Páginas

terça-feira, julho 17, 2012

Visitação literária


Visitação literária



É bom reabrir livros já lidos. É visita que gosto de fazer, sempre.

Há quase 30 anos, a Livraria Cultura Goiana, do saudoso Paulo Araújo, assinou a 6a. edição de Tropas e Boiadas, o único livro do jovem Hugo de Carvalho Ramos. O autor tinha 21 anos quando lançou seu livro de contos que é tido, entre os estudiosos da literatura brasileira, como o pioneiro no segmento do regionalismo.

Será? Desde aquela publicação pioneira, há quase um século (o ano dos 21 anos de Hugo é 1916). Hoje, o que temos por regionalismo é o texto eivado de expressões setoriais, como escrevia meu querido Carmo Bernardes; e ainda os notáveis Eli Brasiliense e José J. Veiga. Suas histórias, ou causos, tendo o sertão de suas vivências como cenários e os camponeses por personagens, trazem diálogos bem definidos, geograficamente; mas a literatura, como se a concebe, é a prática das figuras, é o caminho poético das narrativas... Vejamos esse trecho:

Cai a chuva lá fora. Plac! plac! ouço-a cantando em goteiras e cornijas, no cimento molhado da rua e nas vidraças embaçadas do meu quarto. Não sei porque, vendo o borraceiro descer, o espírito embebe-se-me em doce e longínqua rèverie.
Vejo, através duma tela úmida, as paisagens distantes de meu torrão natal, e afaz-se-me a que ando viajando, como antigamente, por esses sertões, sentindo sob o pala de viagem a água cirandar forte, cabriolando e verdascando sobre os cerros longes, as saraivadas, ou peneirando grosso, em meio o rendilhado sombrio da floresta por onde vou”.

São os primeiros parágrafos de Dias de Chuva, conto constante do único e já citado livro do moço poeta e ficcionista vila-boense, tão previamente desaparecido do convívio humano. Um conto que um crítico moderno, desavisadamente, poderia qualificar como crônica, alegando não conter, o texto, “elementos indispensáveis ao conto”. E um bom advogado do tema recorreria ao conceito de Mário de Andrade: conto é tudo aquilo que o autor chamar de conto.

Conto ou crônica, pouco se me dá o conceito hodierno... Hodierno é palavra em desuso, ou, dirão os moços, palavra antiga; mas a língua é antiga, tal como a temos; e mais antiga por suas raízes. E hodierno quer dizer de hoje – portanto, moderníssima, atual, de agora! Conto ou crônica, as impressões do poeta são notáveis e marcantes. O texto insere o leitor na plasticidade do momento descrito, quase que nos molhamos dessa leitura. A linguagem do regionalista, aí, é culta e doce, clara, convincente: é possível, sim, ser regionalista sem o palavreado chato que alguns autores tentam navegar quando pouco se o conhece. Regional é o tema. É? Uma chuva? A chuva é fenômeno geral sobre a Terra; regional é o ponto onde ocorre – e Hugo, vivendo a chuva na capital federal do Rio de Janeiro, evoca outras precipitações com a mente viajora ao sertão de Goiás. Mas o texto é inteligível, culto e claro ao entendimento de qualquer leitor lusófono, mesmo nestes cem anos que nos distanciam da concepção original.

Assim entendo a literatura – a escrita ornada de clareza, de figuras líricas, ao agrado do leitor sensível. A narração fria e seca serve aos relatórios de ofício, às atas de assembléias, aos contratos, à transmissão objetiva de fatos noticiosos. Os gêneros literários dispensam hierarquia, ainda que existam críticos que escalam o poema, o romance, o conto e marginalizam a crônica. E os livreiros que recusam-se a produzir e vender livros de poesia, alegando a dificuldade de venda e alimentando a energia que gira um círculo vicioso: poesia não se vende porque o leitor não compra ou o leitor não compra por não encontrar poesia à venda?

Em qualquer hipótese, e enquanto não se tem resposta, fiquemos com o lirismo da boa prosa poética, seja em contos regionais, em crônicas de jornais ou discursos e outros que-tais. Em suma, literatura só se marca quando cheia de poesia.


* * *




4 comentários:

Pedro Du Bois disse...

Caro Luiz, belo texto sobre a literatura. Abraços, Pedro.

Mara Narciso disse...

"Quase que nos molhamos dessa leitura" e "Conto é tudo que o autor disser que é conto". Além dessas frases que já valem percorrer a sua doce crônica, Luiz, o texto do menino-autor é rica, difícil, com palavras em desuso, porém que comunicam o sentimento do aguaceiro, de forma perturbadora. Admiráveis você e o menino.

Mirian da Silva Cavalcanti disse...

alô, Luiz! como sempre, é um deleite ler tudo que você escreve... e, como se não bastasse, de brinde o primoroso parágrafo do Hugo de Carvalho Ramos. E nunca é demais lembrar que, por passar a visitar seu blog, passei tb a me sentir uma quase moradora de Goiânia.
Grata por tudo, amigo!
Abraços
Mirian

Maria Helena Chein disse...

Lu,
há quanto tempo, amigo, não nos vemos nem nos falamos. A última vez
foi na AGL, quando você prestou homenagem ao saudoso Anatole Ramos,
com palavras e sentimentos que atestavam a sua (e nossa) admiração e respeito
por aquela figura amada. Foi uma tarde excelente.

Li suas crônicas: Homenagem da AGL a A. Ramos; Com estudantes em Nerópolis;
Visitação Literária; e Preocupações sobre quase nada. Cada uma deixou em mim, Luiz,
sua marca do bem fazer, do saber fazer, com propriedade e gostosura, textos sobre
nossa literatura e nossas cidades de mulheres e homens que marcam a Terra e sua história.
Apreciei muito, querido amigo.

Saudades.

Maria Helena