Caracteres perecíveis
Dizem os dicionários que caráter é “o tipo da
imprensa”. Palavra bonita, fartamente usada para representar o perfil
psicológico das pessoas, de um modo muito simples – bom caráter, mau caráter. O
plural é caracteres – logo,
diremos bons caracteres, maus caracteres quando quisermos elogiar ou condenar
pessoas, mas já vi muita gente “letrada” engasgar ao tentar pluralizar a
expressão. De outro lado, há mais de vinte, comprei uma máquina eletrônica de
escrever; a vendedora, bonita e solícita, ensinava-me os recursos do
equipamento e em dado momento ela disse “um caractere”. Meu ouvido doeu, tentei corrigi-la e
ela, segura de si, abriu o manual e mostrou-me a expressão lá, impressa em
claros caracteres: “um caractere”. Eu ri, uai!
“Caráter”, originalmente, é, pois, o mesmo que
tipo, no conceito gráfico; mas o uso conduziu-nos a aplicar a palavra aos dons
da personalidade, enquanto “tipo” ficou para descrever o visual, ou físico, das
pessoas. Aliás, caráter passou, mesmo nas oficinas gráficas, a significar
variantes do tipo (como itálico e negrito, por exemplo) – mas não é disso que
quero falar. Meu propósito é o caráter das pessoas, isto é, as nuanças das
personalidades. E sabe o que me encanta? O fascínio que exerce a hipocrisia nas
relações sociais, mormente nos que tentam mascarar essas relações com os tons
da amizade e da fidelidade a valores subidos, como literatura, qualidade,
artes... Mas nenhuma máscara é tão perfeita que oculte a essência.
Certa feita, e por longas duas
décadas, dentro do meu péssimo hábito de confiar em todo mundo até prova em
contrário, fui tomado por otário entre colegas de profissão e de trabalho
(entre jornalistas, as relações vão além do ambiente do emprego); é que acolhi
como filho um escorpião que, embora tenha tentado, não escapou à sua índole
compulsiva e, em meio à travessia, quando eu ainda o escorava, ferroou-me de
morte. Não a morte corporal, a dos órgãos vitais, mas a morte do sentimento que
lhe ofereci de graça e do qual essa pessoa provou, de modo límpido e
translúcido, não ser digna.
Gosto sempre dos que, apreciando
qualquer trabalho, se digne a enaltecer méritos e, ao mesmo tempo, mostrar
falhas. Isso beira a parceria, demonstra confiança e respeito mútuos – o que
critica e o que acata. Essa postura sugere discussões e aprendizados múltiplos,
sempre. Mas há pessoas que nos apresentam aos amigos dizendo: “Este é o grande
poeta” ou “o notável jornalista”...
Aí a gente apela! “Para! O que
você já leu dos meus escritos para me qualificar assim? A quem me compara?”.
Não raro, a pessoa nos elogia sem conhecimento de causa e usa como referência
ou parâmetro outro escriba diametralmente oposto ao que praticamos. Algo como
apresentar Pelé chamando-o de Maradona.
Enfim: os cínicos e os hipócritas
enganam-nos por alguns meses, alguns anos... Mas um dia a gente vê a face real
sob a máscara. Uma poetisa, dia desses, disse não ter visto um poema meu bem ao
lado do de uma outra colega, na mesma página; e, meio sem graça ante a minha
cobrança bem-humorada, respondeu: “Não vi mesmo, mas vou ler; se gostar eu
comento, mas se não gostar não digo nada”. E comentou depois: “Gostei, tem
humor”.
Concluí: se nestes mais de 40 anos
de publicações minhas ela jamais comentou é sinal de que não leu ou não gostou.
Agora tenho certeza: ela, se leu, foi há décadas, e não gostou; porque o que
leu agora só mereceu resposta porque não quis, ela, deixar muito claro que,
agora, não gostou.
* * *
10 comentários:
Poeta, é sempre uma delícia ler seus escritos, viajar nas suas palavras, revisitar seus textos. Azar de quem não os lê! Eu sempre venho a este espaço "ler você", embora poucas vezes eu tenha deixado comentário. Confesso-lhe que não é por falta de vontade de fazê-lo, mas... algumas vezes por falta de tempo, outras porque fico meio constrangida de "falar" algo sobre textos de um autor exigente... (receios bobos, eu sei). Mas hoje arranjei tempo para escrever aqui. E hoje, meu caro, você está apimentado... e coberto de razão: tem gente que deveria mesmo ficar de boca fechada. Parabéns pelo talento; obrigada por brindar-nos com suas crias. Beijos. Creuza
Em Medicina se diz que as doenças vêm aos pares. E já comprovei isso. Não é raro chegarem duas pessoas com um mesmo problema raro. Cá estou eu, desde quinta-feira matutando sobre a hipocrisia nos meios literários, na falsidade, inveja e sucedâneos como punhalada pelas costas e afins. Não foi comigo. Foi com os outros, mas se assim foi, assim será comigo também. E em breve. Na frente, sorrisos e amabilidades, e nas costas despeito.Agora chega junto seu texto para ilustrar. Conheço o tipo, aquela gente sem-caráter, ou melhor, mau-caráter. Na frente, muitos sorrisos e mesuras e pelas costas só traição e comentários desairosos. Melhor deixar assim, mas estou decepcionada com duas pessoas e não é com você não.
Ler para compreender. Conhecer para elogiar ou atacar. Este é meu lema poeta. Já fui cobrada por não "comentar" ou "curtir"... prefiro assim, porque faz parte do que sou e não quero que nada mude o meu caráter...rs. Ah, muito bom o tema. Gostei mesmo.
Sim! Temos que ser fiéis, a nós mesmos e desenvolver, durante a vida um forte auto-conhecimento para conseguirmos ser autênticos com os outros. Abçs!
Luiz,
passeei em seu blog, deliciando-me, informando-me nas páginas cheias de assuntos: o caráter,
o Dia da Mulher, o aniversário do DM, sua visita à PUC. Encontrei-me com a incansável e
brilhante Fátima, com Clara Dawn e Lêda Selma, ambas também laboriosíssimas na literatura,
mulheres que marcam a nossa história. Foi um grande passeio, melhor, uma excelente viagem.
Bem meu querido Lu, uma magnífica semana para você.
Bjs.
Gostei demais deste texto! Há muito o que refletir! Eu também sou assim... e creio que é uma das coisas que nunca conseguirei mudar em mim: Acreditar nas pessoas até que elas me provem o contrário... decepciono-me, angustio e choro quando algo assim acontece e não me acostumo! Pois tenho certeza que todo o ser humano nasce bom, mas alguns se corrompem... é na travessia que
devemos firmar nossos valores!
* * *
Estava na Santa Missa agora a pouco e fiquei lembrando do seu texto.
Se Jesus há mais de dois mil anos foi entregue por 30 moedas... pensa o que as pessoas hoje não fazem?? Com quantos Judas não convivemos, que vivem pensando que somos degraus?
Fica aí a questão para dialogarmos...
Sim, professora Luane Rosa! Eis um tema que devemos destrinchar sempre. Falaremos nele em nossos diálogos e, sempre que necessário e/ou possível, em nossos encontros com alunos. Precisamos desenvolver nas crianças e nos jovens o apreço a valores que, ultimamente, têm sido esquecidos pela maioria.
Luiz
Às vezes, eu confundia as orações restritivas e as explicativas, mas acho que está certo! rsrsrsrs
Luiz, um "áutera" eu ouvi. E tremi de vergonha. Abraço,
Gilberto.
Pádua escreveu:
" "Caracteres Perecíveis" - ótima crônica poeta Luiz de Aquino! Ccomo a gente vive tudo isso no dito cujo "Meio Artístico" (Também). Em um momento, você é um dos grandes nomes da nossa cultura "Regional" em outro, é só um artista goiano que não "Agregou valores" por não ser conhecido nacionalmente, ou por não morar no Rio de Janeiro ou São Paulo.
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