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domingo, novembro 06, 2016

Carta ao tempo

Carta ao tempo

(Crônica escrita em 30/01/2009, mas que se despertou feito nova na minha lembrança. Saudade, sem dúvida).

Leitores amigos, já notaram como as pessoas se dividem pelo modo como olham as coisas e a vida? Sim, há os que veem passado em tudo, enquanto outros enxergam o futuro até mesmo nos desenhos rupestres. Alguém, mais bem-dotado que os comuns, disse que o fundamental é vivermos o presente, mas quase todos agem apenas em função do passado e (ou) do futuro; assim, deixam de se ocupar do presente, de viver o momento.

Conhecemos, ainda, muitas senhoras que, enviuvadas ainda nos verdes anos, enclausuraram-se em vestes escuras e sóbrias e escolheram envelhecer antes que lhe chegasse sequer a idade adulta em sua plenitude. Vejam aí, entre as amigas e parentes de suas mães e avós, e verão que não exagero. E mesmo entre os moços e adolescentes ainda vemos os que cobram de pais e mães viúvos uma castidade desumana.

Convenhamos: viver o presente nos dá mais chances de felicidade, e esta não é um ponto de chegada, mas uma viagem (mais coisas ditas por algum outro pensador, talvez anônimo; mas conheço bem uns dois ou três escribas famosos que não têm escrúpulos em se apoderar das falas alheias). Sofremos muito pelas dores do passado ou pela ansiedade ante o futuro. Enquanto isso, a vida passa, a fila anda e o dia amanhece outra vez, e outra, e outra...

Ao contrário dos que se vem nos jovens, olho-os e enxergo o futuro. Não quereria, para mim, a viagem de volta, pois sei que cometeria os mesmos erros, sofreria as mesmas dores e as angústias se repetiriam. O mesmo se dá em mim quando perambulo nas ruas de ontem, como as do centro de Goiânia, que aos poucos vai se tornando História. Aquelas ruas de comércio pouco e variado e moradias várias tornaram-se um bazar oriental, com as calçadas entupidas de produtos e transeuntes anônimos.

O centro, hoje, é ponto essencial de passeio para os que já atingiram os cinquent’anos. Nada de criticar a mudança dos hábitos, mas de curtir saudade com a convicção de que, para os moços, as lembranças se formam agora. Na Rua 4, a poucos passos da Avenida Goiás, encontrei Martônio, velho amigo dos nossos tempos moços nas Ruas 96 e 97, quando até o quintal do Palácio das Esmeraldas parecia-nos vulnerável, especialmente em tempo de jabuticaba. Vinha de par com o pai, Antônio Pereira, a quem fiz uma cobrança sincera: “Siô Antônio, que desaforo! O senhor não vai envelhecer?”. Não, não vai... Ele prefere transformar as lembranças em escritos que, brevemente, vão virar livro.

Cinco minutos de prosa boa, saudade e esperanças renovadas. Dá-me vontade de falar ao tempo, escrevo, então, esta carta ao tempo... Ou melhor, um poema à mulher de amanhã, escrito num tempo que também já vai longe. Só que, de novo, faço o passado viajar ao futuro, num jogo de ir-e-vir como passos de dança. Algo assim:

Se eu voltar a viver nos teus sonhos

Se eu voltar a viver nos teus sonhos,
é certo que chegarei sem pedir licença.
Será um chegar na noite,
sem silêncio e sem luar
porque nada mais senão nós dois
deve existir.

Será um sonho em que a dor
há de valer
na suprema intensidade
do calor que brotar dos corações.

E será um sonho
que nos fará acordar suarentos,
porque estaremos juntos
antes que o galo anuncie a madrugada.

Se eu voltar a viver nos teus sonhos
vou sentir a mudança no cheiro das manhãs,
lembrando o tempo das flores
nas mãos que me afagavam.

Será o tempo de rever noites
tão nossas / e recordar teu cheiro em mim
 — o cheiro único
da única mulher em minha cama.

(A mulher na minha cama,
de cheiro exclusivo
e carinhos só dela,
não trazia o feitio
das noites vazias: era a essência
da minha carência
e promete outra vez
renascer
quando eu voltar a viver nos teus sonhos).

Meus amigos, pai e filho, se vão, mas não nos despedimos. A tarde, sim, despediu-se no tempo, porque ela, a tarde, é única. A cada fagulha do sol ou cintilar de estrelas infinitas renovamos nossos passos, nossos olhares. Sinto que tudo virá outra vez, mas da mesma maneira como Heráclito definiu o rio e o homem.

Tudo se faz novo.

*****

Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras.

Um comentário:

Rosy Cardoso disse...

Amigo Aquino gosto muito de lembranças, sou saudosa, mas sem prisões,sem medos.
Alguém certa vez me dissera, que seria porque amo demais!
Sim, acho que amo mesmo, daí gosto de me deleitar nas saudades.
O amanhã realmente é o que me alimenta porque até situações que parecem não ter volta acho um jeitinho pra solucionar,assim futuro.
Ler você é fazer a viagem que gosto......ver o mundo novo.
Sempre com jeitinho de quero mais.