequado, não me ocorreu de tentar saber.

Bem: não quero bater na tecla insistente de que “os velhos sabem tudo”; sabemos, sim, de muita coisa, mas vejo e ouço o quanto os moços andam desinteressados; pensam que tudo da vida está no gúgol, esse que quebra tantos galhos na internet e que, erroneamente, vem substituindo as enciclopédias, tolhendo-nos das melhores ferramentas tira-dúvidas; em breve, estaremos com muito mais informações, porém muito menos bem informados do que seria possível.


Pelo mesmo ângulo: na década de 1950 e  em 2011.

Para não perder o fio de meada, ou a luzinha no fim da escuridão, estala em minha memória meus primeiros dias em Goiânia (em agosto próximo, festejarei – sozinho, pois sei bem que isso só interessa a mim – 60 anos de minha chegada.

Bom goiano, “de pé rachado”, asseguram-me a goianidade a tradição na família paterna, com raiz na senzala do Engenho de São Joaquim, na vetusta Meia Ponte que se tornou Pirenópolis. A famosa Fazenda Babilônia – nome que recebeu do Padre Simeão, que a adquiriu dos herdeiros do velho engenho – teve o leito em que o comendador Joaquim da Costa Teixeira ‘coabitou’ com a mucama Eufêmia de Gouveia. Sua filha Maria Jesuína da Costa Teixeira casou-se com Luís Tomás de Aquino, bisavós de meu pai. A outra vertente da minha concepção é a mestiçagem de duas raízes italianas com caboclas bem nacionais: minha mãe era filha do Vô Chico (Francisco Borgese) e da minha avó Inês, cuja pai era também italiano (o Vô Donato, que alcancei; faleceu duas semanas após minha chegada a Goiânia, tinha 97 anos). Acredito que essa miscigenação variadíssima me dá a composição genérica do bom brasileiro. 


Dois tempos, pelo mesmo ângulo: 1952 e início dos anos 2000.

Voltando a 1963, mais precisamente ao dia 31 de julho... Era pouco mais de meio-dia quando desembarquei, ao lado de meu primo Rogério Cunha Ríspoli, na rodoviária que, hoje, é um quartel do Corpo de Bombeiros. Estávamos ambos muito corados, ou seja, a pele e a roupa cobertas com o pó vermelho da estrada desde Caldas Novas até alcançar o asfalto da BR-14 (hoje, BR-153), nas proximidades de onde hoje está a praça de pedágio, no povoado Floresta. Na manhã seguinte, inaugurei minha condição de aluno do Liceu de Goiânia – nos papéis, Colégio Estadual de Goiânia, nome esse que a população nunca assimilou; o nome Liceu de Goiânia, extra oficial, constava até mesmo em algumas insígnias do colégio – um braço do Liceu de Goiás, criado na antiga capital em 1846.

Minha alegria só era compreensível para mim mesmo: eu vinha do Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, o mais antigo dentre todos os colégios do país em atividade ininterrupta; e o Liceu de Goiás ocupava, sem que muitos de seus alunos e mesmo professores soubessem, o honroso papel de “o segundo mais antigo” na mesma condição – a de jamais ter fechado suas portas.


O Liceu era assim e nos enchia de orgulho; aí fui aluno e, algum tempo
depois, professor.

Aqueles cinco meses restantes, isto é, o segundo semestre letivo, foi de descobertas valiosas para mim. Eu deixava o Rio em ano pré-vesperal de seu quarto centenário e chegava à novíssima Goiânia, que festejou, em outubro, 30 anos de sua Pedra Fundamental; integrei-me (com alguma rejeição por parte de alguns colegas) ao novo colégio, convivi com jovens poetas na mesma sala de aula (Emilio Vieira e Ciro Palmerston) e descobri-me aprendiz de ator com Otavinho Arantes.

Tempo de adaptação, de descobertas e aprendizados... Coisas que se plantaram na minha memória; na época pareciam de menor valor, mas hoje têm a função de um alicerce no começo da vida adulta.

 


L.deA.

Luiz de Aquino (da AGL, do ICEBE , do IHGG e da UBE). Especial para a Revista Cultural Sicoob Unicentro BR.

13 comentários:

Prof. Egmar Chaveiro disse...

Prof Egmar Chaveiro:
A sua crônica - SESSENTA ANOS EM GOIÂNIA - é muito boa. O modo como você lida com a idade e com o passado parece-me lúcido e denso.
Ah, a significação do espelho superando o espectro narcísico é também rica e valiosa.
Acho que devemos aceitar a nossa condição de fonte. Fonte viva e aberta.

Prof. Egmar Chaveiro disse...

O seu texto chegou num lugar bom: é sereno, leve, equilibrado

Márcio Santana disse...

Márcio Santana:
Excelente texto, meu amigo! Vc o descreveu com leveza e de uma forma agradável de se ler!!! Parabéns!!! 👏🏼👏🏼👏🏼

Rosália Perissé disse...

Rosália Perissé:
������������
Que beleza de crônica!!!!
Conheço todas essas sua histórias, aprendi a gostar delas.

Lúcia H Vieira disse...

Lúcia H Vieira:
Obrigada, texto biográfico inspirador! História de vida bonita!
Quando você chegou aqui, caminhava para Ribeirão Preto.
Desencontramos! Voltei a Goiânia em 1968. Fui para o IEG, terceiro ano. Daí colei grau e... trabalho, trabalho e trabalho!
Olhar ao céu tentando descobrir o rumo.

Vou reler seu texto!

João Marcello, cantor disse...

João Marcello, Cantor:

Que lindas memórias!
Eu não sabia sobre o Lyceu de Goiânia ser o segundo colégio (em atividade ininterrupta) do Brasil.
Obrigado por partilhar!

Anônimo disse...

Belas memórias, lúcidas é bem contadas 👏👏👏

Alice Prudente disse...

Alice Prudente:
Belas e bem com contadas memórias 👏👏👏

Valdir Ferreira disse...

Valdir Ferreira:
👏👏👏memórias afetivas, uma trajetória muito valorosa nesta nossa Goiânia. Também cheguei nessa terra em 1955, passei pelo Liceu de Goiânia em 1966.
Gostei muito de sua crônica.😍

Eliane Aquino Sousa disse...

Eliane Aquino Sousa:
Parabéns, mano! Que linda crônica! Como é bom saborear as suas histórias!

Antônio Celso, prof. disse...

Prof. Antônio Celso:
Prezado mestre Luiz De Aquino, boa noite. Estou hoje aqui em sua terra natal a nossa Caldas Novas, (...) Bem , deixemos que o tempo passe, e quero dizer que cada texto por Você produzido mexe com o nosso passado, pois eu, que convivo há 77 anos com a Cidade de Goiânia, fico feliz em rememorar esses passados. Parabéns, mestre, e obrigado por ter este privilégio de voltar a alguns anos de muita alegria. Grande abraço!

Mara Narciso disse...

Muito bem bem, Luiz. Continua com sua doce poesia bem cultivada em Goiânia.

NILSON JAIME disse...

Excelente crônica de um goianiense por adoção, que vivenciou mais da metade de ambas as vidas (do escritor e da capital que o acolheu). Muito do cotidiano de Goiânia está em suas crônicas jornalísticas, Aquino, que não é outra coisa que não História. Parabéns!