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sábado, outubro 24, 2009

O tempo e o tédio

O tempo e o tédio


Luiz de Aquino


A tarde levava o sol céu abaixo, lenta e persistente. O homem vinha de um almoço sem-graça, preguiçoso como a própria tarde. Não sorria, não via razão para isso; mas também não estava triste. Vivia, apenas. Esperando o dia que se arrastava para o próprio fim. O homem esperava a noite.

Existe isso de se esperar alguém, ou um outro tempo. A tarde, pensava o homem, não lhe traria nada. O jeito, pois, era esperar a noite.

– A noite é promissora. Alvissareira. A noite, ainda que solitária, é benfazeja. Já o dia, não. O dia é falso de princípios. Traiçoeiro. O dia é o tempo em que chegam as contas a pagar, os entregadores mal-humorados, os telefonemas de negócios. A noite é o tempo da bonança, tempo das mulheres enfeitadas, das boas músicas, das luzes coloridas. A luz do sol é um tédio – pensava o homem.

E assim, desinteressado das horas quentes da tarde sem-graça, saiu de casa. No carro, não ligou o rádio, driblou o tráfego das ruas e alcançou a rodovia. Fazia isso sempre que achava a vida sem atrativos. Ou os momentos em que a vida não lhe dava alegria. Tomou a pista à direita e, menos de um quilômetro depois, retornou e rumou ao norte.

Lembrou que aquele era um hábito antigo, dentre os vários que cultivava. Mas há tempos não o praticava. Viajar aqueles quarenta e dois quilômetros era o que fazia todas as vezes em que se sentia só. Ou seja, todas as vezes em que brigava com a mulher. Meia hora e lá estava ele, ao pé de Silvana, carinhoso e malemolente, cheio de palavras escolhidas e carinhosas. A moça retribuía as falas e carícias, desmanchava-se em dengos e, satisfeito, o sujeito tomara a estrada de volta.

Viveram seis anos assim. Seis anos e quatro filhos. Filhos que ele nunca registrou, alegava a situação de casado, impedido por lei de registrar filhos ultra-leitos. Silvana acreditava. Para ela, ele era um homem sábio, cheio de receitas e leis. Até um dia, porém. É que, certa vez, enquanto ele viajava com a família em férias, curtindo litoral, uma das filhas (eram dois casais) adoeceu.

Silvana costumava acioná-lo nessas ocasiões, e ele sempre cuidava de tudo. Mandava que levasse a criança ao médico, ele chegaria logo, logo, nada faltaria às crianças. Nada, a não ser a existência oficial do pai. O registro. O nome para constar nas carteiras de identidade.

O jeito foi ir ao posto de saúde pública.

A atendente conhecia a moça e as crianças. Sabia de sua história de vida. Pediu cartão, certidão, qualquer coisa assim. E só então soube que aquelas crianças não eram registradas. Silvana explicou que o pai não podia, etc. A moça da recepção fez uma cara de muxoxo. Em seguida, informou a Silvana que desde há muitos anos essa coisa tinha sido revogada, que qualquer pai podia, sim, registrar seus filhos.

Conversas mais, detalhes surpreendentes, orientações várias e Silvana saiu dali decidida. Buscou a Justiça, conseguiu registrar os quatro filhos e sumiu da vida do sujeito. Agora, vítima do marasmo de uma tarde de novembro de sol, lá vai ele. Sabe onde chegar... Vai ver Silvana. Sabe como conquistá-la, reconquistá-la. Certamente, teriam algumas horas de amor. Desta vez, não descuidará. Tomará cuidados para não engravidar a moça outra vez.

Chegou. Consultou tudo em volta. Viu luzes na casa. Chamou. Ninguém atendeu. Insistiu na campainha. Uma vizinha saiu à porta, reconheceu-o e contou, Silvana viajou pela manhã, a luz estava acesa para disfarçar. A moça e as crianças só voltariam daqui e alguns dias.

O homem foi embora. Um anjo chegou primeiro.



Luiz de Aquino (poetaluizdeaquino@gmail.com) é escritor e jornalista, membro da Academia Goiana de Letras.

7 comentários:

Mara Narciso disse...

Uma história comum, tão vivida e contada de todas as maneiras, mas especialmente na sua maneira, Luiz, teve gosto de festa. Mesmo que seja fim de festa, fim de um amor que nunca houve bilateralmente, mas que existiu, que aconteceu. Muitos dirão que o homem é mau-caráter, fez duas mulheres infelizes, em nome apenas de variar de parceira. As duas mulheres foram felizes por usufruirem dele, ou ao contrário, infelizes foram? Ainda alguns pensarão como o homem pode servir a duas mulheres, qual o motivo de servir apenas uma delas? Assim, são várias maneiras de pensar. A volta por cima da outra foi a própria alforria, foi o registro, foi a viagem. O castigo dele foi dar com a cara na porta. Fingimos que não gostamos, mas os ingredientes dessa história agradam a muita gente.

Ti@ M@d@ disse...

Linda crônica!!!!!
Parabéns Lu
Madalena

Jacqueline Santana disse...

Olá Luiz...
sempre maravilhoso na pena poética, heim!!!

Adorei o conto, como alguns anteriories que li também.
Realmente, a situação da mulher, e pior, dos filhos fica muito complicada neste mundo de "identidade"... Conheço alguns casos como este que você descreveu em sua crônica. Alguns anjos também orientaram tais mulheres, mas por incrível que pareça, ao invés dessas mulheres melhorarem suas vidas, ao contrário, foram vítimas de um maior descaso por parte do dito "companheiro". Bem, é ridícula esta situação, fruto da ignorância e de nossa identidade social deturpada!

Carinho
Jacque

Marilda disse...

ola luiz, gostei do tema......
marilda

zinah disse...

Luiz, sinto feliz por fazer parte do seu grupo de amigos.... continuarei admirando-o sempre principalmente pela sua inteligência, é mto bom está nesse cantinho e deixar uma mensagem. Ao escrever " O tempo e o tédio" vc narra com conhecimento o cotidiano, o dia a dia vivdo por muitos nesse Brasilzão afora.... Um gde bjo de sua eterna admiradora.. Zinah

Anônimo disse...

Hola Luiz... Es un palcer contarme entre tus afectos. Es real el tedio que sufren las mujeres y los niños sin identidad. En mi país Argentina ocurrió por las malditas dictaduras militares; y en las zonas rurales por desidia propia. Nadie merece tanto una identidad como un individuo nato. Te felicito. Ahora soy un leal lector tuyo

Luiz de Aquino disse...

Agradeço a todos os comentários e anotações, são estímulos indispensáveis!

Beijos,

Luiz de Aquino