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sexta-feira, dezembro 28, 2007

O passado é um quadro na parede...

Matriz de Nossa Senhora das
Dores, Caldas Novas, Goiás.



Janela para o ontem

Na mocidade, era aquilo de esperar a noite apurar o tom mais escuro: prenúncio da autora. E esperar, com os olhos densos de madrugada, a barra do horizonte ganhar tons de garra e mistério ante que a luz abortasse o dia. Então, era só caminhar com passos tensos para casa, na ânsia do sono ao travesseiro de conforto irresponsável e bom. A isso, chamávamos pegar o sol com a mão.

Que gosto, aquele! Uma noite inteira entre poucos amigos, todos na mesma faixa de idade. Ou imaturidade. Namoro ingênuo em caminhadas vagas em torno do jardim da praça... Se o namoro já se consolidava, deixávamos nossa beleza menina num banco de jardim a contemplar a lua a imaginar nosso romance incomparável.... Ah! Nessa idade, todos os romances são incomparáveis, desde que seja nosso.

A praça esvaziava-se por completo antes que fosse dez horas. Os pais da época eram brabos e exigentes, as moças deveriam se casara donzelas e jamais confessariam ter experimentado contato com “as coisas dos homens” senão enquanto dançavam um bolero caliente com um “namorado firme”, e desde que não houvesse por perto pai, mãe ou irmão. Era o tempo em que os primogênitos nasciam “de sete meses”, medindo mais de cinqüenta centímetros. Tempo de moços ingênuos, quando beijo na boca não era vulgar, ainda. Tempo em que não se depilavam os púbis e calcinhas e sutiãs eram chamados de peças íntimas.

Saudosista, de novo, dir-me-á Fleuri Viegas. Coisas dos dias, estes últimos do ano; coisas dos dias, estes que me acometem após a marca dos sessenta anos. Sou dos que ainda se atrevem a cometer mesóclises, mas sei que só o faço porque burlo a vigilância indevida dos revisores radicais e futuristas. Afinal, estou falando de passado, uai!

Final de tarde em horário de verão tem sabor de sol rascante, como os banhos de córrego na infância. Da infância, vem-me Celso Cunha Bastos e revivemos meninice entre goles suaves de vinho e pasta, dividindo lembranças com análises de Wilson, mais moço que nós. Afinal, é fim de ano. Há quantos anos não banho o corpo em cursos dágua? Córrego, riacho, cachoeira, poço... Nem nas ondas atlânticas salgadas. Criei em mim uma paranóia por conta da poluição; incomodam-me os odores no ar e as cores das águas. As calçadas das ruas contaminaram-se de cocô de cachorro, tomei nojo dos sapatos. Aplausos ao pôr do sol, em
Ipanema, Rio de Janeiro, 29/12/2007.

Há quantos anos não pego o sol com a mão? Isso me fazia bem, tanto no Arpoador, no Rio, quanto no Morro do Frota, em Pirenópolis. Ah, os horizontes do Planalto são indescritíveis!




Pirenópolis, Goiás, beijada nas
duas margens do Rio das Almas.

Perdão: qualquer horizonte, do alto, tem lampejos de feitiço e alegria! Adoro olhar o horizonte de cima para baixo.

Sol nascente... Nome de bairro em Goiânia. Sol que nasce merece aplausos, como o pôr-do-sol curtido em Ipanema, os picos Dois Irmãos a acolher a bola de luz. Há muitos anos não vejo o sol nascer; e, das últimas vezes, vi-o no modo inverso: era o dia ao começo, e não a noite ao fim. Agora, acordo tarde: prefiro dormir quando a madrugada vai a meio. Acordo, olho com tristeza minhas paredes que carecem tinta nova; vislumbro as molduras como quem olha o ontem. “Como dói”, definiu Drummond ante o retrato de Itabira. Evoco meu poema:

Instantâneo

É assim: imagino cenas,
mudo-te em mim
e tenho saudade do futuro.

Saudade mesmo? A esta altura da vida e do calendário, o futuro tem sido sempre previsível. Mas, enfim, e para não fugir aos costumes, deixo beijos de alegria e fé nas mãos dos que constroem e nos pés dos que já não caminham: Feliz 2008, Humanidade!

12 comentários:

Anônimo disse...

Luiz,
Beleza de texto, doce e profundo.
Mas me incomoda mais a violência,
do que o cocô dos cães.
Beijos e um 2008 de arrebentar!
Lu Colossi

Mara Narciso disse...

Crônica poética, como deve ser a última do ano. Apreciei o final apoteótico de desejar coisas boas para a "humanidade". Gostei por abrangente e original.Contudo não entendi"antes que a luz abortasse o dia". Não seria o contrário?
Finalizando: que o ano de 2008 venha inteiro, pleno e cheio de desafios!
Mara Narciso

Anônimo disse...

Poetaço

Perdoe-me a contradição: mas passado é presente e é futuro..

Quadros na parede somente nos fazem lembrar o quanto podíamos,o quanto éramos e o quanto somos!

Bom também, ver o fim da noite e não o início do dia...coisas da vida..Mudanças radicais!

Melhor ainda: vc consegue ver assim ,as doces lembranças que ,segundo lhe conheço um tiquinho, doem lá no fundo da alma.

Mas eis que ao final de mais um ciclo, ressurge o meu Poetaço ...não falando de amarguras, mas de alegrias verdaderias!!!

Rendo-me ,mais uma vez!

Jorge Elias disse...

Prezado Luiz,

Minha primeira visita.
Cheguei e só parei quando lí boa parte de seus textos - gostei muito!
Boa aquela dos "poetas inúteis"...
Um grande abraço,
Volto sempre,

JEN

Madalena Barranco disse...

Querido Luiz, assim que 2008 raiar em sua janela estenda as mãos para o alto e experimente pegar o sol com as mãos - garanto-lhe que conseguirá. Pois como alguém que molda as palavras tão bem, não vê que o sol já brilha através delas e lhe irradia pela sabedoria? Beijos, amigo querido e feliz 2008, com carinho, Madá.

Jorge Elias disse...

Volto para agradecer a visita.

Quanto à previsibilidade da vida, após determinada idade, deixo uma adaptação do poema que Mário Quintana fez em homenagem a Tolstoi:
Esse futuro, ao qual vc se refere em seu texto:
"... locomotiva que chega sempre pontualmente na hora incerta".

Um abraço e feliz 2008.

JEN

Jacinta Dantas disse...

Oi Luiz,
Adorei ler o seu texto. E também eu fico assim nessa época do ano, acho que meio nostálgica. Mas adoro acreditar que posso pegar as estrelas.
Gostei desse seu espaço.
Que 2008 seja do jeito que você merece. Bom e belo.

Jacinta Dantas

Anônimo disse...

Compartilho com vc com muitas saudades do nosso tempo de jovem.Nunca vai haver tempo melhor do que o nosso, vivido, sofrido, desesperadamente feliz.Não compartilho do isolamento, do não aceitar com a mesma alegria o comportamento dos jovens de hoje.É necessário se adaptar e viver com eles o o momento deles.Foi isso que faltou aos nossos pais.Só nos condenavam por que éramos diferentes deles quando jovens. Eu sou da idade de cadas um dos meus filhos e netos.Sou uma grande e velha menina.Desejo ao poeta muita inspiração em 2008 e ao homem muita felicidade junto a sua família e amigos.Um beijo da amiga Maria de Lourdes.

Luis Eustáquio Soares disse...

é um quadro na parde e como dói, embora, em seu texto, não senti - é claro, como poderia...rsss - a sua dor, mas um leve sentimento de melancolia, por saber que tudo é aquém e além da gente, indepedente da idade; que tudo é como terminou-começando, toda a humanidade, e muitas outras vidas-idades de outras vitais animálicas comunidades.
parabéns pelo blog,
luis

Marluzis disse...

Querido Luiz!

Previsível é o futuro dessa humanidade a qual você saúda, pois se continuarmos no caminho que estamos seguindo, principalmente nesse mundo de valores distorcidos, sabemos bem aonde chegaremos.
E mesmo com a sua “janela para o ontem”, você acaba nos fazendo olhar para o hoje e o amanhã.
Indiscutivelmente é um momento reflexivo, que por mais que queiramos, não conseguimos fugir desse rito de passagem, que nos leva a tantas saudades, melancolias, alegrias, tantos planos e promessas que, sabe-se lá, conseguiremos cumprir.
Eu fico com as esperanças renovadas, das quais não abro mão.
Uma das minhas promessas é fazer mais leituras neste ano de 2008 e, pode ter certeza, que dos seus textos eu também não abro mão.
Desejo-te para este novo ano e os próximos que virão, que a luz Divina continue pairando sobre você, para que possa continuar mantendo este blog com sua poesia que nos encanta, em versos e em prosa, e crônicas que nos transmitem, com a sua riqueza através das palavras, emoção, informação, crítica, reflexão ... entre outras sensações e reações.

Um feliz 2008 para você e todos os seus leitores.

Renata Christina disse...

Maravilha de texto, adorei! Feliz 2008. Renata.

Anônimo disse...

Oi, Luiz,
só agora leio a sua linda crônica Janela do Ontem. Obrigada , cheguei a ver o horizonte de cima para baixo, também gosto...E do futuro também tenho saudades...
Um lindo Ano Novo para você, que seja mesmo novo, todo iluminado de sonhos novos, e desejos realizados!
Abraço carinhoso
Mariza