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quarta-feira, fevereiro 07, 2018

Cais do Valongo








"Aqui sambaram nossos ancestrais"


A História do Brasil, se comparada a um quadro de arte, tem na moldura molhada de oceano muito mais que um tronco estrutural, mas igualmente a alma que anima os corpos. A tela, propriamente, tem breves marcas, como as invasões de bandeirantes e as corridas em busca de ouro e outras riquezas do subsolo. E nessa alongada borda alguns pontos têm um chamamento maior, que seu verniz se adensa em faixas do Nordeste e nesgas do Sul, com o foco maior nas cercanias da Baía de Guanabara, isto é, na cidade do Rio de Janeiro. |Nome bonito e sonoro, atribuído a um erro do almirante Américo Vespúcio, que, pensando tratar-se a baía da voz de um rio, assim o chamou. Mas não é bem assim. Vespúcio deve ter usado a palavra "ria", a grosso modo um feminino de '"rio". "Ria" vem a ser "braço de mar", só isso.

Era pouco menos de dez horas quando desembarquei no Aeroporto Santos Dumont. A pista está a apenas 25 metros, por uma ponte, da Ilha de Villegagnon, onde está a Escola Naval - a academia da nossa Marinha de Guerra, centro formador de oficiais da Armada. A paisagem, pois, já me faz viajar na história. À minha espera, a amiga de um tempo remoto, os anos ginasiais, Rosália Perissé, que me surpreende: vamos guardar sua bagagem e dar um passeio especial.

Tomamos um VLT e fomos até a zona portuária. O passeio incluiu o Museu Histórico Nacional e o Real Gabinete Português de Leitura (isso há de merecer outras crônicas), mas quero falar do complexo dos antigos portos. Constitui-se de vários armazéns​ desativados, restaurados há poucos anos, num projeto arrojado e amplo que resultou em museus surpreendentes. Dentre eles, o Museu do Amanhã, de arquitetura arrojada e recursos da moderna tecnologia para uma viagem ao tempo vindouro.

Se o tema fosse o dia de passeio pelos museus do centro do Rio, renderia uma pequena série de matérias para o DMRevista, a nossa editoria cultural. Mas o espaço de hoje é curto, as emoções vividas são intensas e profundas - como a energia fantástica das excelsas estantes do Gabinete Português de Leitura ou as peças expressivas e tocantes, de canhões a vestimentas, do Brasil Colônia e Império, no Museu Histórico, ou mesmo um rápido lanche na Confeitaria Colombo. E ainda o contagiante encontro com o futuro no Museu do Amanhã, que feito uma língua adentra as águas da Guanabara como quem saboreia o passado - sem o qual não se faz futuro.


E não muito longe, expostas a céu aberto, estão as pedras do Cais do Valongo, que ganhou proteção do governo brasileiro por uma lei - de número 3.924, de 1961 - e desde 2013 reconhecido pela Unesco como Sítio de Memória do projeto Rota do Escravo - Resistência e Liberdade.

Uma placa conta que, ao longo de três séculos, cerca de quatro milhões de africanos entraram no Brasil, trazidos com o propósito precípuo do trabalho escravo - mais da metade deles entraram pelo Rio de Janeiro. Os livros de História na escola são, naturalmente, a nossa primeira fonte sobre o tema, mas muito se tem feito, em letras e artes, sobre a deprimente prática escravagista, que permaneceu legal durante a colônia e por quase todo o império. Na música, muito se fala, em lamentos e exaltação. Do fundo da memória, colho várias canções e, delas, realçam-me estes versos de Chico Buarque de Holanda no samba Vai Passar: 

Ao lembrar
Que aqui passaram sambas imortais
Que aqui sangraram pelos nossos pés
Que aqui sambaram nossos ancestrais
Num tempo
Página infeliz da nossa história
Passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações

E estes mais, De Aldir Blanc, em Mestre-Sala dos Mares, na melodia de João Bosco:

Salve o navegante negro
Que tem por monumento as pedras pisadas do cais
(Mestre-Sala dos Mares).


Tudo isso vivido em poucas horas, na quinta-feira que é o primeiro dia de fevereiro deste 2018 de incertas esperanças. É também nesta quinta-feira que a Academia Goiana de Letras começa as atividades deste ano civil, empenhada em, até o próximo dezembro, prestar todas as homenagens possíveis ao nosso confrade Eurico Barbosa - jornalista e advogado, autor de obra importante sobre a história contemporânea e caprichoso crítico literário. Por conta desta viagem, inadiável, não me faço presente à sessão inaugural deste período, mas sinto expandir sentimentos nobres de amizade, respeito e admiração ao notável colega e amigo, filho de Morrinhos - portanto, vizinho geográfico da minha Caldas Novas que, nos idos de 1911, emancipou-se da decantada Cidade dos Pomares.

A você, acadêmico Eurico Barbosa dos Santos, a minha homenagem que não nasce agora, nem se finda antes da minha (espero que distante) viagem eterna.



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Luiz de Aquino é escritor, membro da Academia Goiana de Letras.


3 comentários:

Mara Narciso disse...

É preciso nos lembrar da dor dos nossos ancestrais arrancados dos seus lares e trazidos em condições animalescas, nus, amarrados, comendo e fazendo suas necessidades ali mesmo. Muitos morreram. Faz bem em nos tocar com esse tema tão doloroso.

Zumbi/ Pedro Boi

No sacolejo do navio
Que cheguei aqui
Meio vivo, meio morto
Foi o que eu senti

O meu corpo lá jogado
Na pedra do porto
Meio vivo, meio morto
Mas não desisti

Pois quem nasceu
Pra ser guerreiro
Não aceita cativeiro
Por isso eu decidi

Enquanto o eco dos tambores
Ressoa nos ares
Correndo na mata virgem
Vou fundar palmares.

A sua chibata
Por mais que me bata
O meu corpo maltrata
Eu vou resistir

A sua chibata
Por mais que me bata
Se não me mata
Eu torno a fugir

Ô nego, olê
Olê, Zumbi
Ô nego olê
Capitão do mato vem aí.

Rosy Cardoso - artista plástica e poetisa disse...

Poeta querido, me emocionei!Vivi em seu texto o que seu olhar nas profundezas se fez mensageiro poético da história. Assim Rio, terras banhadas de beleza e de inescrupulosas mentes.

Thais Guaíba disse...

👏🏼👏🏼👏🏼 Luiz. Foi bom "passear" com sua crônica pela terra de meus pais e minha, o Rio de Janeiro. Lembrar alguns lugares q conheço e me imaginar nos q espero um dia conhecer, como o Museu do Amanhã. Até lanchinho na Colombo!!! 👏🏼👏🏼👏🏼