Palavras de Craque
Entrevista com Gilberto Mendonça Teles para o Diário da Manhã - Goiânia
Gilberto Mendonça Teles – poeta, crítico
literário e doutor em literatura – é um desses homens que existem além de seu
próprio tempo. Moço ainda, fez-se notável como professor e ativista cultural,
sendo pioneiro nas duas principais universidades do Estado; também ainda moço,
foi aceito na Academia Goiana de Letras como o mais jovem de seus membros nos
65 anos de existência da AGL. Perseguido pelos áulicos (goianos) do regime de
1964, foi favorecido pelo distanciamento que lhe impuseram os daqui. Fez do Rio
de Janeiro sua vitrine e de lá se fez conhecido em toda a América e em inúmeros
países europeus. Como crítico literário e como poeta, suas obras são sempre
reeditadas e enriquecidas a cada nova edição.
Aqui, em entrevista ao jornalista e poeta
Luiz de Aquino, ele fala de sua carreira, suas lembranças e não poupa críticas
nem comentários.
1) Gilberto, como era Goiás, como era Goiânia
na sua adolescência (você, menino campineiro, jogador do Atlético) e juventude?
GMT — Luiz de Aquino,
você me surpreende, no bom sentido da palavra: em vez de começar in medias
res (no meio da vida presente, como diriam Drummond e os latinos), você me
obriga a um simpático memorialismo, que eu não esperava, mas que, confesso,
está nos meus planos para breve. Seguindo o destino irrequieto de meu pai,
comerciante, ora aqui ora ali, em busca da felicidade que está "apenas
onde a pomos / E nunca a pomos onde nós estamos", fui lavando o meu
corpo na "bacia" do rio Meia-Ponte, passando de Bela Vista de Goiás
(onde nasci) para Hidrolândia, depois subi a corrente do rio na direção de
Aparecida de Goiânia, de Brazabrantes e de Inhumas. Em seguida, a volta
rio-abaixo, flutuando na correnteza: Brazabrantes, Hidrolândia, Campinas /
Goiânia e as inesquecíveis pescarias em que se foram fazendo a minha
adolescência e juventude. Uma bem estreita geografia, no entanto cheia de
margens e de mitos, e também de contramargens, de estar na margem, tomando
banho ou pescando e imaginando o que poderia estar do outro lado, na
contramargem, Fiz uma alusão a tudo isso quando dei o título de Contramargem
ao livro que me deu depois o Troféu Juca Pato (da União Brasileira de Escritores, SP).
Goiás era para mim um
vasto mundo, com os seus dois habitantes — Pedro Ludovico e Getúlio Vargas —
visíveis nos retratos do grupo escolar. O resto era uma nebulosa girando em
torno de mim que também me sentia girando como um centro giratório. Uma coisa assim,
bela e emotiva, meio ptolomaica, mas confusa. Era um desejo vago daquilo que
não se sabia, mas doía. Goiânia dos meus catorze anos, quando aí cheguei para
prestar o Exame de Admissão no Ateneu Dom Bosco, era a cidade se fazendo,
melhor, a cidade-fazenda, cheia de buracos estruturais (que ainda existem) e de
"zebus" que ainda continuam pastando nas avenidas, a prolongar a zona
rural na admiração provinciana pela mídia. O melhor mesmo naquela época era
Campinas com o futebol do Atlético, a esperança de jogar no Flamengo, as
namoradas insensíveis e a mulher da Zona que colava os meus poemas na parede do
seu quarto: um dia me enchi de coragem e lhe falei em casamento. “Isso não pode
ser” — respondeu. “Sou mais velha do que você e não quero estragar a sua vida,
mas estarei sempre à sua espera”. Nunca mais voltei lá.
2) E a vida
intelectual, a vida universitária? Temos sempre a impressão de que, naquela
época pré-ditadura militar, estudantes eram seres muito importantes.
GMT — Vista daqui, do
alto das minhas pirâmides, "a vida intelectual" de Goiânia e de meus
20 anos, devia ser menos chata que a de agora, cheia de escritores importantes,
cada um escrevendo as suas obras-primas-segundas, ao lado de outras, críticas,
que nunca vêm à tona, a não ser para serem premiadas pela academia de que fazem
parte. E depois guardadas para o concurso seguinte. Na Goiânia dos meus 20 anos
os poetas se preparavam para ser poetas; os romancistas, idem; os
contistas, idem, mas lá estava a presença maior de Bernardo Élis, que os
novos olhavam de esguelha, não ousando olhar de frente, como Moisés no Sinai.
Os críticos ou eram pomposos, ou ingênuos e simples como um que viu no título
de meu segundo livro, Estrela-d'alva, o frescor de "bosta
de menino novo atrás da bananeira". Para criar a frase de efeito, ele
derrapou no que escreveu. E nunca conseguiu publicar um livro. Até hoje tento
me explicar como um menino novo vai fazer cocô atrás da bananeira... Só se for
junto da mãe do crítico. Era assim, a "vida intelectual" daquela
época.
E a "vida
universitária"? Ela não existia, no sentido exato da expressão. Goiás
criou as suas duas primeiras universidades sem ter a exata compreensão do que
seria verdadeiramente uma universidade, e não creio que tenha modificado muito
a sua concepção inicial de universidade que ficou sempre uma espécie de
"reciclagem" do segundo ciclo, com uma "pesquisa" para fins
domésticos, isto é, destinada não a participar da comunidade científica
nacional, mas a garantir os títulos acadêmicos para fazer jus ao aumento
salarial com mestrado e doutorado.
Imediatamente à criação das universidades, a Católica e a Federal, surgiram os
militares e, pior, os reitores que se esforçaram para ser "mais realistas
do que o rei" (ou mais puxa-sacos) e não faziam nada sem consultar
diretamente os coronéis do MEC
Com relação aos
estudantes, creio que deviam ser melhores do que os de hoje, não perdiam tempo
com a televisão, com a Internet e com as drogas e, bem ou mal, aprendiam a
pesquisar diretamente nas fontes primárias e nos livros. Aprendiam a elaborar o
resultado de suas pesquisas, ao contrário dos de hoje que já encontram tudo
pronto num site. Assim, eles adquiriam maior consciência da sua função
política e social para o futuro do país. Os militares de 64, teleguiados pelos
norte-americanos, espalharam no nosso terceiro mundo a ideia do perigo
"comunista". Falar de povo, de fome, de reforma agrária, de pobres e
de estudantes era falar de "comunismo". Os estudantes eram tidos, na
sua maioria, como elementos perigosos, pois se "comprometiam" com o
futuro, ao contrário dos fazendeiros, comprometidos com a manutenção de suas
tradições. Nesse momento os verdadeiros comunistas se esconderam e
"deixaram" estrategicamente professores e estudantes aparecerem no
seu lugar. Em Goiás, eles se esconderam ocupando cargos no governo estadual ou
grilando terras no norte do estado.
3) Você presidiu a
ABDE goiana e a transformou
GMT — O que fiz com a
ABDE / UBE no início da década de 1960, meu irmão José Mendonça Teles iria
fazer com a Academia Goiana de Letras, instalando-a na Casa Colemar Natal e
Silva. Quando fui eleito presidente da ABDE, depois de ter sido membro do seu
Conselho Fiscal e de sua vice-presidência, depois de dois anos portanto de
aprendizagem, coincidiu que o Banco Lar Brasileiro concluiu a construção do
prédio e ia entregar a sala, comprada na diretoria de Oscar Sabino Júnior. Os
principais membros da diretoria, como Bernardo Élis (vice) e Regina Lacerda
(secretária) achavam que deveríamos alugar essa sala. Fui contra e instalei lá
a sede da instituição e, ao mesmo tempo, convoquei uma assembleia para
atualizar os estatutos e mudar o nome da entidade, que passou a denominar-se
União Brasileira de Escritores, a atual UBE. Muito tempo depois, Bernardo me
elogiou por haver feito essas mudanças e instalado os escritores numa sala
digna. Quando me candidatei, levado pela insistência do jornalista Jesus Barros
Boquady, a "filosofia" reinante era a de que a ABDE só devia ser
presidida por comunista. Era assim, a intelectualidade goianiense. Ou é ainda
assim? Alguma coisa deve ter mudado para melhor, com a UBE se reunindo e
discutindo problemas nada provincianos como: O que é ser escritor em Goiás?
Como publicam os seus livros? De que vivem? Quem os lê? Seus livros são
vendidos em outros estados? Eles (os escritores) recebem auxílio do estado, do
município, de algum mecenas? Como se relacionam com a mídia? Precisam pedir para
publicar os seus escritos? Os jornais lhes pagam ou isto é tido como um grande
favor? São naturalmente estudados ou é preciso "convencer" a
universidade a pôr algum de seus livros nos cobiçados vestibulares? Enfim,
coisas de interesse para a classe de escritores.
4) Bom, depois disso,
você já professor universitário, veio o golpe militar e, com ele, as
perseguições que, no seu caso, culminaram com sua mudança... Fale-nos de seus
feitos e suas conquistas em outras terras.
GMT — Você me dá
oportunidade de desfazer um equívoco, que já vai virando mito. Mas gostaria de
esclarecer primeiro que me formei
"os "historiadores" da Católica vêm sistematicamente apagando o meu nome das origens da universidade, mas isto está nos documentos"
Quando se fundou a
Federal, a maioria dos professores se bandeou para lá. E o meu primeiro
conflito intelectual em Goiânia foi o de ser convidado para a Federal e
continuar na Católica. Muitos dos meus colegas achavam que eu deveria deixar a
Católica, menos o reitor Colemar, que respeitou meu ponto de vista e jamais me
fez essa exigência. Pelo contrário, me requisitou do IBGE e me deu a
incumbência de estruturar o Centro de Estudos Brasileiros, sem que eu deixasse
a Católica. E foi por aí que cheguei aos atos institucionais 1 e 5. Organizei o
Centro, cujos estatutos foram aprovados pelo Conselho Universitário da UFG.
Quando eu voltava do Rio, aonde fui levar ao Conselho Federal de Educação o
projeto de legalização do Centro, vi a bordo o nome das pessoas atingidas pelo
AI-1: meu nome estava na lista. Fui exonerado da direção do Centro de Estudos
Brasileiros, mas continuei como professor da recém-fundada Faculdade de Letras.
"Se eu tivesse optado por voltar a Goiânia, teria talvez ficado rico tosquiando os grilos do cerrado"
Assim, no início de
1965 recebi do Conselho de Alta Cultura de Portugal (hoje Instituto Camões) o
convite para uma bolsa de seis meses em Lisboa, com um vencimento de professor.
A universidade me liberou e viajei em março, dois meses depois foi a minha mulher.
Em Lisboa, participei de uma série de conferências sobre o Brasil, feita pelos
bolsistas brasileiros. Quando terminei a minha exposição, o adido cultural,
Odylo Costa Filho, me pediu para visitá-lo na embaixada. Fui e ele me disse que
o Brasil precisava de professores para trabalhar em países da América do Sul.
Como ele gostou da minha exposição, me pediu se podia indicar meu nome ao
Itamaraty. Quando voltei em fevereiro de 1966, já encontrei à minha disposição
um convite para ser adido cultural no Chile. Fiquei encantado, mas apreensivo:
meu pai bebia muito na época e eu não queria ficar muito longe dele. Foi aí que
perguntei se não havia algum posto na Argentina ou no Uruguai. Havia o de
professor de literatura no Instituto de Cultura Uruguaio-Brasileiro,
5) Mas você nunca se
afastou, de vez de Goiás, onde preserva, com muita proximidade, seus laços de
família e as amizades intelectuais.
GMT — É isto mesmo, meu
caro Luiz. A sua pergunta traz em si a melhor resposta. Ela resume tudo o que
gostaria de dizer. Meu espírito nunca se afastou de Goiás. E o interessante é
que nunca esnobei Goiás. Onde estou, sou goiano: no Rio, em Lisboa, em Salamanca,
em Chicago,
Sempre que posso
venho a Goiânia; venho pelo menos duas vezes por ano para pescar. Tenho por
aqui fiéis amigos de pescaria, um dos quais acaba de nos deixar, o Domiciano de
Faria. Muitas vezes eu chegava ao aeroporto, entrava no carro dele e, com
Jackson Abrão, íamos direto para o Araguaia, onde ficávamos pelo menos três
dias, pescando, contando piada, jogando truque e bebendo um bom uísque. Eu
renovo assim meu estoque de imagens goianas, do Goiás autêntico que é o do
interior.
6) Consta que você
ingressou na AGL na condição de seu mais novo membro, récorde ainda não
vencido; o que pensa da AGL, a de antes e a de agora?
GMT — Quando entrei na
Academia Goiana de Letras, em 1962, fazia pelo menos uns três anos que ela não
se reunia. Seu presidente era o notável romancista de Pium, Eli
Brasiliense. Eu morava no bairro do IAPC, no fim da Paranaíba, bem em frente da
casa de Erico Curado, pai de Bernardo Élis. Como ele havia emitido para a Bolsa
Hugo de Carvalho Ramos um parecer sobre o meu livro Planície,
ainda inédito, fui visitá-lo e agradecer o que ele escreveu. Na conversa,
falamos da Academia que, segundo ele, precisava de sangue novo. Eu me
entusiasmei e lhe disse que ia me candidatar para a vaga de José Xavier de
Almeida. Ele imediatamente foi contra: — Você é muito novo, pode esperar. Para
essa cadeira vamos eleger o Altamiro de Moura Pacheco, porque ele vai deixar a
casa dele para a Academia. Meti a viola no saco, como se diz, e continuei o meu
trabalho sobre A poesia
A nossa AGL, como
todas as academias, deixa (e deixou) sempre a desejar. Elas correm o risco (e
isto continuamente acontece) de se tornar somente uma casa de reunião social,
de louvação dos acadêmicos entre si. Com relação à de Goiás, creio que lhe
falta uma série de ações no sentido do seu relacionamento com a cultura goiana,
do seu inter-relacionamento com as entidades culturais do Estado (universidade,
associações de escritores, bibliotecas, cursos, concursos que não premiem os
próprios acadêmicos: isto tem sido uma vergonha, tanto para a academia como
para o acadêmico premiado). É preciso que a AGL se sinta goiana e, ao mesmo
tempo nacional, mas não tenho paciência de explicar isto agora. É preciso que
escolha bem os novos candidatos para que não se repita o que vi há pouco, onde
os juristas acadêmicos acharam que o mais importante na Academia é a obediência
às regras de um estatuto que vem mudando segundo a conveniência de quem está na
presidência: se o candidato é da sua preferência, olvida-se a regra; se não,
brande-se a regra. Estupidez. A Academia tem de ser maior que seu estatuto, tem
de possuir um sentido cultural e simbólico que ultrapasse as regras
estatutárias de convivência. Evocar o direito positivo para explicar o
funcionamento de uma entidade cultural é a coisa mais antiga e provinciana que
ouvi nestes últimos tempos em Goiás.
7) Você já se
candidatou duas vezes à ABL e foi vencido, embora sempre tido na conta de um
dos mais expressivos candidatos à Casa de Machado. Vale a pena ser membro de
academias? As entidades literárias ainda têm importância?
GMT — É verdade: uma vez
obtive 16 votos (precisava de atingir 19). Não contei com ninguém lá dentro
para me ajudar. Fiz sozinho a minha campanha e lutei contra um grupo que
levantava contra mim as seguintes "considerações": que eu havia sido
cassado, que eu gostava de mulher e que eu era muito novo e, portanto, podia
esperar mais tempo. Da segunda vez, no ano passado, cheguei aos 18 votos e
vencia a eleição se dois votos que me haviam sido prometidos não fossem
"comprados" no último momento. Como se sabe, já recebi todos os
grandes prêmios da Academia Brasileira de Letras: o "Olavo Bilac", de
poesia; o "Sílvio Romero", de ensaio; e o "Machado de
Assis", por obra reunida. A sua revista já publicou estudos meus; já fiz
algumas conferências nos seus cursos. Convivo com alguns acadêmicos, que
admiro, mas não sou de ficar puxando-o-saco de muitos por quem não tenho
nenhuma admiração. Veja, portanto, como é difícil a minha entrada para a ABL.
Acho excitante a
segunda parte da sua pergunta: "Vale a pena ser membro de
academia?" Acho que vale, sim. As academias, da brasileira às
estaduais e municipais, têm o seu prestígio mítico: quem está longe delas e não
as conhece bem dá-lhe uma valor "sobrenatural", como se estando nela
o escritor estivesse por cima do bem e do mal, estando por isso mesmo
"consagrado" como o melhor. Mas não é bem assim: o valor literário
não conta, e sim o relacionamento que ele tiver com os acadêmicos. Quem está
perto sabe da relatividade das academias e sabe que, isoladamente, os
acadêmicos às vezes não valem grande coisa, mas agremiados, são muito fortes,
tanto cultural como politicamente. Há uma espécie de auto-ajuda acadêmica.
Direi, afinal, que as "entidades literárias" têm importância, mas
poderiam ter muito mais se cumprissem as suas funções sócio-culturais, tal como
disse acima, a respeito da Academia Goiana de Letras.
8) E a "fogueira
das vaidades", ela é forte entre escritores, tal como entre artistas com
espaços na mídia? Mesmo entre escritores, existe preconceito de valores, como
se viu no recente encontro promovido pela UBE Goiás e a Feira de Livros, remunerando
goianos com valores até cinquenta vezes menores em relação aos forasteiros e os
televisivos.
GMT — A pessoa que me
convidou por telefone para participar da Feira me perguntou quanto eu cobraria
pela conferência. Respondi que me pagassem o normal, isto é, o que fosse
estipulado para isso. Jamais passaria pela minha cabeça que iam pagar de acordo
com o que a pessoa pedisse e que esse pagamento variasse segundo a maior ou
menor participação do sujeito na mídia. Em 1990 critiquei severamente esse
procedimento. Veja o último parágrafo do meu livro A crítica e o
princípio do prazer, editado em 1995 pela UFG. Ao falar da política
cultural do Estado na época, eu disse que "Os planos mirabolantes e
demagógicos, com muita carga de provincianismo (e do pior, que é esse de
agradar os meios de comunicação do Rio e de São Paulo), vão passando sem deixar
marcas essenciais, como os próprios governadores". Agora, sobre os
últimos acontecimentos da I Feira de Livros, a minha indignação pode ser lida
nas notas ("Provincianas") que escrevi para uma série de poemas a
serem incluídos numa nova edição de Saciologia goiana. Eis algumas destas notas
que aí vão em forma de prosa:
§ 1. "Não
interessa o que ele falar, o que se conta é a sua capacidade de atrair gente,
ainda que seja jovem adolescente, das escolas estaduais, trazidos em excursão
para encher o salão da Feira de Goiás." § 3. "Se o escritor é de
fora, deve ser também fora do comum o seu cachê para que ele não fique pensando
que os nossos bois na invernada não valem nada sem a mídia ou a comédia da
TV". § 4. "Nada de comparar o pagamento de um escritor de fora com o
de dentro: o escritor local já ganha muito em fazer parte do conjunto e ser
convidado como um pária para a feira de zebus da pecuária". § 5.
"Outro figurão bem-pago: — Falo, mas não admito nem aparte nem pergunta: a
minha arte é rir da boiada toda junta". § 7. "Outra, sonsa, mais
poeta ruim do que poetisa, faz de conta que não tem medo de onça, mas vive
assuntando a brisa com um ramo de arruda na camisa". § 8. "O mais é a
meninada que não sabe de nada, que não quer nada a não ser fazer nada e encher
o auditório. Mas antes de dar no pé ir pedir autógrafo ao escritor que ele nem
sabe bem quem é".
9) Em Goiás, muito se
comenta desse aspecto que, muitas vezes, chega a ser tenso entre os escritores.
O que pensa você sobre isso? É uma marca regional, ou os artistas são
apreciadores indefectíveis de seus próprios umbigos? (Não falo de artistas da
mídia, mas de artistas verdadeiros, ou seja, os criadores de arte).
GMT
— Creio que a minha ironia na resposta anterior serve para dizer aqui o quanto
me envergonha esse forma de procedimento dos goianienses. O governo anterior
mandou buscar o Ferreira Gullar para comemorar o aniversário dele
10) E os críticos?
Você integra a definição dos críticos de formação, em lugar dos que, outrora,
eram tidos como artistas frustrados. Mas, estranhamente, há muitos frustrados
entre os críticos acadêmicos; e até mesmo críticos que se apresentam como tal, mas
jamais publicaram críticas...
GMT — Meu caro Luiz, tocar neste assunto em Goiás é meter a mão numa casa de marimbondo, melhor, de vespas. Talvez de tanajuras, sei lá, tantas são as "feiras de vaidades". Eu por mim faço o meu trabalho crítico por gosto, por inclinação e por cultura literária. Não tenho compromisso crítico com ninguém. Meus livros de crítica se vendem e se reeditam. As editoras me pedem livros e só não escrevo mais porque não dou conta. Se disto resultar alguma dor de cotovelo, melhor é tomar algum analgésico.
11) Dizem também que
você, que é um poeta sensível, insere-se entre as exceções, isto é, a formação
acadêmica não maculou sua verve poética. O que diz sobre isso? É verdade que a
técnica pode comprometer ou mesmo destruir o talento inato?
GMT — A minha formação
acadêmica serviu de degrau para ampliação de meu conhecimento literário que vem
se fazendo há mais de cinquenta anos, por intermédio da leitura de todos os
gêneros literários, do estudo das mais diversas correntes críticas e, hélas!,
da criação de poemas e de ensaios de crítica literária. Sobre a interferência
da técnica, eis o que penso: Se o poema não tiver técnica, não tem arte, logo,
não é poema e sim uma frouxa reunião de palavras que remetem para o comum. Para
que haja arte (e poesia, pode não ser a dos teóricos de Goiás), as palavras
devem estar altíssima e tecnicamente organizadas. Não há um bom escritor sem
técnica, isto é, sem conhecimento da sua arte. Por mais que ele diga e pense
que não a tem, que escreve "espontaneamente" (pura burrice de quem
não sabe), a técnica está por trás, melhor, entranhada no seu texto, visível a
quem souber vê-la, passando às vezes a idéia de uma espontaneidade natural...
Um dia me perguntaram se a técnica sozinha produz um bom poema. A minha resposta, publicada, foi a seguinte: Produz. Depende da felicidade com que o escritor desenvolve o seu tema. Mas se a técnica não for, digamos, "lubrificada" com a emoção, é muito difícil que o poema contenha poesia. Atente, porém, para o fato de que a própria técnica pode produzir a sua emoção — a emoção da técnica, do saber, da apreciação. A técnica só existe sozinha na teoria, nos tratados de poética, de retórica, de estilística. Se alguém contestar que isto é puro jogo de palavra, é preciso que ela aprenda que o jogo com as palavras nos ensina a jogar com o mundo, a descobrir o lado lúdico da vida. Assim, o talento inato, como você diz, só vai adiante por intermédio da técnica. Se não, morre cedo, como o de muitos poetas que passam a vida exibindo talento, mas sem deixar nada de concreto.
"Não há um bom escritor sem técnica, isto é, sem conhecimento da sua arte"
12) Como você
vislumbra o futuro da ação literária (ficção e poesia) em Goiás? E no âmbito
nacional? A poesia brasileira tem futuro?
GMT — A sua pergunta
final, além de dupla, é "futurista", no melhor sentido de Marinetti.
Futuro da literatura em Goiás e futuro da literatura brasileira. Por que não um
futuro só, o da literatura? Quando perguntaram a Sartre se ele acreditava na literatura
engajada, ele respondeu: "Desde que seja primeiro literatura". E a
Mário Quintana alguém perguntou: "Que que o senhor acha da poesia
concreta?" E ele, rapidamente: "Tire o adjetivo e estará ressalvada a
poesia". Assim, para terminar, repito algo que disse na I Féria do Milho
sobre "O mercado do livro no Brasil". Em vez de bobamente ficar
discutindo se a mídia vai matar a literatura, o melhor é pensar que a mídia
(rádio, jornal, televisão, Internet) representa uma espécie de volta à
oralidade, uma vez que no século XX o sentido de democracia e cidadania trouxe
para a História grandes massas de semialfabetizados, que não podem ler, mas
simplesmente ver, ouvir, como nos áureos tempos gregos, por volta dos séculos
VII a VI antes de Cristo, quando surgiu a escrita grega e, com ela, a poesia e
a literatura. Há, deste modo, um fascínio da mídia pela própria mídia, que
escreve livros para serem vistos, e não lidos. Mas os livros verdadeiros
continuam à espera de seus leitores alfabetizados. Pronto, terminei.
Rio de Janeiro, 22 de
junho de 2004
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