É
bom reabrir livros já lidos. É visita que gosto de fazer, sempre.
Há
quase 30 anos, a Livraria Cultura Goiana, do saudoso Paulo Araújo, assinou a
6a. edição de Tropas e Boiadas, o
único livro do jovem Hugo de Carvalho Ramos. O autor tinha 21 anos quando
lançou seu livro de contos que é tido, entre os estudiosos da literatura
brasileira, como o pioneiro no segmento do regionalismo.
Será?
Desde aquela publicação pioneira, há quase um século (o ano dos 21 anos de Hugo
é 1916). Hoje, o que temos por regionalismo é o texto eivado de expressões
setoriais, como escrevia meu querido Carmo Bernardes; e ainda os notáveis Eli
Brasiliense e José J. Veiga. Suas histórias, ou causos, tendo o sertão de suas
vivências como cenários e os camponeses por personagens, trazem diálogos bem
definidos, geograficamente; mas a literatura, como se a concebe, é a prática
das figuras, é o caminho poético das narrativas... Vejamos esse trecho:
“Cai a chuva lá fora. Plac! plac! ouço-a
cantando em goteiras e cornijas, no cimento molhado da rua e nas vidraças
embaçadas do meu quarto. Não sei porque, vendo o borraceiro descer, o espírito
embebe-se-me em doce e longínqua rèverie.
Vejo, através duma tela úmida, as
paisagens distantes de meu torrão natal, e afaz-se-me a que ando viajando, como
antigamente, por esses sertões, sentindo sob o pala de viagem a água cirandar
forte, cabriolando e verdascando sobre os cerros longes, as saraivadas, ou
peneirando grosso, em meio o rendilhado sombrio da floresta por onde vou”.
São
os primeiros parágrafos de Dias de Chuva,
conto constante do único e já citado livro do moço poeta e ficcionista
vila-boense, tão previamente desaparecido do convívio humano. Um conto que um
crítico moderno, desavisadamente, poderia qualificar como crônica, alegando não
conter, o texto, “elementos indispensáveis ao conto”. E um bom advogado do tema
recorreria ao conceito de Mário de Andrade: conto é tudo aquilo que o autor
chamar de conto.
Conto
ou crônica, pouco se me dá o conceito hodierno... Hodierno é palavra em desuso,
ou, dirão os moços, palavra antiga; mas a língua é antiga, tal como a temos; e
mais antiga por suas raízes. E hodierno quer dizer de hoje – portanto,
moderníssima, atual, de agora! Conto ou crônica, as impressões do poeta são
notáveis e marcantes. O texto insere o leitor na plasticidade do momento
descrito, quase que nos molhamos dessa leitura. A linguagem do regionalista,
aí, é culta e doce, clara, convincente: é possível, sim, ser regionalista sem o
palavreado chato que alguns autores tentam navegar quando pouco se o conhece.
Regional é o tema. É? Uma chuva? A chuva é fenômeno geral sobre a Terra;
regional é o ponto onde ocorre – e Hugo, vivendo a chuva na capital federal do
Rio de Janeiro, evoca outras precipitações com a mente viajora ao sertão de
Goiás. Mas o texto é inteligível, culto e claro ao entendimento de qualquer
leitor lusófono, mesmo nestes cem anos que nos distanciam da concepção
original.
Assim
entendo a literatura – a escrita ornada de clareza, de figuras líricas, ao
agrado do leitor sensível. A narração fria e seca serve aos relatórios de
ofício, às atas de assembléias, aos contratos, à transmissão objetiva de fatos
noticiosos. Os gêneros literários dispensam hierarquia, ainda que existam
críticos que escalam o poema, o romance, o conto e marginalizam a crônica. E os
livreiros que recusam-se a produzir e vender livros de poesia, alegando a
dificuldade de venda e alimentando a energia que gira um círculo vicioso:
poesia não se vende porque o leitor não compra ou o leitor não compra por não
encontrar poesia à venda?
Em
qualquer hipótese, e enquanto não se tem resposta, fiquemos com o lirismo da
boa prosa poética, seja em contos regionais, em crônicas de jornais ou
discursos e outros que-tais. Em suma, literatura só se marca quando cheia de
poesia.
* * *
4 comentários:
Caro Luiz, belo texto sobre a literatura. Abraços, Pedro.
"Quase que nos molhamos dessa leitura" e "Conto é tudo que o autor disser que é conto". Além dessas frases que já valem percorrer a sua doce crônica, Luiz, o texto do menino-autor é rica, difícil, com palavras em desuso, porém que comunicam o sentimento do aguaceiro, de forma perturbadora. Admiráveis você e o menino.
alô, Luiz! como sempre, é um deleite ler tudo que você escreve... e, como se não bastasse, de brinde o primoroso parágrafo do Hugo de Carvalho Ramos. E nunca é demais lembrar que, por passar a visitar seu blog, passei tb a me sentir uma quase moradora de Goiânia.
Grata por tudo, amigo!
Abraços
Mirian
Lu,
há quanto tempo, amigo, não nos vemos nem nos falamos. A última vez
foi na AGL, quando você prestou homenagem ao saudoso Anatole Ramos,
com palavras e sentimentos que atestavam a sua (e nossa) admiração e respeito
por aquela figura amada. Foi uma tarde excelente.
Li suas crônicas: Homenagem da AGL a A. Ramos; Com estudantes em Nerópolis;
Visitação Literária; e Preocupações sobre quase nada. Cada uma deixou em mim, Luiz,
sua marca do bem fazer, do saber fazer, com propriedade e gostosura, textos sobre
nossa literatura e nossas cidades de mulheres e homens que marcam a Terra e sua história.
Apreciei muito, querido amigo.
Saudades.
Maria Helena
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