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sábado, abril 04, 2009

A Língua ao Sol


A Língua ao Sol


Luiz de Aquino

 

Não precisava programar nada, então deixei o dia nascer, simplesmente. Fiz bem, bastava-me o sol. Menos: bastava-me sua luz. E o dia se fez de azul com nuvens, e a luz criava sombras, silhuetas de árvores e prédios, de bichos e gente. Um rádio toca ao longe, não gosto da música. Ligo a tevê, notícias de crimes e falsetas políticas, nada de arte nem de boas-novas.

Banho, escova de dentes, lâmina de barbear, o café, frutas e leite, conversa amena. Documentos, chave, carro, rua e sinais. Horários e conversas, informações indispensáveis, acertos e esperanças novas. O carro outra vez, a rua e os sinais, uma feira esquecida obriga-me a retornar, voltear seis quarteirões e, ao fim, desistir daquele intento, não há vagas próximas, nem nas ruas, nem nas garagens. Retorno à tarde.

Farmácia. Preços especiais com cartão-fidelidade. Aumento na tabela, mas só para medicamentos de uso contínuo. Só? Sim, apenas. Sem comentários. Estamos mesmo em fase de declarar rendimentos e gastos ante a Receita Federal... Nossos ganhos são controlados, o que gastamos fica limitado a um teto máximo, muito aquém do mínimo que efetivamente gastamos. Eis um caso de incoerência: aqui, o mínimo bate muitas vezes no que o Governo entende por máximo. Aliás, aqui chamam nossos salários e pensões de “renda”, e as taxas que parecem fixas recebem tratamento especial, de modo que, feito mágica, sugam-nos mais a cada ano. Pena que o presidente, tão popular, virou elite também.

Sombras. Nuvens claras. Nuvens de longe, muito longe, em tons plúmbeos, ameaça de chuva para o final da tarde. Ou, no jargão dos técnicos, no fim do período.

 Técnicos e profissionais liberais não falam gírias: têm jargões. Médicos conversam num dialeto que tem por esteira os “radicais gregos”; os juristas valem-se dos “radicais latinos” e são tão impolutos, ou embolados, que usam uma língua que o vulgo chama de juridiquês. É que a Língua

 Pátria, “última flor do Lácio, inculta e bela” (obrigado, Bilac!), também é luz; como tal, ilumina e faz sombras.

Todos precisamos de sol. E da Língua. Alguns, como eu, fogem da luz direta do sol, pois o tempo criou marcas, pintas indeléveis. O tempo também fez-me a pele mais sensível, a luz direta faz dor na pele. E tal como busco a sombra quando a luz é forte, existem os que correm da Língua bem falada, correta e bela, não tão inculta como a conceituou o poeta Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac. Incultos são os mais de nove entre dez falantes da Língua de Pessoa e Drummond, de Bandeira e Camões,  

de

 Quintana e Maria Helena Chein.

Certa vez, assustei-me comigo mesmo ao discutir longamente com quatro jovens, filhos e sobrinhos, acerca de coisas de escolas e provas. No calor dos argumentos, dei-me conta de que passava dos quarenta anos e não era mais um jovem estudante. Ledo engano, Dona Leda(ê) Selma... continuo menino, continuo estudante, curioso e ignorante como na adolescência. E já vivi quatro adolescências, ao menos.

Olho em volta, confiro meus instrumentos de trabalho e constato que não preciso sair do ambiente da Língua. Afinal, já escrevi “aquêle”, que mudou para “aquele” e, agora, não permitem que eu escreva “idéia” ou “perdôo”. Ou seja, todos nós, com cinquenta anos, somos museus vivos e circulantes da própria Língua.

O dia continua, o pensamento voa... Luz e Língua! Ninguém muda o sol. Muda a Língua...

E o trema? O belo sinal gráfico, doravante, só será visto no ângulo anterior dos quadris femininos, aquelas covinhas que enfeitam bundinhas de modelos e outras seminuas, insinuando-nos sonhos e nostalgia. Na grafia, somente em nomes estrangeiros: Müller, Bündchen... Aliás, a famosa modelo tem trema nos quadris (isso é lindo!).

 

 

Luiz de Aquino é escritor, membro da Academia Goiana de Letras (E-mail: poetaluizdeaquino@gmail.com).

8 comentários:

Sol disse...

Simplesmente adorei a sua frase:
"Ou seja, todos nós, com cinquenta anos, somos museus vivos e circulantes da própria Língua.
".
Espetacular!

Mara Narciso disse...

Homens também podem ter costas belas e os mesmos dois furinhos na altura do final delas. Também neles são sensuais essas covinhas, tão lindamente chamadas por você de trema.

Mesmo um tedioso dia sem novidades proeminentes pode e rendeu uma poética crônica de costumes. A vida é belíssima, assim como a nossa Língua Portuguesa, chamada por Olavo Bilac de "inculta e bela" por ter sido derivada do Latim Vulgar e não do Latim Culto. Chamou-a de última flor do Lácio por ter sido a última língua surgida desse mesmo latim, sendo o Lácio a região do acontecido.

Usar palavras escolhidas e ser arquiteto linguístico é coisa para você mesmo, Luiz de Aquino, haja vista " As uvas, teus mamilos tenros"... ai, ai...

Judô e Poesia disse...

Oi Luiz,

É um prazer te ler de novo. A língua ao sol é um poema-imagem que toca a alma do leitor.

Abraços,

Domingos, BH/MG

Iraci A. Jorge disse...

Luiz querido,

Linda crônica..... senti nela (sentinela?) o poeta Luiz, todo prosa, todo verso, todo rima, todo TODO.!
bjs
Iraci

Vânia Moreira Diniz disse...

Luiz querido,
Eu adoro suas crônicas há longo tempo.
Você não é só talentoso, mas também competente em seu trabalho.
Beijos
Vânia

FatinhaMussato disse...

Gostei muito de ler este texto...
Inteligente, escrito com muita propriedade e bom humor, sem se deixar levar ao lugar comum das crônicas bizarras que são vistas por aí e que pretendem ser interessantes!

Beijinhos em seu coração!

FatinhaMussato

Maria Helena Chein disse...

Gosto de ler suas crônicas. A que fala das calçadas vem de acordo com o que o Dr. Carlos (amigo, paulista,advogado, morador em Goiãnia há muitos anos) e eu achamos. Elas são, na maioria, um perigo para nossos ossos e músculos. Podem se quebrar, rachar, cortar, etc. Dê mesmo um passeio, nos nossos passeios, com o prefeito Iris Rezende. Ele ficará horrorizado e, na certa, tomará providências.
" A Língua em risco" é um chamamento para tantas inconveniências ditas, como se vê e ouve na televisão: "o menino, ele veio aqui", "o remédio, ele irá curar seu dedo". Acho um enjoo (arre, a nova grafia) esse tal de "o menino ele"
ou "o remédio ele" e por aí vai. E o " na verdade"?
Lu, que surpresa ver meu nome junto de Quintana e perto de Pessoa e Drummond, B. e Camões. Meu Deus, fiquei entre o sem graça e aquele sentimento bom de alegria, entende? Os poetas são demais e assim a honra é minha.
Um abraço bem grande.
Maria Helena ( ou Lena).

Andiara disse...

Eu lí e gostei muito,como sempre suas coisas me tocam muito. Andy