Meu tio e o relógio (*)
(*) Saudosismo,
será? Ou o mero prazer de recordar feitos e ouvidos, ou seja, histórias minhas
ou dos outros? Relendo escritos, dei-me com essa crônica, um tanto antiguinha,
mas que republico em homenagem a dois queridos amigos – Ranulfo Borges e José
Mendonça Teles. L.deA.
Corria o ano da graça de mil
novecentos e sessenta e não-me-lembro... Amigos leitores, esse introito aí foi
feito para provocar o Ranulfo Borges, ele que me qualificou de saudosista, no
melhor estilo do meu amigo José Mendonça Teles, hábil nas crônicas sobre a
Campininha das Flores, que de cidade aceitou tornar-se o primeiro bairro de
Goiânia; e eu exercitei a saudade ao recordar o Rio de eu-menino, antes do
Estado da Guanabara, da fusão e do tráfico.
Mas era mil novecentos e
sessenta e tantos e – lá vai mais saudade, Ranulfo! – e era Caldas Novas.
Gente! Caldas Novas era muito mais bonitinha com as ruas de cascalho e as casas
com fachadas personalizadas. Eu juro que era! Hoje, que cada jardim virou um
conjunto de três ou cinco lojinhas. A vida acontecia: os namoros, os fuxicos,
os... Claro: acontecia o que a gente via e o que a gente sabia. Os fatos se
davam na calada da noite. E a noite, então, era muito mais calada: os namorados
não se beijavam diante dos outros e os moços não contavam ter beijado as
namoradas; pais, mães, tios e avós vigiavam-nos todo o tempo e a falta de
vigilância resultava, sempre, em desvirginamento precoce, o que só se sabia na
hipótese de uma gravidez indisfarçável ou diante de um inefável flagrante.
Mesmo naquela época, o sexo
proibido não era exclusividade dos moços e solteiros, não. O sexo doméstico –
ou familiar – era tido como monótono − daí o nome “papai-mamãe”, que dispensa
explicações. Havia os homens sem-vergonha, os que cometiam seus pecados com...
com... com moças pudicas ou recatadas senhoras da mais fina sociedade. Sim, que
ninguém é besta de titular uma aparente donzela de galinha, ou uma mãe de
família de vagabunda. Então, esses homens ímprobos, esses maridos infiéis, cometiam
seus desatinos, dando vazão aos seus “instintos bestiais” com respeitáveis
donzelas ou mães de família cujos maridos e filhos, obviamente, estavam na
lida, na fazenda.
Um desses desavergonhados
era meu tio. E, exercendo sem o saber o pecaminoso tráfico de influência,
invadia o quintal da delegacia de polícia para saltar o muro e amancebar-se,
furtivamente, às primeiras horas da noite, com uma senhora impecável e piedosa.
Um dia, muito afoito (era a chegada), deixou cair o relógio de pulso e não
notou. Mas gostava do relógio; tanto que pregou em sua loja um cartaz: “Perdi
um relógio Mido, de pulso. Gratifico com mil cruzeiros” etc. e tal. Pouco
depois, chega ao comércio do titio ninguém menos que Romano Crisóstomo, o
delegado. Em silêncio, pôs o relógio sobre o balcão; olhava os olhos do meu tio
e o cartaz na parede. Alguns dos presentes, mais amigos que fregueses,
assistiam e teciam breves comentários. O tio foi à gaveta, pegou uma nota com a
cara de Cabral e indagou: “Onde estava o relógio?”. E Romano: “Junto ao muro da
casa da Dona...” Nem concluiu a frase!
Meu tio devolveu-lhe o
objeto e pronunciou, solenemente:
– Não é o meu!
...e guardou os mil
cruzeiros. Preferiu perder o que lhe era um mimo para não expor a amada
clandestina.
*****
Luiz de Aquino é
jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras.
Um comentário:
Amigo, um texto leve, bem escrito e com um causo interessante.
Obrigado pela indicação do texto.
Parabéns!
Postar um comentário