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sexta-feira, abril 03, 2015

Um gatuno na soçaite


Um gatuno na soçaite


Oh, vida! Nestes meses e dias em que tanto se discute a penalidade ante vários crimes – vivemos sob o signo de mensalão, petrolão e as mazelas do tráfico de drogas e do desvio sistemático de verbas públicas – e se fala também na falácia da redução da maioridade penal, um fato prosaico me convence de que a índole da desonestidade é, de fato, uma marca do DNA humano de qualquer origem, de qualquer faixa etária, de qualquer segmento socioeconômico ou profissional.

A gente cresce sob a constelação dos valores humanos, da estratificação social: na minha infância e até mesmo na adolescência, as pessoas eram rotuladas, para o bem, de meninas de família, pais e mães (de família, também), pessoas de fino trato, estudantes (sim, a escolaridade era um status tão elevado e caro que alguém numa escola tinha a etiqueta dos “de-bem”), profissionais liberais, empregados de grandes empresas – e por aí seguia a escala de valores.

Nos primeiros anos da década de 60, com o pós-guerra se fazendo sentir, surgiram a conquista espacial, os rádios a pilha, o tergal e o banlon (e as saias plissadas), as calças muito justas e a minissaia... Em breve, os homens começariam a usar cores que não fossem somente branco, preto e cinza. Surgiu a pílula contra a concepção, as motonetas infestavam as ruas, as moças libertavam-se, aos poucos, do tabu da virgindade etc. e tal.

E então, no caso nacional, veio o golpe de 64. A América Latina começava a viver sob o manto das ditaduras implantadas e mantidas pelo poderio do irmão-do-norte. A Europa e América do Norte – destaque para os movimentos contra a discriminação racial nos Estados Unidos e a revolução estudantil no México – também se revoltavam. E 1968 (para nós, o “ano que não acabou”) sacudiu a França e até a Tchecoslováquia se rebelou (mas a URSS agiu com sua costumeira rapidez e capacidade sanguinária).

A ditadura militar brasileira consolidou a elevadíssima mordomia nos parlamentos e chegamos a 2015 com jovens e estreantes deputados estaduais goianos gastando milhares de reais dos cofres da Assembleia nos mais sofisticados restaurantes da capital. Imagina o que não cometem os veteranos caciques estaduais na esfera federal! Jovens de famílias ricas aparecem, vez em quando, na mídia cometendo crimes planejados.

Mas o fato que quero narrar é muito recente e totalmente esdrúxulo: na última quinta-feira do mês passado, numa festa literária na Casa Altamiro – uma das casas da Academia Goiana de Letras – uma jovem convidada levantou-se da mesa em que convivia com amigos e, poucos minutos após, retornou e não encontrou seu telefone celular – ele desapareceu misteriosamente de sobre a mesa.

De imediato, ela e os amigos começaram a chamar o número do aparelho desaparecido. Não atendia. E foram muitas as tentativas, e nada! Tudo indicava que o larápio desfez-se rapidamente do chip – afinal, o aparelho é de última geração, uma peça cara e cobiçada. A jovem economista tinha no aparelho toda uma agenda de trabalho e os contatos de amigos e clientes. O prejuízo era, pois, muito superior ao custo do aparelho.

Ora: a Academia Goiana de Letras é uma instituição respeitável, considerando-se o somatório das vidas dos que constituem seu acervo humano e literário. A Casa Altamiro, um de seus bens, foi doada pelo membro e benemérito Altamiro de Moura Pacheco e é dirigida, hoje, pelo dinâmico e competente acadêmico Iuri Rincon Godinho. A festa, em torno do lançamento simultâneo de dois livros de Ursulino Leão, reuniu o que temos por conta de, como diziam naqueles velhos tempos, “a fina flor” da intelectualidade local.

Mas havia um gatuno entre nós. Quem? Este, certamente, assinou o livro de presenças na entrada da Casa, mas como suspeitar? Alguém, na fraqueza humana de suas inseguranças, apropriou-se sorrateiramente do aparelho da jovem Greice Guerra, e a vítima não teve outra solução senão comprar novo aparelho e tentar remontar sua agenda e lista de contatos.

Mas, no fundo, cada um de nós sentiu-se envergonhado. Quem, dentre os nossos convidados, seria o meliante? E a pena...


* * *


Luiz de Aquino é escritor e jornalista, membro da Academia Goiana de Letras.

3 comentários:

Mirian Cavalcanti disse...

... ah, Luiz, você exprimiu bem o desconcerto que acontece internamente em cada um de nós, em situações desse tipo. A gente olha prum lado, olha pro outro, e nada que dê pista, ao menos...
Beijo
Mirian

Mara Narciso disse...

Quem é ladrão não perde a ocasião. Triste e cheia de mácula, nossa sociedade. É para sentir vergonha sim.

Nadia Maria Vinhas disse...

Oi, poeta!
Um fato tão desagradável em meio a um evento de pessoas que ali foram não para furtar nada, mas para entrar em contato com o que temos de melhor, que é adquirir cultura, conhecer coisas novas e estar juto a pessoas que têm um censo comum; O (a) sujeito(a) vai ali é pratica uma fraqueza... Imperdoável... Triste para quem perdeu sua propriedade. Mas, ladrão ou ladra, é uma profissão que acompanha o homem desde sempre... Nada a fazer, só a lamentar. Mas, amigo, o que me deixou fascinada, como sempre, é que diante da sua introdução para falar do ocorrido, escreveu bem "pra caramba”, adorei sua ida à década de 60. Sua viagem pelas mini-saias, cores nas roupas dos meninos e tal! Virgindade, assunto polêmico... E a motoneta! Essa fechou com chave de ouro!
Viajei pela Ditadura, dei uma paradinha na revolução estudantil do México, dos Estados Unidos, da França e até da Tchecoslováquia. Adorei seu artigo! Como sempre, uma viagem de conhecimento e prazer, uns zigzags gostosos das palavras... trés bon!!!!
E o celular de última geração? Ah, esse foi lamentável ter sido furtado! Quase que me esqueço dele.
Beijos!!!