O que muda, afinal?
Há alguns dias, escrevendo sobre o Natal e os Natais da infância,
atrelei às lembranças uma infinidade de detalhes interessantes que, a rigor,
podem não corresponder exatamente à idéia que deles faço hoje. Refiro-me não a
objetos, mas a coisas como cores, tamanhos e distâncias. Se bem que as
distâncias e os tamanhos sejam a mesma coisa – dimensões. Explico: quando se é
criança, tudo nos parece maior. O que hoje é “daqui até ali” era, naqueles
tempos, “daqui até lá longe”. Aquele tio grandão é, hoje, menor que nós, os
donos das lembranças.
Ao escrever sobre Natais, lembrei-me do desencanto: eu via
adultos irem à loja do Tio Aníbal, onde meu pai se dedicava para ganhar o
sustento da família, e adquirir brinquedos vários; no dia seguinte, meus amigos
exibiam os presentes que Papai Noel lhes deixara sobre os sapatos ou nas
janelas dos quartos. Foi fácil deduzir...
Mais tarde, já adolescente (naquele tempo, a palavra não era
utilizada; diziam “rapazinho” e “menina-moça”), descobri os conceitos de
Ano-Novo. Na meninice, era dia de comer leitoa assada como prato principal em
meio a muitas outras comilanças, encerrando o ciclo natalino. Sim: começava
como peru, terminava com o leitão ou leitoa (digam-me, que diferença faz, nesse
momento, o gênero do bacorim?).
Mais do que o Ano-Novo, descobri o réveillon, palavra francesa para “revelação” que, entre nós, brasilis, restringe-se à passagem do
Ano-Novo, o despertar de uma nova numeração – daí, talvez, a contagem
regressiva para, num imaginário relógio digital, vermos, por exemplo, o 4
entrar no lugar do 3, como na última mudança.
Mas, pensava eu, além da ressaca, além daquela sensação
costumeira (para mim) de ver o dia amanhecer ao meio dia, o Sol como que
nascido no meio do céu, a boca rescendendo a bílis e os olhos enxergando tudo
lilás – qual era a diferença? Efeitos assim eu vivera noutros domingos pelo ano
afora, algumas vezes.
Nossos ídolos tinham a nossa idade... |
Usávamos, na minha juventude feliz (como devem ser todas as
juventudes) e ligeiramente irresponsável nos momentos possíveis, uma expressão
de que sempre gostei e da qual não me esqueço: pegar o sol com a mão. Ah!, doce
irresponsabilidade! Mas até a irresponsabilidade pede disciplina; nos dias de
estudo e de trabalho, sempre foi impossível agir irresponsavelmente; para isso
existiam os fins de semana, os feriados e as pequenas viagens nesses recessos.
Não tenho contas das vezes em que “peguei o sol com a mão” no Rio de Janeiro,
em Caldas Novas, em Pirenópolis e aqui em Goiânia – as minhas cidades de morada
e amor. Houve outras, de muitas outras noitadas marcantes, mas eram cidades bissextas
(como diria Manuel Bandeira); igualmente maravilhosas, mas a geografia das
minhas cidades tem registros mais fortes.
Alegria de pegar o Sol com a mão |
E a doçura das lembranças visita-me os olhos não pelo que
eles colhem, mas vem de dentro, da memória para a retina; claro que não
projetam, meus olhos, essas imagens, eles apenas revigoram o brilho ao receber
tais lembranças. Essa memória, sim, é o que me dá um verdadeiro réveillon, a amostra real de que a vida
se renova no tempo. Carlos Drummond de Andrade falou de quem inventou de partir
a vida, ou o tempo, em dias ou semanas; e, ao dizê-lo, homenageou o Sol, o
astro de maior incidência sobre nós, o que estabelece os dias, embeleza a Lua
(que sugere os meses) e põe-nos na memória a consciência das estações e dos
anos.
Paro e decifro, defino: com o tempo, com o viver, enxergamos
diferente; as coisas e as distâncias parecem-nos menores, as cores ficam mais
fortes, como que avermelhadas (como me ensinou o Lucas, meu filho temporão),
mas a memória deixa-nos nítidos os sons e os odores. Ou seja: ainda que mudemos
os algarismos finais em cada passagem de Ano-Novo, e ainda que vejamos a vida
menos azul, nossos sentimentos continuam os mesmos, despertados por sons e
cheiros de que jamais esquecemos.
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2 comentários:
Parabéns pela crônica que nos faz recordar e refletir ao mesmo tempo sobre o tempo de agora, abraço
Miguel Jorge
São as lembranças gostosas que nos trazem essa saudade boa de sentir. Quem não quer sentir uma leve nostalgia?
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