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quarta-feira, abril 08, 2009

Com a cabeça livre


Com a cabeça livre


Luiz de Aquino



Nestes últimos cinqüenta e tantos anos de escrita, mais de quarenta deles publicando em jornais, trinta de estréia literária e os dias e horas absorvidos no processo da escrita, já perdi a conta das palestras em escolas, dos debates em congressos, das explanações em seminários e oficinas de textos. Mas gosto de reviver alguns momentos e (ou) circunstâncias. Como as dúvidas dos ouvintes e interlocutores e as perguntas mais corriqueiras.

Boa parte das indagações são previsíveis. Mas há sempre as questões surpreendentes. Ah, não! Não falarei das perguntas surpreendentes. Se o fizer, elas começarão a acontecer com freqüência e perderão seu encanto. Prefiro ficar com as habituais, as que já se tornaram habituais. A mais costumeira é “quando você começou a escrever?” e quase sempre é feita por alunos das séries de base. Concluí que essa pergunta é sugerida, ou sugestionada, pelas professoras. Por um tempo, pensei que aquilo me irritaria, mas percebi que o propósito não é situar na história de vida de cada escritor o momento do estalo, aquele em que o sujeito se percebe capaz de produzir literatura, mas, sim, pretende-se que a resposta seja um estimulante à petizada ouvinte.

Por exemplo, sei que quase todo escritor começa a se interessar pelo texto ficcional, ou pela qualidade dos textos indispensáveis (incluam-se aí os textos técnicos) ainda muito cedo, buscando prazer no ofício de escrever. Muitas crianças de primeira fase recriam filmes vistos, histórias ouvidas, contos lidos. Bariani Ortencio gosta de contar que, quando estudante, rabiscava nas últimas páginas do livros o final que ele gostaria que a história tivesse. Gabriel Nascente revela que interessou-se por poesia ao notar que Aidenor Aires, seu colega de Escola Técnica, lia e escrevia versos (na época, cursavam o ginásio e o despertar se deu na série que hoje equivale ao sexto ano Fundamental). O resultado foi que Gabriel Nascente estreou com um livro de poemas “Os Gatos”, aos dezesseis anos.

Mas o tal de processo da escrita não consiste só em se pôr caneta ou lápis sobre o papel, ou à prosaica e desusada máquina de escrever, e, para ser atual, sequer o processo da escrita consiste apenas em se dedilhar ao teclado do computador. A coisa começa muito antes, com a intensa atividade do senso de observação de cada um, com o aprendizado incessante das regras da Língua e o conhecer cada vez mais das atitudes e comportamentos das pessoas, os hábitos dos animais, a cor do céu, a dança das nuvens, a musicalidade das cachoeiras e a percussão das ondas nas pedras e areias... Escrever é traduzir, ao modo de cada um, o sentimento do autor ante a natureza que Deus criou e a natureza das pessoas. Ou a natureza da Natureza. Escrever começa com a percepção das coisas.

Mas existe a parte indispensável da escrita, que é o leitor. O leitor (e somos
todos leitores) é a parte passiva da escrita, o canal de recepção. É confortável para o leitor receber o texto, que resulta de uma infinidade de coisas acumuladas na cabeça do escriba observador. Mas há leitores estranhos, como aqueles que querem dizer ao autor o que ele deve escrever.



Não deve. Pode, sim, e sempre, sugerir temas, mas que espere o autor pronunciar-se ao seu modo. Um leitor, certa vez, questionou-me: “Leio sempre seus textos, mas não gostei quando você elogiou o Fulano”. Respondi na bucha: “Moço, não sabia que eram desafetos. Eu gosto de você, mas gosto também do Fulano, a diferença é que ele fez algo que, para mim, foi digno de nota”. Um outro expressou-se assim: “Gosto do seu lado poético; não gosto quando você briga” (referindo-se a textos eventualmente polêmicos). Respondo, também: “Acha que foi ruim quando briguei pela manutenção das árvores?”. Não, a pessoa gostou. “E quando questionei o bispo que excomunga familiares da vítima de estupro e protege o bandido?”. Também não. Mas o leitor não me diz qual foi a briga injusta.

Desisto de esclarecer. Melhor deixar que cada leitor eleja o que quer ler, mas, por favor, respeitem o direito de o escriba de discorrer sobre o que quiser. Afinal, num bate-papo (ainda tem hífen? Estou confuso) cada um diz o que pensa, não é?


Luiz de Aquino é escritor e jornalista, membro da Academia Goiana de Letras.
E-mail: poetaluizdeaquino@gmail.com.

5 comentários:

Academia de Letras do Brasil disse...

O leitor tem o direito de gostar ou não do que lê. Por exemplo gostei de voce mencionar o nome de Bariani Ortencio em seu texto, isto prova que voce é sensível e ve no outro o que ele traz de bom para a literatura.

Madalena Barranco disse...

Olá, Luiz querido!

Qualquer coisa que se diga às crianças e jovens sobre "começar a escrever" é um precioso estímulo à sementinha da literatura, que se agita em suas mentes.

Escreva, amigo. Suas palavras são como o poeta do Sol, que dispõe a luz na candeia que cada um possue em seus corações e mentes. Quem fala e não esclarece, literalmente "coloca a candeia sob o alqueire".

Beijos, Madalena

Maria Helena Chein disse...

É, Luiz, há leitores de todo tipo, de vários gostos, uns apreciam determinados assuntos, outros não, mas o bom
é que estão lendo. Às vezes, sentimos raiva por quem dá opiniões tolas, mas recebê-las são os ossos do ofício.
"Cada cabeça, uma sentença". Interessante saber como cada escritor começou o seu ofício, como foi esse pulo,
esse chamamento, não é? Uma pergunta feita pela minha curiosidade: qual o seu signo?

Abração.
Lena.

Mara Narciso disse...

A imprevisibilidade do texto é um motivacional extra para que se efetive a leitura. O leitor que quer sugerir o tema, e o final, deveria escrever por si mesmo, e não pedir que o outro escreva. Atualmente, com o computador, mesmo o jovem que "não desgruda da internet", está lendo ou escrevendo. Isso não é ruim. Desse modo, surgiram montes de leitores e escritores. Agora, mais do que nunca, com a tão propalada interação, todos podem opinar. Essa troca é ótima,e privilegia-se a liberdade de expressão. E como dizia a minha mãe: " Cada cabeça uma sentença". E temos a nossa sentença, por que absorvemos outras cabeças e outras sentenças e dessa miscelãnea junto com as nossas escolhas e vivências, somos o que somos. Desculpe a digressão. Fui lomnge, mas já estou de volta...risos...

POETA ALMÁQUIO BASTOS disse...

Amigo Luiz,
Muito interessante essa reflexão sobre o "estalo", como disse você referindo-se ao momento que alguém se descobre escritor. Viajei em seu texto e me lembrei quando, ainda moleque, de bicicleta e com minha marmita na garupeira(eu trabalhava na antiga Santa Casa de Misericórdia de Goiânia - hoje Centro de Convenções) levei alguns escritos meus para apreciação do poeta Gabriel Nascente (Ele trabalhava na praça cívica, onde funcionava a prefeitura de Goiânia). O poetinha me recebeu, olhou meus rabiscos e me incentivou. Não sei se ele se lembra disso, mas faz parte de minha história poética. Também não posso deixar de mencionar a importância que foi para mim, quando você, poeta conhecido e respeitado,presidente da UBE, apoiou-me (quem era eu?) na publicação de meu livro Ciclo do Nada (1996). São fatos que faço questão de mencionar para leitores (alguns, alunos interessados durante seminários em escolas), pois essa é minha história. Grande abraço meu amigo poeta.