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sábado, abril 23, 2011

Bilhete de saudade

Bilhete de saudade


As lembranças, sempre que provocadas, despertam-se como os pássaros quando a árvore que lhes é poleiro recebe os primeiros beijos do sol. E feito pássaros, essas lembranças ruflam asas e abrem os bicos em variadas melodias naturais, festejando a sobrevivência. Sei bem o que sinto nesses momentos; e sei bem decifrar os sorrisos silenciosos que põem luz nas faces e um brilho denso nos olhos, enquanto os lábios arqueiam-se em meia-lua, as extremidades afinadas, alongadas, felizes... É a poesia ganhando espaço e mais luz; o coração da gente parece um dínamo a produzir energia forte, e algum cientista vem me dizer que é serotonina, endorfina e outros possíveis hormônios expandindo-se em nossos corpos. A mente, então, é de fato feliz!

O botão acionado em mim, nesta manhã de Quinta-Feira Santa, foi um e-mail muito breve, em linguagem coloquial goiana, assim: “Luiz, cadê ocê? Abraços, jcarlos”. Neste caso, jcarlos é como se apelida meu velho amigo José Carlos Barbosa. Conheci-o numa manhã de fevereiro, em 1965, quando o país vivia  horário de verão por decreto de Castelo Branco, o primeiro ditador por revezamento. Fomos aprovados num concurso para o Banco do Estado de Goiás; aquele foi um dos últimos concursos para admissão em órgãos do Estado de Goiás, coisa instituída aqui pelo governador Mauro Borges; ele foi deposto por Castelo Branco em novembro de 1964 e em poucos meses toda contratação ou nomeação nos poderes públicos de todo o país só se daria por escolha da ditadura e de seus prepostos.

As primeiras semanas do nosso trabalho consistiam em aulas para entendermos o ofício de bancários. Aprendíamos os termos da profissão, noções de contabilidade bancária, conhecíamos o conjunto de impressos utilizados na empresa (e, com eles, o fluxo de papéis), ética bancária e, ainda, Noções de Língua Portuguesa (e redação). Curiosamente, o BEG daqueles tempos era respeitado por expedir redações impecáveis – se não no que tocava a estilos, ao menos na correção ortográfica e gramatical; o notável que cuidava disso era o saudoso e muito amado Professor Alfeu Medeiros.

A marca...


Nesse período “escolar”, José Carlos Barbosa e eu nos tornamos amigos; começou ali esse convívio que se interrompeu com as nossas aposentadorias e, desde então, limitamo-nos a trocar e-mails e, dentro deles, algumas críticas a fatos e costumes, já que ninguém é de ferro. Mas retorno ao tempo passado para lembrar-me do Zé Carlos, que já era contador (naquele tempo, formavam-se contadores no ensino médio; depois veio o curso superior específico) e destacou-se nesse importante segmento de qualquer empresa, mormente nos bancos. Chegou a inspetor ou auditor, não sei exatamente porque num dado tempo essas funções se fundiram.

Juntos, vivemos momentos de apreensão profissional (como dizia o Edivaldo, trabalhar em banco estadual é difícil porque a cada quatro anos temos de provar que somos bons de serviço), com subidas e descidas na escala das funções; crescemos – e isso ninguém nos tiraria, porque o crescimento é intrínseco do funcionário – e mostramos, cada qual em seu espaço, do que éramos capazes. Mas não fomos capazes de conter os desmandos (coisa que hoje se apelida de “má gestão”) que provocaram os resultados “colimados” pelos que, no afã de agradar ao governo que reinava em Brasília, conduziram a empresa à bancarrota.

O edifício-sede do BEG: projeto de Elder Rocha
Lima, obra do governo de Mauro Borges
Pois é, Jcarlos, estou aqui! Escrevendo, como sempre; como já fazia naqueles tempos de 1965; como faço quase todos os dias; e ao escrever revivo a vida em detalhes. Vivi essa vida passada com tropeços e felicidade – afinal, enquanto era bancário fui também estudante colegial e universitário, professor e escritor, jornalista e ativista cultural. A cada dia de agora, reencontro, nas ruas e nos xópins, velhos camaradas do BEG, e somos todos aqueles mesmos meninos, agora de cabeças brancas, ou de cabelos pintados, ou sem cabelos. Mas trocamos os mesmos tipos de informações, apenas atualizadas pelos fatos contemporâneos e valendo-nos do que a tecnologia dos celulares e computadores nos oferecem.

Mas uma coisa, meu caro Zé Carlos, continua igual: a capacidade que temos de sorrir, de rir e de sentir saudade. E sei muito bem que, no peito de cada um de nós, existe aquela alegria de termos conhecido um banco com 16 agências que, em 30 anos, passaram de 150 filiais e vários postos de atendimento. Da derrocada fomos vítimas, apenas.

* * *
Luiz de Aquino, bancário, 1965.




10 comentários:

Leda Selma disse...

Liiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiindo o primeiro parágrafo, lindeza de poesia pura! Todo o texto é ótimo, com nuanças nostálgicas, enfim, à altura do escritor que é você.

Beijos,

Lêda

Bethânia Loureiro disse...

Concordo com a Leda Luiz, vc é muito bom nesse negócio rsrrsrs
Mas o primeiro paragrafo tá maravilhoso!!!

Zulânia disse...

Me encanto com seus escritos, Luiz.Visito este blog todos os dias em busca de suas crônicas e poesias, que são belíssimas.Amo esse blog. Somos carentes de pessoas inteligentes e cultas,igual você. Um grande abraço e parabéns!

Zulânia

Maria Helena Chein disse...

Oi, Lu,
gosto de suas crônicas, do jeito que você me prende ao
contar os casos e das lembranças que ficam tão presentes e
sempre tão cheias de novidades. Gosto. Muito.
Bjs.
Maria Helena

José de Arimatéia disse...

Meu caro amigo Luiz de Aquino, ao ler seu artigo, bilhete da saudade, me senti lá no sítio onde nasci!

LA QUANDO SE CALA A CIGARRA
OS PASSARINHOS COMEÇAM
AS BORBULETAS SE APRESSAM
VOANDO E FAZENDO FARRA
UMA NUVEM RASGA A BARRA
NOS SUPAPOS DO TROVÃO
E DEUS ESTENDE NO CHÃO
UM TAPETE ESVERDEADO
QUER VER UM REINO ENCANTADO
PASSE UM DIA NO SERTÃO!!!

Uma homenagem ao seu belíssimo artigo!
Do Poeta; Jose de Arimateia.

Edmar disse...

Luiz de Aquino, tá cada vez mais fácil elogiar seus textos. Você é um talento, amigo. E um ótimo amigo também, com essa sensibilidade imensa. Um grande abraço. Edmar Oliveira

Edivaldo da S. Andrade disse...

É amigo,
valeu pela lembrança, e, que ate hoje serve de lição...
só que hoje, temos que provar, todos os dias, à nós mesmos que somos bons
de coração, de trabalho, de solidariedade e de amor ao proximo.
abraços.

Mariana Galizi disse...

Pois é, saudade tem idade - e como!
É maravilhoso ver que a evolução tecnológica, que traz o tal conforto, também acompanha a de nossos sentimentos, tão nobres e puros, por nossos companheiros de "guerra".
Saudemos os doutores que trouxeram à tona nomenclaturas tão elegantes àquilo que sabemos como amor e saudade.
Grande beijo, poeta meu!

José Carlos Barbosa disse...

Luiz o "Bilhete de Saudade" ,que você mandou pra mim a um ano atrás, continua "vivo", na minha memória, e foi lido por todos os "MEUS".
Afinal foi escrito por quem "nasceu no cerrado, flor do planalto, que necessita de ar e areia alânticos"

Abraços,
jcarlos

José Carlos Barbosa disse...

Luiz o "Bilhete de Saudade" ,que você mandou pra mim a um ano atrás, continua "vivo", na minha memória, e foi lido por todos os "MEUS".
Afinal foi escrito por quem "nasceu no cerrado, flor do planalto, que necessita de ar e areia alânticos"

Abraços,
jcarlos