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sábado, outubro 29, 2016

Verdade, fidelidade e lealdade

Verdade, fidelidade e lealdade


Fala-se muito em fidelidade. Alguns religiosos, desconhecendo o real sentido e valor de algumas palavras, dizem que Deus é fiel. Sinto-me mal com isso. Deus não pode ser fiel a nós. A fidelidade é um sentimento que implica submissão, por isso o atribuímos aos cães. Os cães se sentem dependentes de algum humano.

Então, quando alguém diz "Deus é fiel", sinto-me mal porque Deus é o ápice, a Luz Maior, a fonte de Luz, de Vida, de Bondades (todas elas). E por conhecer um pouquinho da natureza humana, atrevo-me a dizer que não fomos feitos para a tal fidelidade. Não somos monógamos, ou monogâmicos. Nós namoramos um, dois, três... antes de elegermos alguém.

A fidelidade não é isso que os padres e pastores enfiaram nas nossas cabeças. Fiéis, na relação conjugal, que eu saiba, são os animais monogâmicos. Os psitacídeos – papagaios, periquitos, araras e maritacas – que, quando o parceiro morre, o viúvo mantém-se assim até a morte.

Você comete o “pecado” da ansiedade. Ou da angústia. Psitacídeos... Bonito esse nome! Pela pouca familiaridade com a linguagem biológica, vivo me esquecendo. Os psitacídeos são fieis, sim. Mas se algum deles conhecer um novo parceiro, a fidelidade, a monogamia, a exclusividade – seja lá qual for o nome – vai p’ras cucuias (e até eles já foram mais fiéis). O que se tem não é pecado. É, no máximo, a infringência de regras sociais que, aos poucos, também vão se esvaindo porque a sociedade muda na mesma velocidade da tecnologia.

Há anos, vi na tevê uma história que achei maravilhosa. Uma fêmea chimpanzé, no zoológico de Brasília, nadava para a outra margem do pequeno canal que separa o seu recanto da ilha onde morava um macho. Só que ela era casada, tinha sua família, mas chifrava o marido sem constrangimento. Ia lá, namorava o "ricardão" e retornava cheia de autoridade - e felicidade, certamente. Os primatas não são fieis, nesse sentido.

A lealdade é outra história. Não devemos romper a lealdade, mas a obsessão pela verdade é um mau hábito que só serve para nos angustiar quando nos flagramos mentindo. E essa é uma exigência judaica que o catolicismo importou. Sempre pergunto às pessoas – quem foi a pessoa que mais mentiu para você? Pouca gente acerta. É preciso que eu diga – "Sua mãe" – e as pessoas concordam, assustadas. Nossas mães mentiram para nós e nós vamos mentir para os nosso filhos e netos. Ora para protegê-los (a mãe, a avó), ora para diverti-los (pais e avôs). E o amor continua, muitas vezes mais fortalecido, nos dois sentidos. E descobrir isso nos faz amá-los ainda mais.

Jamais diremos às pessoas que estão na nossa vida sobre o que transgredimos. O amor-próprio é algo muito forte. Quando crescemos e nos tornamos mais racionais e conscientes, as mentiras vão se reduzindo, diminuindo. Mas, num dado momento, se algum deles – ou ambos, ou todos eles – acharem que não devemos saber de algo, eles criarão uma história para cobrir a realidade e nos deixar mais tranquilos – ou protegidos.

Certa vez um amigo apresentou-me o pai. Um homem alegre, solitário e paparicado por todos – filhos, sobrinhos e netos. Ele me contou:

– Fui buscá-lo (citou uma cidade do interior) para passar Natal e Ano-Novo conosco. Ele fica muito sozinho, minha mãe pôs um chifrinho nele... Ele ficou triste, mas se conformou e agora está de namorada. Namoro novo.

Isso foi há quatro décadas. Achei bonito como ele me contou o desamor dos pais. Sem ranço de mágoa nem dor, sem tomar partido, sem preconceito. A mãe, que ele amava da mesma forma, estava em melhor condição emocional, por isso meu amigo se preocupava em proporcionar ao pai a mesma alegria.

Mas há quem exija fidelidade. Ora! Se não conseguimos ser fiéis a Deus e até invertemos os papéis, afirmando que Ele é fiel, que obrigação temos com o próximo nesse item? Se conseguirmos ter amor ao semelhante, já estaremos chegando perto do que nos pediu o Cristo.


*****


Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras.


9 comentários:

Marinho Lopes. disse...

Espetacular. Reflexão profunda!

Sueli Soares disse...

Interessante!
No final de 1977, meu presente de Natal foi a publicação da L​ei n º 6.515, que me convenceu de que jamais deveria casar-me, por não confundir, etimologicamente, lealdade e fidelidade. Enquanto esta me garantiria um "status" formal, aquela, isenta de provas, dependeria apenas do caráter do meu eleito. Decidi não arriscar!

Sônia Prado disse...

O que importa é o respeito, poeta!

Marinho Seques Lopes disse...

Excelente.

Simone Rios disse...

Adorei!

Sônia Elizabeth Nascimento Costa disse...

Somos todos fiéis até que um encantamento maior apareça em nossas vidas. Ninguém está livre disso, Luiz De Aquino Alves Neto.

Carmem Gomes disse...

Muito bom. Importante ė o respeito, a ėtica .

Sonja Curado Jayme disse...

Adorei... cabe-nos refletir!

Sonia Elizabeth Nascimento Costa disse...

(...) parabenizar pela ótima crônica sobre traição. Um tapa na cara dos hipócritas e uma excelente retirada de máscaras.