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domingo, janeiro 22, 2012

Herói por dar ordens


Herói por dar ordens


Nos últimos anos, estes do primeiro século do milênio, tornaram-se comuns as notícias de grandes desastres. O automóvel, a motocicleta e o avião vieram para facilitar a vida, mas somaram-se aos conflitos da ganância humana e às transformações dos conceitos. Os desastres de trânsito e a queda das máquinas voadoras passaram também a ceifar vidas e a deixar seqüelas graves. O homem, que supomos ser  o único animal a ter consciência da morte, ampliou os motivos das várias mitologias. Preces e amuletos jamais deixaram de ter sua importância na ansiosa busca da paz, da segurança, das benesses dos deuses e dos santos.

Nestes anos de comunicação instantânea, com milhares de satélites artificiais a possibilitar a transferência de sons e imagens entre todos os pontos possíveis da superfície da Terra – e ainda entre todos os objetos voadores, no espaço da nossa atmosfera e até mesmo nas longínquas estações espaciais e naves-sondas que bisbilhotam outros corpos celestes –continuamos a usar objetos cujo magnetismo nos sugere sorte; e continuamos a recitar orações, sejam as que nos chegam de milênios ou as improvisadas. Para alcançar a sorte e a paz – a salvação, segundo muitos – continuamos a cantar e dançar.

Os desastres continuam: geleiras desaparecem porque desapareceram matas; ar irrespirável, contaminados por venenos que geramos para, paradoxalmente, “facilitar a vida”; alimentos contaminados por drogas que usamos para obter frutos, folhas e tubérculos maiores e mais vistosos; carnes comprometidas pelo abuso de hormônios nos animais da cadeia alimentar...  E velhos desastres, que por tempos pareceram esquecidos, assustam a humanidade. Aos ataques e atentados sangrentos juntam-se as ondas gigantes, os terremotos e os vulcanismos, os túneis e cavernas que desabam, os navios que adernam e afundam... E corremos para as preces e cânticos.

O susto desta semana veio do Mediterrâneo. Um transatlântico italiano cujo capitão, inebriado pelos encantos de uma jovem e bela moça, exótica e – talvez – personificando uma decantada sereia dos tempos das rudimentares navegações exploratórias, agiu como um moto-boy. Tentou fazer com que aquele navio, transportando mais de quatro mil pessoas – algo comparável a grande parte da população das cidades brasileiras –, ziguezagueasse entre ilhas costeiras da histórica Itália.

O que o enfeitiçou? O charme da moça loira? O vinho de boa origem itálica? Com que pó o chefe de cozinha temperou a massa? O orégano estava vencido ou a manjerona veio contaminada de agrotóxicos? Como capitão de um imponente navio turístico, certamente sabia das obrigações milenares de seu posto – e ainda assim abandonou seu barco. E o comandante da guarda costeira local, no rigor de seu ofício, determinou-lhe o retorno ao navio, com autoridade e energia. Só por isso, esse comandante passou a ser chamado de herói. Estranhamente, subitamente herói só por ter dado uma ordem óbvia – nivelado, pois, a um italiano cinco séculos mais velho – Cristóvão Colombo.

Nada de herói, apenas um profissional, um marinheiro, um militar cioso de suas responsabilidades. Mas perdoemos o povo italiano, que assim o classificou: em tempos de Berlusconi, aquela gente precisa, e muito, de um herói. Mas, por favor! Nada de entrar no conceito do apresentador de tevê que assim se refere a um bando de desocupados cuja causa nada tem de nobre.


* * *

6 comentários:

Chico Paes disse...

Amigo Aquino,

È gostoso saborear os seus escritos; a facilidade da narrativa, a colocação certa e na hora certa dos dos adjetivos queintegram os seus artigos. Parabens.
Um abração.
Francisco Paes (Chico Paes)

Romildo Guerrante disse...

Meu caro poeta, a Itália está uma desordem tão grande que qualquer ato mais firme, como o do capitão dos portos contra o comandante do Concordia, produz intensa catarse na parcela da sociedade que, envolta em crise política, econômica e social, reclama um chamamento à ordem. Fermenta na Itália um caldo perigoso, alimentado por segmentos conservadores que requentam as sobras da disciplina autoritária da era Mussolini, aquele mito que garantia até mesmo trens no horário.

Mara Narciso disse...

Também não vejo heroísmo algum nesse apelo dramático e autoritário, ainda mais que foi ignorado. Muitas ondas ainda chegarão à areia, até que o capitão pague pelo seu desatino.

Vivi disse...

Então...Enquanto algumas pessoas enxergarem somente o próprio umbigo muitas outras situações assim infelizmente acontecerão...Como sempre, um ótimo texto. Parabéns lindinho e fica com Deus.

Fernando Antonio Quintella Ribeiro disse...

Poeta.
Concordo com você. Tempos muito loucos. Fazer o seu trabalho já virou ato de heroísmo. Enquanto isso, naquela casa...

Kássia Reis disse...

Concordo. Excelente texto.