Salomão Sousa
escreveu um belo poema, entre tantos outros belos, sob o título “Dar-se aos
pregos e às léguas”. Deliciei-me das fincadas e andanças do vate da
histórica cidade de Bonfim (que o mau-gosto de uns poucos, há mais de meio
século, transmudou em Silvânia, sem que a bucólica cidade perdesse o encanto).
Ele encerrou o poema com essa estrofe:
“...
perder-se para
nascer
nas flores e nos
olhos da terra
não ser o ferrolho
inchado
o caruncho na
madeira das íris”.
Falei-lhe do meu
encanto, e ele retrucou, em mensagem fraternal: “As nossas viagens são as
mesmas, com as mesmas íris e o mesmo sol, o mesmo terreiro de chão goiano. O
difícil, para nós, é abrir porteiras para fora de nosso rincão. Vamos manter
viva a nossa infância, senão perdemos a nossa rebeldia”. Perdemos, não,
poet’irmão! Não a perdemos, pois exercemos essa teimosia de menino birrento,
daqueles a quem os castigos da sobremesa não atingem, porque havia os quintais
de múltiplas frutas, nem o cerceamento da liberdade por algumas horas, porque
os córregos da meninice estavam ali, “de grito” (*); a toxina dos defensivos
ainda não exterminara as piabas que colhíamos em anzóis miúdos, em linhas
curtas de varas de bambu. Nosso grito de pirralhos embirrados ecoa não no
espaço entre paredões, mas na lonjura do tempo que enevoa nossos cabelos e
esturrica nossas peles.
E que revéis, somos
nós! Crescemos sob o tacão de um regime duro e cruel, mas não esmorecemos; não
nos dobramos, como os caniços que nos valiam por varas de pesca, mas não
enraizamos tanto que a ventania nos arrancasse do chão benfazejo. Altivos e
livres, fechamo-nos por horas em leituras perigosas, mas capazes de nos fazer
cidadãos. Cidadãos poetas, porque sem poesia não há liberdade (que o digam
Agostinho, de Angola; José Martí, de Cuba; Federico G. Lorca, o espanhol; e
Castro Alves, o nosso).
Vimos Godoy Garcia,
José Décio Filho, Ieda Schmaltz e Afonso Félix de Sousa a gritar por nossa
gente ante o arbítrio; vimos José J. Veiga e Bernardo Elis a prosear coragem na
escuridão ante as idéias não permitidas. Deles herdamos a bússola dos
inquietos, dos insatisfeitos e insurretos.
Temos sangue, Salomão,
para a justiça decantada, sonhada e mal exercida; sangue que tinge nossos solos
e põe sal no nosso suor de andarilhos das letras. Deixamos que os dias
polvilhem de lembranças nossas almas doces e ingênuas, mas bravas o bastante
para não se curvar. Temos as cores das areias da Serra Dourada, o vigor das
pastagens na vertente do Piracanjuba e o calor termal da Serra de Caldas,
acalentado em serenatas de Pirenópolis e dourado de pôr-do-sol de qualquer
paragem Goiás. Comemos pequi e genipapo, ingá e guapeva; bebemos cachaça
quilombola; dançamos pagode de roça, dançamos catira e, se deixarem...
Bem, se deixarem,
contamos histórias de medo ao fogo do borralho, em noites de chuva. Mas não
deixamos, não mesmo, de cantar poesia. Como não se fazer poeta sob o céu deste
Planalto do cerrado, siô?
* * *
(*)Notas do autor: (1)
“De grito”: expressão do sul de Goiás para dizer “é logo ali”. (2) Esta crônica
foi publicada em junho de 2006. Republico-a em nome da nostalgia e da minha
admiração ao poeta Salomão.
2 comentários:
Goiânia de Montes Claros estão no cerrado e carregam algumas semelhanças além da culinária. Isso nos faz mais próximos em relação a vivências, e ao gosto poético.Gosto de conhecer coisas do seu estado.
Caramba como alguém pode nao o considerar poeta depois de uma crônica destas? Só mesmo o antagonismo do nosso atraso poético. Adorei a apologia à troca do Bonfim por Silvânia o que sempre foi minha luta pelo resgate da história e das alegrias das boas almas bonfinenses. Adorei a citação das nossas frutas, cerrados, pescados. Nos tornamos irmãos fãs de um mesmo Salomão e de seus versos. Me emociono e muito com suas sábias palavras enviadas do sangue poético. Parabéns. Grato.
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