“Ainda somos os mesmos”...
Brasil, 19 de janeiro. Saudade de Elis a cantar Belchior.
Muito já se falou e escreveu sobre os sonhos e planos de Ano-Novo. E muito também se questiona sobre a sensação de novidade que toma conta das pessoas ao virar da folhinha. “Folhinha” era como chamávamos, há anos, o calendário, em alusão direta à folha (ou às folhas) de papel que designam o ano, o mês, o dia. Já a palavra “calendário” deriva de “calendarium” que, por sua vez, tem origem em “calare” (convocar) e “calenda” (primeiro dia de cada mês).
A gente sempre se enfeitiça com o novo. Ao acordar, e especialmente se o acordar coincidir com o nascer do sol, sentimos essa sensação do novo ante o novo dia. Penso que o Ano-Novo nos traz a mesma sensação, daí o balanço das nossas ações, feitos e perdas do período que se encerra e a renovação de esperanças, os planos para a nova fase e um desejo quase premonitório de que tudo vai dar certo.
O conjunto de fenômenos naturais, no final de 2006, conturbou, e muito, a vida do povo do mundo. Furacões, terremotos, vulcões e outras coisas das intempéries atormentaram nossas vidas, mas continuamos renovando esperanças. Cheias de rios, mares revoltos, incêndios em florestas, acidentes aéreos, rodovias interrompidas ou danificadas a ponto de se tornarem intransitáveis... Tudo isso fez parte de um quotidiano triste nas últimas semanas. Supus que o ponto máximo fora o derrame de lama desde Miraí (“meu pequenino Miraí”, cantou Ataulfo Alves), em Minas, até Campos, no Estado do Rio, mas não: estava por vir a triste cratera urbana em obras do metrô de São Paulo. A cena de um caminhão caindo naquele imenso buraco foi dolorosa: nem a mais caprichosa técnica de efeitos especiais do cinema conseguiu, até hoje, um efeito parecido. Aquilo doeu fundo.
E vieram as reportagens, às centenas, a nos dar conta das fraquezas e das competências do Ser Humano, o “bicho sapiens” que, justamente por ser dotado de inteligência e capacidade de desobediência, tantas maravilhas constrói. Mas, também, tanta bobagem comete em nome do aprendizado e das descobertas. Aquele escorregar de areia e lama, buraco abaixo, causa em nós a ansiedade mórbida que prenuncia a morte de pessoas heróicas e dedicadas, como técnicos e operários da construção da via subterrânea, bem como de policiais e bombeiros em operação de resgate.
Heróis! Palavra mágica, vulgarizada por profissionais afoitos em metaforizar a qualquer custo. Vejo repórteres e apresentadores dizendo “heróis” sobre atletas vitoriosos, como se a não-vitória significasse frustração ou desastre. Até os cérebros nitidamente menores de exibicionistas em xous de “realismo virtual” (expressão de neologismo para designar bisbilhotice como se fosse arte) são chamados de heróis. E aí, no meio das chuvas, das enxurradas, das pontes caídas e das rodovias desmoronadas, de moradias destruídas e de um desespero que nos faz impotentes, vejo um repórter digno do nome a entrevistar militares bombeiros em ações de resgate. E o primeiro soldado responde, sem rodeios: “Herói? Isso é coisa de história em quadrinho”; o outro complementa: “Não sou herói, sou um homem preparado para o trabalho que vem a ser a minha missão”; e, ainda, um terceiro: “Se salvar alguém considero que realizei o meu trabalho”.
E aí, à falta de alguém mais a quem chamar de herói, uma equipe de jornalistas de tevê decide designar duas heroínas: as cadelas de um quartel de bombeiros que, treinadas para farejar seres humanos, farejam para encontrar vítimas soterradas. E, é claro, isso vem da terra cujos moradores modificam tanto as palavras que passam a chamar “poça” de “pôça” e muda o som da palavra “extra” para “éstra”.
E, assim, a semântica acontece...
12 comentários:
"Só para te alegrar", como disseste na mensagem e para mostrar que sempre passo por aqui, para "bater o ponto". Não comento as tristezas, mas canto contigo o nascer do novo! Um grande beijo! Bia Pacheco
Oi Luiz,
Como sempre se superando menino.
Excelente crônica. Reafirma sua sensibilidade.
Beijinhos e sucesso no caminhar.
Luiz, infelizmente não somos os mesmos...Não é possivel diante dos acontecimentos tristes que nos atingem, alguns de vistos de longe, outros como o assassinato brutal de Marisa Roriz. Ainda é possivel ouvir o som da voz de Marisa como há 20 anos falando dos filhos amados. De tantas coisas que ela sempre tinha uma opinião ou uma "tirada" engraçada para dizer a respeito. Não somos os mesmos, a impressão é que somos mais tristes, destinados a perecer em meio a essa banalização da vida.
Pudesse o Ser Humano , através da Semasiologia, entender os recados deixados, com certeza ficaria cabisbaixo.
Lendo seu texto, lembrei-me de uma importantíssima estrofe que diz assim:
" Brasil, um sonho intenso, um raio vívido
De amor e de esperança à terra desce,
Se em teu formoso céu risonho e límpido
À imagem do Cruzeiro resplandece..."
Continuarei acreditando até o fim que encantos de paz , luz de cantos e contos, ainda farão nosso povo sentir-se novo .
Luiz
Você é bastante feliz quando lembra que um otimismo e uma esperança exagerados tomam conta de todos assim que um novo ano se inicia, que tudo isso não passa de pura ilusão e que, nesse momento, crer é muito importante. E é à essa crença que o cidadão comum se apega para ter suporte e forças ao encarar as diversidades do seu dia-a-dia, em mais um ano que chega.
Quando tragédias como essa acontecem, somos como que acordados com uma explosão, levamos um grande susto e então, cai a enorme “peneira” que estava diante do sol.
Ainda bem que cronistas como você , de uma forma bem clara e com muita propriedade, mostram a quem quiser ver, uma realidade trágica, pior do que a que ora presenciamos que é a triste constatação de que, por mais que se deseje, nada mudou.
Poeta, você é um belo estilo e uma leitura enriquecedora.
Um beijo,
Maris
É impressionante a capacidade do Luiz! Realmente ele consegue ser sensível até nas coisas mais duras... O eu-lírico nos leva a reflexões e a indagações que bem poderiam também nos motivar a questões metafísicas... Sou suspeito, porque muito admiro o autor, a dizer que o texto nos completa!
Olá,
estou lendo
calmamente sua arte.
Ainda que silenciosamente,
sempre presente.
Sua leitora.
Conceição
Oi Luiz, adorei o resgate q fez do significado de herói, heroísmo,
também fiquei comovida com os bombeiros negando o 'heroísmo'. Sei
lá, assim como gostamos de novidade que tem por essência ser
passageira, fugaz, nos esquecemos muito rapidamente das coisas, outras
tragédias aparecem e fica a banalidade do mal.
Mas a poesia fica: porque "as coisas findas, muito mais que lindas,
essas ficarão". Abraço, Tida Carvalho
“Ainda somos os mesmos”...?
Luiz, você está sempre se superando
e nos surpreendendo com seus artigos, crônica, conto e poesias.
"ainda somos os mesmos"...será?
Me nego a crer que "aínda somos os mesmos", se somos os mesmos eu não nos conhecia.Concordo com Deolinda;
"infelizmente não somos os mesmos"
e não gosto de ver imagens desse buraco...fico apreenssiva com o
"buraco" que parece estar sendo "furado"...
Parabéns pelo artigo!
Beijo, Lêida Gomes.
Olá poeta, relendo hoje a sua crônica sobre, o desabamento de São Paulo, senti vergonha das aço~es do homem, com relação aos semelhantes.Neste tempo forte de Quaresma vamos rasgar os nossos corações como nos indicava a Liturgia da quarta-feira de cizas.
Parabéns pela crônica e pela oprtunidades de nos fazer refletir sobre a vida.
Olá ao meu amigo do CPII, grande observador. É, somos os mesmos sim não mudamos em nada, mais o que seria de nós sem essa renovação de esperança na passagem de cada ano?
Ela é tão necessária para nossa sobrevivência quanto o nascer do sol diariamente.
Um grande abraço e sucesso !!!
Rita Ribeiro
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