Em
compasso de mudança
Há três anos,
isto é, em 2012 (era maio, também), eu colhia caixas grandes nos supermercados
e outras lojas onde poderia conseguir esses... dejetos. Sim, que o comércio
dejeta essas coisas que os coletores de recicláveis juntam com critério. E eu
me alistava entre tais coletores, mas com mais critério na seleção, pois
procurava caixas em bom estado.
Estou outra vez
nesse empenho. E a dedicação volta a ser a mesma, pois tenho de condicionar
cerca de cinco mil livros para a mudança de casa, outra vez. Tomara que não
faça isso mais vezes – afinal, estou para inaugurar nova fase, abandonando a
condição de sexy-agenário para estrear o estágio dos hepta... Septuagenário,
corrige-me o dicionário eletrônico.
Aos poucos,
transfiro meus livros, uma coleção infindável iniciada há mais de 60 anos, para
o novo espaço. Valho-me das incontáveis viagens desde este apartamento alugado
até a casa financiada, conduzindo-os como as formigas transportam folhas.
Pretendo evitar o que aconteceu há três anos, quando os transportadores
despejaram muitas dezenas de caixas na sala, que se tornou um ambiente pós-terremoto
(ou tsunami), numa balbúrdia que me ocupou por uns quinze dias, apenas para
transpor os livros, um a um, com alguma coerência, para as estantes.
Móveis, roupas e
utensílios pouco me incomodam. Mas livros... Os operários de mudanças sabem bem
cuidar de louças e porcelanas, de espelhos e mobiliário, de pratos e copos que
chegam intactos ao destino, mas tornam-se vândalos-mascarados quando o objeto é
livro. Por que o livro desperta tanto ódio, hem?
Durante os
primeiros anos da ditadura, os trogloditas autorizados a portar armas invadiam
casas, jogavam todas as estantes ao chão, chutavam livros, listavam os de capas
vermelhas e os de títulos suspeitos e, na dúvida, estraçalhavam tudo e muitas
vezes os queimavam. Foram mais inimigos de livros do que os frades da Idade
Média, que cuidaram de ocultá-los dos possíveis leitores para que estes não se
contaminssem com as ideias... subversivas. Mas cuidaram de trancafiá-los em
arquivos secretos e estes cruzaram o mar das trevas que foi aquele período.
Os inquisidores
das décadas de 60 e 70 do século passado, no Brasil, foram mais cruéis com as
publicações. E sua ojeriza aos livros contaminou os preguiçosos mentais (hoje
mesmo uma ex-colega de trabalho “confessou”-me que não lê textos logos – algo
como dez linhas na tipologia do Facebook – e a partir dela entendo que devo
perdoar os que rasgam livros por não entender o que alguém quer fazer com isso
(os livros). Vai daí, estou eu próprio dedicado a evitar prejuízo como o de
2012.
Num próximo
momento, hei de levar também, e já, uma cadeira que minha mãe chamava de
espreguiçadeira – estrutura de madeira, que podemos abrir e fechar, com um pano
a servir de assento e encosto. E quando estiver distribuindo livros no novo
espaço, os momentos de repouso serão curtidos a folhear algum exemplar e, talvez,
um cochilo oportuno.
Quem sabe o
coador, a rabinha e pó para o café? Ou a geladeira, com algumas garrafas de
água de coco – ou cerveja – e um queijo para o tira-gosto? O celular emite e
recebe bem, mas ainda não me lembrei de providenciar telefone fixo e
banda-larga para a Internet.
Se puder dispor
dos itens arrolados (uma “locutriz” da CBN/Rio falou “arraolados”; imaginei que
ela pedirá ao redator que troque essa palavra difícil por “elencados” – que eu
abomino). Ih, divaguei, mas já volto: se eu tiver os itens arrolados no parágrafo
anterior, acho que fico de vez por lá, hem? É que em Hidrolândia a Lua nasce
mais bela, os pássaros cantam livres, minhas árvores prometem mangas, abacates,
pequis, barus e jabuticabas, e muitas outras coisas de que, eu sei, vou gostar
muito!
*
* *
Luiz de
Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras.
3 comentários:
Belíssimo texto! Me emocionei e fiz uma oração pedindo a Deus que abençoe esta mudança e proteja você e sua família! Que o seu refúgio seja de paz e tranquilidade entre os cinco mil livros e as belas árvores!
Fiquei com inveja da sua mudança, Luiz. Ando precisando de uma chacoalhada. Só não tenho mais saúde para me mudar, ainda que não saiba o que fazer da velhice e da falta de dinheiro. Faço 60 anos em 12 de setembro, e sei que seu dia é 15. Viu como minha memória anda boa? Uma ótima mudança para você, e que leia muitos livros.
Sua crônica de hoje fez-me pensar em meu pai buscando caixas para empacotar seus pertences mais preciosos e também para mandar coisas de Goiás para sua irmã que morava no Rio de Janeiro. Você mostra um pouco da casa e de seu coração de poeta, indo e vindo como diligente formiguinha carregadeira. A história termina melancolicamente. Finda a peleja, restam desanimadores dez a zero para Hidrolândia, que leva nosso poeta que já ameaça ficar por lá.
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