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sexta-feira, março 19, 2010

Lembrando escribas


Yeda Schmaltz, Aidenor Aires e Brasigóis Felício



Lembrando escribas



Luiz de Aquino (*) ao lado do busto de Carmo Bernardes, no parque que leva seu nome.


Não me recordo o ano em que, na Avenida Goiás, Goiânia, instituiu-se a Feira de Artes e Artesanato que o povo apelidou de Feira Hippie (o som me induz a escrever “ripe”). No começo, eram mesmo peças de artesanato em madeira, peças naturais colhidas no cerrado, tecidos, plásticos, tela e tinta, esculturas... O segmento das letras não se fez mostrar em contação de causos e recitação de poemas: deu-se por conta de uma Kombi e uma lona. Paulo Araújo, que há pouco se esvaneceu, era o livreiro, comerciante de toda sorte de livros.

A indústria do livro permitiu a invasão de outras indústrias. Primeiro, a de confecção, com a mostra e venda de peças sem etiquetas (as que encalhavam, recebiam etiquetas e eram comercializadas com nota no decorrer da semana; no domingo, repetia-se a operação engodo na Feira da Avenida Goiás).

A feira saiu da avenida, para viabilizar o trânsito na principal via do centro da cidade, concentrou-se na Praça Cívica. Depois, e por razões de racionalização urbana, transferiu-se para o pátio da estação rodoviária. Mas, então, já era um centro comercial de produtos importados de origem estrangeira, com largos indícios de falsificação e pirataria, além de contrabando. Com pouco, os fregueses certificaram-se de que artesanato era só saudade.


Mas nada disso interessa. Não me disponho, agora, a elaborar um mini-ensaio (ou será miniensaio? Socorro, Leda Selma!) sociológico, até porque tenho reservas graves sobre esses trabalhos sociológicos. Prefiro os trabalhos de ação social. O que vale, para mim, é o que me valia naquela época. Gostava de acordar cedo, aos domingos, para desfrutar da companhia e da boa prosa de uns tantos escribas que se juntavam sob o toldo da Livraria Cultura Goiana. Carmo Bernardes era dos mais assíduos e dos primeiros a chegar. Estariam lá os freqüentes Aidenor Aires, Yeda Schmaltz, Francisco Aires, João Batista Zacariotti, Antônio Batista, Marieta Teles Machado, José Sobrinho, Taylor Oriente, Brasigóis Felício... Eventualmente, Bernardo Elis (foto), Ada Curado, Oscar Dias, Gabriel Nascente, Cora Coralina e tantos outros. Bariani Ortencio costumava ciceronear escritores de outras plagas, gente famosa como, por exemplo, José Mauro de Vasconcelos, autor de “Meu pé de laranja lima”, sucesso absoluto na época (virou novela, virou filme...).



Falava-se de quotidiano, de coisas vistas e vividas na semana, de notícias de jornais, de música, de eventos cênicos, de xous de orquestra e de canto, de contos (parece-me que, naquele tempo, gostava-se mais de contos), de poesia e de poetas, de política, provavelmente de vida alheia... Falava-se mal da ditadura, embora vez por outra ali aparecessem autoridades constituídas, como o manda-chuva da Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste, Camargo Júnior; o governador Irapuan aparecia lá, vez por outra.

Era a década de 1970 e primeiros anos de 1980. Conservo aqui uma bela foto de José J. Veiga ao meu lado, datada por um destacado detalhe:minha jaqueta de motociclista. Gostei de ver-me na faixa dos 35 a 40 anos, sem rugas nem marcas no rosto (vaidade besta, meu Deus!).


Minha alegria maior era o papo com Carmo Bernardes. Ele era (ainda o é) o mais rico depositário do linguajar roceiro, sotaque e glossário. Versado em natureza, ensinava muitas coisas e esclarecia-me sobre a vivência no campo e na roça. Por exemplo, hábitos de animais voadores ou rasteiros, táticas de caçadores, manias de pescadores, sabedoria de matuto, variação das enchentes e palavras, muitas palavras, além de variantes semânticas. Era um estudioso.

Carmo Bernardes, bonachão

Surpreendeu-me quando lhe perguntei, sempre para apreender de suas práticas, sobre o processo criativo:

- Olhaqui, Luiz (ele era dos poucos, talvez o único, que não me chamava pelo sobrenome; sempre preferi meu nome, mas muitos insistiam em dizer Aquino... melhor chamarem-me Luiz de Aquino) –. Tudo o que escrevo é fruto do que vivi ou pesquisei. Nunca consegui fazer ficção.

Que memória!, pensei. Mas Carmo, como que adivinhando, esclareceu:

- Não sou, também, um armazém dos fatos, não. Tenho a minha técnica, que consiste, quando me ponho a escrever, em dormir cedo. Acordo lá pelas duas da madrugada e escrevo até perto das seis. Aí, minha mulher acorda e começa a lida. Eu dispenso a máquina de escrever, tomo café e já ganho a rua...

Essa fala bateu na minha memória há vinte minutos. E, com ela, veio-me o cenário, as pessoas, o sol das manhãs domingueiras, a juventude de tantos e alguns fantasmas muito queridos.

Muito queridos!


* * *


(*) poetaluizdeaquino@gmail.com

12 comentários:

Dóris Mendes disse...

Nossa, achei muito linda!!!
E aí voltamos ao assunto do Painel Goiano: onde está a fronteira entre a crônica e apoesia?
Que linda poesia você fez aqui.."Fantasmas muito queridos!" .
Quem não os tem?!
Fiquei emocionada!
Bjs
Dóris

Luiz Delfino disse...

Poeta Luiz de Aquino,

Esta sua via lux por momentos saudosos me faz recordar dos "ripies" que se espalhavam nas calçadas da Av. Ana Costa com a presidente Wilson no bairro do Gonzaga, em Santos. Lá conheci o artesanato e as pessoas que sonhavam por um mundo melhor após o grande evento de 1968.Eu era ainda criança e me encantava com aqueles cabeludos e barbudos de calças surradas e com os famosos cordões com o símbolo da Paz e do Amor pendurados no pescoço.
No que toca à literatura até hoje conheço poucos escritores - raríssimos até - de minha terra natal. Mas tenho orgulho de conhecer pessoalmente alguns familiares diretos de Vicente de carvalho, o poeta do mar.

Ai na nossa Goiânia - tem acento? Quem é Leda Selma? - conheço alguns. Do Bira à voce, meu mestre maior e amigo que me fornece o sustento das plagas de Goiânia, minha cidade amada.

Fui num lançamento de um livro de Coralina, nos idos de 83, na UFG. Fiquei eufórico ao ver aquele corpo tibio transmitindo experiencia só em estar ali. Ouvi recitais.

Invejo-o - no bom sentido, se é que se pode falar assim - por ter esta companhia real de letrados, de pessoas que fazem da escrita um sacerdócio. Mas também não estou sozinho pois, você estando ai, sinto-me também bem acompanhado.

Até mais.

Luiz Delfino

Nathaly disse...

Acabo de criar um filme em minha cabeça.
Maravilhoso o teu jeito de escrever.
Quem me dera ter podido assistir a uma dessas passagens, nem que fosse eu uma mosca.
Tens um talento formidável.
Beijos.

Nathaly.

Wanda disse...

Bonita crônica, poeta.
Repleta de sensibilidade.
Gostei.
Bj

Mara Narciso disse...

Saudade de José Mauro de Vasconcelos, Potiguar que me presenteou com "Rosinha, Minha Canoa", e "O Doidão"-"tirar o sal do corpo e o fel da alma"-, além do reconhecidíssimo " O Meu Pé de Laranja-lima". Adoro! E sobre a incapacidade de criar do seu amigo, também me queixo do mesmo bem. Nada do que escrevi foi inventado. Sempre me baseio em fatos reais, e quanto mais reais, melhor.

Anônimo disse...

Há tempo não acordava pela madrugada para escrever.
A calmaria inspira a reflexão.
Assim resolvo reler sua crônica.
Simplesmente bela!
A forma poética que nos convida a fazer um passeio pelo tempo.
Constato que nestes últimos acontecimentos (Sarau das várias Marias e um poeta, festa literária em Pirenópolis, Goiânia prosa e verso, palestras nas Universidades e escolas, eventos no Goiânia ouro...), tivermos essa oportunidade de conversarmos a respeito do quotidiano. (Lembrando escribas).
Posso falar que hoje, nossa alegria maior se compara ao seu papo com Carmo Bernardes.
Com uma diferença. Você é o protagonista que nos encanta com as histórias, palavras doces e ao mesmo tempo sempre carregadas de ações sociais transformadoras.
Vejo que nós leitores e amigos, precisamos sim agradecer.
Muito obrigada pela oportunidade de evolução espiritual, ideológica e intelectual.
A poesia esta novamente nas ruas e nos corações.
Sua luta, caro poeta, ficará para a história.
Apenas escrevo o que escuto de meus alunos, pacientes e amigos.
Ah! Dia 27 de março Trindade, a terra Santa do Divino Pai eterno te receberá mais uma vez de braços abertos.
O tema: A inclusão social pela poesia. O local é lá no Santuário dos Irmãos; ou seja,
a minha querida Vila São José Bento Cottolengo.
Beijos de luz.
Afetivamente,
Malu Carvalho.

Bethânia Loureiro disse...

Adorei o texto Luiz! Cheio de vida, de afeto!
Lembranças tb são fonte de vida!
beijos

Anônimo disse...

Por que não recomeçar esses encontros em outros locais? O que falta?
Os escribas estào por aí.
Ou falta inspiração?

Luiz de Aquino disse...

Anônimo, por favor, identifique-se. Mas, antes, respondo-lhe.

Na minha opinião, não se fazem mais velhos como antigamente. Citei pessoas que aos 70 e 80 e tantos aos iam a tais encontros. Os da minha geração (estou na casa dos 60) recolheram-se em suas casas, evitam tudo. E os jovens, quero dizer, os de 50, 40, 30 e 20 anos não praticam a sociabilidade.
Bem que eu tento de todas as maneiras, mas até para juntar três ou quatro para uma atividade remunerada, como escritores, foi muito difícil.

Maria Helena Chein disse...

Luiz,

que lindas saudades! Lembranças para toda vida!
Bonita a foto da Yêda. Tantos se foram, como foram aquelas manhãs.
Beijo.

Maria Helena

Mariana Galizi disse...

Luiz, linda crônica tua, crônica-poética, crônica híbrida... carregada de nostalgia boa, linda de se sentir... Sempre que te leio percebo como vale à pena entrar no mundo das letras, das saudades. Só sinto a distância, que nos impede de ficarmos aos cafés exalando poesia, literatura e vida.
Devo dizer que está muito mais charmoso agora. rs
Os de 30 querem sim, mas pouco podem sozinhos.

Anônimo disse...

Ah Aquino, achei fantástica sua crônica e fiquei imaginando como deve render cultura um encontro desses que você citou saudoso. Se resolverem se reunir novamente para discutir cultura e arte, tô dentro.
Professora Adélia Freitas.